Renina Katz, ilustradora de Cecília Meireles

Por Pedro Fernandes


Renina Katz. Foto: Vidal Cavalcante/ Folha de São Paulo


Renina Katz está entre os principais nomes das Artes Plásticas no Brasil. Situada numa geração que primeiro se profissionalizou no seu ofício, quando novos rumos para a arte da gravura neste país começavam a se estabilizar, suas contribuições estão visíveis em campos diversos. Ao lado da carreira com as artes, ela atuou em várias frentes do ensino durante quase três décadas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, instituição onde se estabeleceu e construiu uma pioneira formação acadêmica, como a dissertação e a tese que dispensaram o conteúdo verbal, ou antes, tiveram o verbal substituído pelo visual numa série de serigrafias e litografias, respectivamente.
 
Antes disso, fez a Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, onde estudou com figuras como Henrique Cavalleiro e Quirino Campofiorito; fez Desenho pela Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; cursou xilogravura com Axl Leskoschek; incentivada por Poty, gravura em metal com Carlos Oswald; e o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Ou seja, uma sólida e diversificada educação que, certamente, a colocou nos quadros permanentes do seu ofício.
 
A mudança para São Paulo se deveu, em parte, a essa dedicação com a área. É 1951 e desde então se estabelece na carreira acadêmica. A chegada à cidade que há alguns anos começava a se estabelecer como centro cultural e industrial do país, além de a terra prometida para um interminável fluxo de migrantes das regiões circunvizinhas, colocou Renina Katz diante de cenas excruciantes. Ainda era o tempo de renovação de um tipo de realismo, designadamente social, e a combinação entre a expressão artística vigente e o que a artista passa a testemunhar na Estação do Norte permite a feitura da expressiva série Retirantes — claramente marcada pela arte de Cândido Portinari. Para dar conta dos estreitamentos entre forma e conteúdo, serviu-se da xilogravura, a arte talhada em madeira e depois transferida para o papel, reafirmando o uso da técnica que também se mostrara no seu primeiro álbum de gravuras, Favela.
 
Esta década e próxima são das mais prodigiosas na carreira de Renina Katz. É em meados dos anos cinquenta que conhece o Romanceiro da Inconfidência. Cecília Meireles havia publicado o livro que refaz parte da história colonial desde o século XVII para se debruçar no episódio da Inconfidência Mineira, ocorrido no fim do século seguinte, em 1953. Seduzida pela força plástica da poesia, a artista lança-se ao projeto de reconstituir a obra pela imagem. Este foi, talvez, o primeiro trabalho mais ambicioso de Renina Katz; nas várias entrevistas que concebeu ao longo de sua carreira, ela conta que planejava algo em torno de trezentas gravuras.
 
No entanto, o projeto foi abandonado. A artista teria sondado a possibilidade de uma edição ilustrada do Romanceiro…, mas a proposta não agradou — aos editores ou aos herdeiros da poeta, não se sabe. O que se sabe é que, na mesma época, quando Renina Katz desistiu de ilustrar a obra de Cecília Meireles, acabou por começar a se distanciar por razões diversas disso que chamamos por realismo social. Na década de 1960, a entrada do Brasil no jugo dos militares obrigou muitos artistas a mudarem os rumos de sua obra; para não agradar os súcubos do mal e nem ferir os seus princípios artísticos, o interesse pelas formas não figurativas que começavam a chegar por aqui através da arte estrangeira foi uma saída alternativa honrosa. E este foi o caso de Renina Katz, para quem, a conjuntura política fora apenas o estalo definitivo para se estabelecer noutra linha criativa que nela culminará numa arte abstrata, por vezes, de cunho surrealizante.
 
Voltemos e fiquemos com o projeto de ilustrar um dos livros principais de Cecília Meireles. Ao olharmos de agora é possível dizer que esse trabalho é meio caminho no ingresso da expressão não figurativa, porque a artista deixa de se propor ao retrato ou ao registro de paisagem para se lançar à criação puramente imaginativa de uma época, sua atmosfera e suas personagens. Da série planejada sobrou pouquíssima coisa que deixou o estatuto de esboço ou de desenho para o de gravura. E, do que foi extraviado com o tempo, o material completo restante é composto por 87 folhas. Ele foi reencontrado em 1975 numa dessas arrumações de papéis; na ocasião, Elcio Motta cumpriu a tarefa de ser o impressor do que restou e assim chegou aos olhos de José Mindlin. Essa descoberta retira a obra do esquecimento — em definitivo.
 
Primeiro, o bibliófilo convence a amiga que lhe confie os papéis; depois, ele inicia uma série de exposições que começou na Casa dos Contos, em Ouro Preto, galgou boa parte do Brasil e chegou a Portugal em 1997 — um circuito que ora se definiu pelos estreitamentos históricos para com o Romanceiro… ou para com a autora. A Casa dos Contos é, como sabemos, um dos lugares que serviu para diversos encontros entre os conjurados da Inconfidência, depois esconderijo e lugar onde o poeta e inconfidente Claudio Manuel da Costa foi preso e onde se enforcou; o espaço que recebeu a exposição em Lisboa integra também uma fundação dedicada aos artistas Árpád Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, convívio de Cecília na cidade portuguesa e depois no Brasil.
 
José Mindlin sublinhou por diversas vezes o encanto pela beleza e a espontaneidade do traço de Renina Katz e viu nos esboços algo ainda mais revelador do talento da artista. A coleção carrega de maneira precisa o sentido da obra aberta ou inacabada, atribuindo ao espectador via diversa de continuidade: quem vê apenas a imagem, sem o contato com o livro de Cecília Meireles, consegue vislumbrar tipos e situações de alguma maneira impressos no seu imaginário; e quem vê no contato com o Romanceiro reaviva-os pelas filigranas da palavra, também ela, material para a linguagem visual.
 
Os desenhos, estudos e esboços trabalhados a bico de pena e pincel de nanquim eram a base para a execução de gravuras em metal; das centenas deles chegaria à síntese de uma imagem para cada um dos 85 poemas. Se o reconhecimento desse material pela sua incompletude é singular, conforme observou José Mindlin, oferece ainda outra feição, moderna, tanto para o episódio histórico como para o livro de Cecília Meireles e marca essa força a espontaneidade com que o pensamento captura, traduz e atribui movimento à imagem verbal.
 
Renina Katz reaviva a atmosfera dos acontecimentos pelo lado interior. O peso da censura, da conjura, da prisão e da violência é predominante não apenas no elemento figurativo, mas também se nota na maneira como se apresentam as personagens que atuam nos seus quadros. O traço preto vivaz sobre o papel acentua o fechamento. Mesmo as grandes cenas abertas, como os registros de paisagem, estão obstruídas, pela treva, pela bruma, pelo recorte preferencial dos becos e vielas ou aquele que privilegia em sobreposição o casario de Ouro Preto.
 
Das personagens, poucas encaram à frente. Na verdade, apenas uma, que os Ilustres Assassinos olham entre si, confabuladores, ou o vazio, friamente, calculosos; os demais encontram-se meio encobertos, de costas, presos em si, com a Marília de Dirceu. E aquela que nos encara de olhar perturbado (pela condição psíquica, mas bem poderia ser pelo testemunho dos horrores) é Dona Maria, a Rainha Louca, e mesmo ela, chegou a ser imaginada em um dos desenhos meio escondida sob um leque, como se assumisse qualquer desfaçatez. E restam os vários quadros preenchidos de gente, reavivando a convulsão das ruas: tomadas de soldados, de prisioneiros assistidos de longe por padres que estão de costas para os espectadores, dos que acompanham o rito do patíbulo.

Livro que reuniu os poemas do Romanceiro da Inconfidência e os desenhos de Renina Katz


 
O desejo de Renina Katz se cumpriu, de alguma maneira. Na passagem dos cinquenta anos da primeira edição do Romanceiro da Inconfidência, um livro feito pela Edusp e pela Imprensa Oficial de São Paulo reuniu os poemas de Cecília Meireles e os desenhos criados pela artista entre 1956 e 1958 como devido, reavivando a sentença segundo a qual tudo que tiver de ser um dia será. E da capa nos assalta o olhar confuso da Rainha Louca. O que ele nos dirá?


Ligações a esta post:
>>> Nesta postagem no nosso Tumblr, seis dos desenhos de Renina Katz para o Romanceiro


Algumas fontes
Meireles, Cecília. Romanceiro da Inconfidência (desenhos de Renina Katz). São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial, 2004.
Milliet, Maria Alice. Figuras de um romance. In Renina Katz: desenhos e gravuras para o Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles. Lisboa: Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, 1997.

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