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Mostrando postagens de 2025

“Dias de pedra”, de Isabelle Scalambrini: uma herança poética

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Por Wesley Sousa A vida é uma pedra de amolar: desgasta-nos ou afia-nos, conforme o metal de que somos feitos. — George Bernard Shaw   Em Como ler um poema , Terry Eagleton define que o material ao qual chamamos de “poema” tem certas características mais ou menos consensuais. No aspecto da criação e da técnica criativa, ele menciona da seguinte maneira: “Um poema é uma declaração moral, verbalmente inventiva e ficcional, na qual é o autor, e não a impressora ou o processador de textos, que decide onde terminam os versos” (p.32, tradução minha) Iniciar com esta afirmativa é, aqui, quase uma obviedade se vista de imediato.   A cadência dos versos, a rítmica que se sobrepõe às rimas etc. não é algo simples — e a poética pressupõe uma conexão maior do que o ímpeto formal de deslocamento sintático e do verso. O poema, mesmo se fosse algo fácil de escrever, disso não deriva que a poesia que emerge nos versos seja clara quanto se pensa. Para o crítico inglês: “É certo que a prosa ge...

Boletim Letras 360º #633

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Halldór Laxness LANÇAMENTOS   Publicado em 1957, dois anos após Halldór Laxness receber o prêmio Nobel de literatura, livro conduz o leitor até as paisagens islandesas e os pequenos detalhes da vida cotidiana nas ruas de Reykjavík no início do século XX .   Em Os peixes também sabem cantar acompanhamos a vida de Álfgrímur, um menino órfão criado pelos avós adotivos em um casebre humilde nos arredores da então futura capital da Islândia. Sua narrativa sinuosa se apoia na memória coletiva, nos mitos e nos valores compartilhados para descrever a construção de identidade, tanto individual como nacional. A obra é, ao mesmo tempo, um romance de formação do jovem Álfgrímur e da nação islandesa. De um lado temos uma sociedade em transição na pequena ilha do Atlântico Norte que à época oscilava entre as amarras coloniais e a busca por autenticidade; do outro, um protagonista moldado pela sabedoria tradicional islandesa, mas que se vê atraído pelo brilho ilusório da fama representada p...

O rinoceronte e a metamorfose coletiva

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Por Juliano Pedro Siqueira Eugène Ionesco. Foto: Micheline Pelletier O período do pós-guerra despertaria profundos temores em um mundo que acabara de ser desfigurado pela destruição em massa. Acompanhado do horror, da incerteza e da descrença na razão, emergiu-se uma série de questionamentos existenciais e morais, tendo como pano de fundo a literatura, a filosofia, a arte, a psicanálise e o teatro, que buscaram os fundamentos que levassem a entender o homem a partir de seus símbolos, fanatismos e contradições.   Correntes como o existencialismo, que a exemplo, explorou conceitos como angústia, em Sartre, tempo, em Heidegger, suicídio, em Camus; e do teatro do absurdo, com Samuel Beckett, Arthur Adamov e Eugène Ionesco; além, claro, dos estudos antropológicos de Sigmund Freud, promoveriam um grande debate intelectual no ocidente, submetendo à dúvida o progresso moral, racional e existencial do homem.   Com o advento de movimentos filosóficos de cunho materialista e relativista...

Manuela Porto e suas histórias revivem

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Por Marcelo Jungle “E se tivesse nascido morto? Oh! Que sorte, que sorte tamanha! Não se atrevia a perguntar isso, mesmo que tivesse a quem.” Essa é a pergunta essencial do conto “Um filho mais”, de Manuela Porto, incluído na inédita coletânea Histórias familiares e outras histórias (2025). Lançada pela destemida editora PONTOEDITA, o livro reúne toda a obra literária desta hoje desconhecida autora portuguesa. Estão compilados os livros de contos Um filho mais e outras histórias e Doze histórias sem sentido , mais a novela Uma ingénua: a história de Beatriz , publicados entre 1945 e 1952. Manuela viveu grande parte de sua vida durante o mais longo regime autoritário da Europa ocidental, iniciado em 1926 e que só foi definitivamente encerrado em 1974. Esse período abarca o conhecido salazarismo, referente a António de Oliveira Salazar, figura central do regime, oficialmente chamado de Estado Novo.   O título poderia ser somente Histórias Caseiras , porque é esse sentimento que se ...

Mickey 17: excêntrico, multipolar e sobrecarregado

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Por Alonso Díaz de La Vega Em uma circunstância extraordinária, me senti forçado a assistir a  Mickey 17 (2025) uma segunda vez para escrever sobre o filme. Minha primeira impressão não foi de uma película incompreensível ou difícil, mas apenas sobrecarregada e, portanto, confusa. Ao longo de quase 140 minutos, pelo menos 30 são dedicados a explicar um mundo que depois desaparece da tela: Mickey Barnes (Robert Pattinson), um “dispensável” — como são chamados em 2054 os trabalhadores de alto risco dispostos a serem clonados com a memória intacta — nos conta nesta meia hora os muitos detalhes de sua vida, suas decisões e seu contexto. Na verdade, o título do filme aparece em vinte minutos depois de ouvirmos como Mickey e seu amigo Timo (Steven Yeun) se envolvem com um agiota que empresta pelo prazer de cortar com uma serra os que não lhe pagam; como o fracasso deles com uma loja de macarrão os obriga a fugir para o espaço, e como Mickey, que não possui habilidades nem muita int...

Selma Lagerlöf, a ficção como uma forma de espiritualidade

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Por Elena Enríquez Fuentes Selma Lagerlöff em cena de documentário dirigido por Gardar Sahlberg. Quem nunca se deparou com uma situação sem saída? A garganta fica obstruída, o estômago grita, os olhos lacrimejam, as mãos se fecham em punhos, a vulnerabilidade é dor corporal. Selma Lagerlöf diz, através da voz de uma de suas personagens: “O ser humano é mais forte do que acredita e mais frágil do que imagina.” À medida que mergulhamos na biografia e na obra dessa escritora, percebemos profundas conexões entre ficção, fantasia e experiência de vida.   Lagerlöf nos lança um feitiço e, por meio de sua magia, convida-nos à transformação. Todos nós sabemos sobre perdas, mas as mulheres, os homens, as crianças e os animais na sua obra usam o sofrimento como uma maneira de expandir os limites corporais, ampliarem a consciência, tornarem-se mais sensíveis, perceberem mais e melhor estar abertos à compreensão.   Talvez as maiores paixões da escritora sueca fossem escrever e sua te...

Exposição Quasi-Corpos

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Por Eduardo Galeno Lygia Clark. Máscara abismo, 1967. Portal LC (Reprodução) Gullar referenciou o movimento contemporâneo nos rastos da conceituação de quasi-corpo . A pergunta é: o que vem a ser?   Fenomenologicamente, isso se situa na representação da representação, naquilo que é formado no seio da sua aparição concreta como fuga. A obra aparece, no mínimo, “despedaçada”. O hiato entre arte e vida fica cada vez menor e daí parte para ser hierarquizado intencionalmente no solo da vertigem obscura, alinhado de modo negativo um ao lado do outro.   Pensemos no brilhante ensaio de Rosalind Krauss, “A escultura no campo ampliado” (1979), e ressaltemos o ponto central do que seria um quasi-corpo na primeira frase do texto: “o único sinal que indica a presença da obra é uma suave colina, uma inchação na terra em direção ao centro do terreno”. A sinalização de Perimeters/ Pavillions/ Decoys (Mary Miss, 1978) vaza blocos de similitude, mas eles são serializados na amplidão semióti...

Cinco poemas de Robert Penn Warren

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Por Pedro Belo Clara (Seleção e versões) Robert Penn Warren. Foto: Joel Katz     (VII) CONTA-ME UMA HISTÓRIA ( Audubon: A Vision , 1969)   [A] Há muito, no Kentucky, eu, um rapaz Junto duma estrada de terra batida, ouvi, no crepúsculo, O grito dos gansos selvagens rumando ao norte.   Não os conseguia ver, não havia lua no céu E as estrelas eram escassas. Escutava-os.   Não sabia o que se estava a passar dentro do meu coração.   Era a época antes do sabugueiro florir, E eles voavam para norte.   O som passava por mim rumo ao norte.   [B] Conta-me uma história.   Neste século, e momento, de loucura, Conta-me uma história.   Que seja uma narrativa de grandes distâncias, de luz estelar.   O nome da história será Tempo, Mas não deverás pronunciar o seu nome.   Conta-me uma história de encantar.     UM FALCÃO À TARDINHA ( Can I See Arcturus From Where I Stand? , 1975)   De plano em plano de luz, as asas mergulhand...