Uma viagem ao país dos surrealistas

André Breton e Leon Trótski, no México, em junho de 1938.


Há uma tendência a acreditar que a viagem dos três surrealistas ao México - refiro-me a Antonin Artaud, André Breton e Benjamin Péret — foi algo semelhante a uma lua-de-mel ou a umas férias prolongadas em um lugar exótico. O balanço final convida-nos a qualificar o mito em cada caso, embora por razões diferentes. Os dois primeiros chegaram amparados por um programa oficial de conferências, enquanto o terceiro teve que se contentar com esta terra de exílio na Segunda Guerra Mundial, quando teria preferido encontrar-se com os surrealistas que estavam asilados em Nova York, algo que foi proibido devido à sua militância trotskista.
 
Para Antonin Artaud, relata Luis Cardoza y Aragón, “o Departamento de Ação Social da Universidade Nacional Autônoma do México patrocinou três conferências. Em todas foi além dos textos que conhecemos. Apresentou-as nos dias 26, 27 e 29 de fevereiro de 1936, no Anfiteatro Bolívar, da Escola Preparatória Nacional. A Aliança Francesa patrocinou a leitura de O Teatro do Pós-Guerra em Paris, realizada em 18 de março de 1936, presidida pelo Embaixador Henri Goiran, que teve dificuldades com aquele homem vociferante, que varria o que ele representava. Os jornais, que disseram alguma coisa, mostraram-se surpresos com seus gestos e atitudes. Como patrocinar esse demônio? Na segunda conferência, dos 30 ouvintes da primeira, foram oito. Éramos cinco na terceira, dos quais só eu sabia francês. Foi a conferência mais brilhante.”
 
Talvez o revés não tenha importado muito para Antonin Artaud, pois era a parte “oficial” que ele tinha que cumprir perante o mundo “oficial”, o preço a pagar para que se concretizasse a outra esperança fundamental da sua viagem, a verdadeira aposta que vinha se jogar. Ele pouco se interessou pela capital, embora ali tenha passado vários meses de invisibilidade; nem se sentiu atraído pelos seus artistas e intelectuais que, a seu gosto, estavam demasiado contaminados pelo Ocidente. Duas exceções: a pintora María Izquierdo e o escultor Luis Monasterio. Artaud passou muitas horas sentado no café de Gante, escrevendo artigos para o El Nacional e cartas para amigos parisienses.
 
A viagem à Serra Tarahumara representa o culminar da estada de Artaud no México. Além de fugir do mundo ocidental que abominava, Artaud nutria uma esperança muito íntima de encontrar no México uma cura mágica e definitiva para seus transtornos mentais, físicos e espirituais, causados ​​por uma meningite precoce que o obrigava a ingerir ópio, láudano, heroína ou cocaína para lidar com a dor. A viagem à Serra Tarahumara começou com uma desintoxicação voluntária que Artaud assim relata: Cheguei ao sopé da montanha, joguei minha última dose de heroína numa torrente, depois montei em meu cavalo. Depois de seis dias, meu corpo não era mais feito de carne, mas de osso, ressecado pela multidão de excrementos líquidos que eu havia perdido. A falta de ópio contrai as fibras, abre correntes áridas na pele, e a epiderme nada mais é do que uma gengiva irritável, uma mandíbula à flor da pele.”
 
A experiência posterior com o peiote, que não deve ser confundido com uma droga no sentido ocidental do termo, levou-o a escrever o seguinte relato: “Tomei peiote nas montanhas do México e tinha um pacote que me fez ficar dois ou três dias entre os Tarahumaras; pensei então, naquele momento, que estava vivendo os três dias mais felizes da minha existência.” Porém, não houve cura mágica ou definitiva para Artaud e o mais positivo da viagem foi o livro Viagem ao País dos Tarahumaras, que se somou aos seus artigos no jornal El Nacional mais tarde compilados por Luis Cardoza y Aragon.
 
Nos doze anos de vida que restaram após seu retorno à França, Artaud retomou mais de uma vez à experiência mexicana. Já confinado no hospital psiquiátrico de Rodez, aos “três dias mais felizes da minha existência”, ele opôs-se à versão das maldições sofridas na Serra Tarahumara: “Estes obstáculos chamam-se maldições e durante cerca de cinco semanas tive que lutar dia após dia contra aquelas incansáveis ​​e indescritíveis hordas de bruxaria.
 
Pode-se falar da cúpula a respeito do episódio mexicano na vida e obra de Antonin Artaud. Talvez outra palavra válida seja cisma porque a mesma experiência criou um céu e um inferno, criou uma ortodoxia e a sua heterodoxia. Em quem acreditar então? No Antonin Artaud iluminado por Tutuguri ou torturado por ser o homem crucificado de Jerusalém? Só posso responder: em ambos, não tanto pelo desejo de fazer um mau jogo de palavras acerca de Artaud e o seu duplo, mas pela perda de si que sofreu até à morte e porque um ser separado de si mesmo está condenado a ser DOIS, ver e se ver com o mesmo excesso que era o signo de Antonin Artaud.
 
Talvez pela primeira e única vez na história do país, André Breton desafiou as leis da hospitalidade mexicana. É um eufemismo dizer que a sua estadia no México foi ofuscada por presságios sombrios. Ao boicote instigado pelo Partido Comunista Francês para evitar que André Breton realizasse o seu programa de conferências, foi acrescentada uma mistura perversa de xenofobia e mesquinharia, o que no México costuma se chamar de “leite ruim”. A variedade de desqualificações que a imprensa lhe deu é eloquente da palavra de ordem lançada: atacar Breton a qualquer preço. Além de trotskista, fascista, farsante, frívolo, sugeria-se mais ou menos veladamente que ele era corno, invertido e drogado ou “peiotero”. Ele foi até criticado por escrever muito bem em francês.
 
No entanto, o país não o decepcionou, como ele confidenciaria anos depois a André Parinaud — e, embora admitisse que as entrevistas com Trótski não foram isentas de tensões, atritos, mal-entendidos e desabafos, o encontro com o fundador do Exército Vermelho foi o suficiente para adoçar todas as outras amarguras. Porém, em vários momentos, a ruptura esteve prestes a ser consumada.
 
Parece que Trótski assumiu o papel de um professor severo que, embora fechasse os olhos às travessuras anticlericais de Breton, não perdoava a dissipação de seu aluno favorito. Cada vez que se encontravam, começava a pressioná-lo a apresentar um projeto do Manifesto para uma arte revolucionária independente. Van Heijenoort descreve a tensão que crescia pouco antes da viagem a Pátzcuaro: “Breton, com a respiração incendiada de Trotsky na nuca, sentia-se paralisado e não conseguia escrever”. Já em Pátzcuaro, Breton “resolveu” evitar a ruptura adoecendo com afasia, sucumbindo ao seu “complexo de Cordelia”. Ele via com grande ceticismo a afirmação de Trótski de que, uma vez avançada a construção de uma sociedade marxista, todos se tornariam artistas e a arte seria assimilada na vida cotidiana. Se a primeira previsão podia coincidir com o ditame de Lautréamont a favor de uma arte feita por e para todos, por outro lado, a segunda parecia extremamente remota.
 
Deve-se notar que a visita a Guadalajara representou o auge da tensão entre Breton e Trótski, como resultado das negociações fracassadas nas margens do lago de Michoacan. Na capital Guadalajara, a delegação dividiu-se em dois lados: os Rivera e os Breton de um lado, os Trótski e os seus seguranças do outro, numa dança de chassé-croisés e olhares em chien de faïence. A visita de Trótski a José Clemente Orozco não foi alheia à distância que pretendia marcar em relação aos artistas por Chapala. De resto, podemos ter a certeza de que o famoso episódio do Palácio de la Fatalidad, protagonizado por Breton e Rivera, dificilmente teria acontecido na companhia do terço mau de Trótski.
 
A viagem de Breton a Monterrey também pode ser listada entre os motivos que fizeram Trótski franzir a testa. André Breton e sua esposa, Jacqueline Lamba, foram convidados pelo Dr. Leónides Andreu Almazán, então chefe do Departamento de Saúde no gabinete de Lázaro Cárdenas, para um breve passeio pelo surrealismo prático, ou seja, pela inspeção sanitária no norte do país. O general Juan Andreu Almazán, irmão de Leónides, recebeu-os no quartel que André Breton descreverá com tanto entusiasmo em Souvenir du Mexique. Entrevistado pelo jornal local El Porvenir, André Breton não poupou os superlativos. É sabido pelo Souvenir du Mexique que, ao retornar de Monterrey, em 2 de julho, e poucos dias antes de partir para Morelia, Trótski deu esta “resposta desconcertante” diante da crítica de admiração de Breton: “E o que fazer, em caso de necessidade, com tal exército?”
 
Para o bem ou para o mal, após a separação iminente, André Breton regressou à Cidade do México com um rascunho do Manifesto que aperfeiçoou em poucos dias de trabalho com Trótski, conduzindo à versão final de 25 de julho de 1938. Felizes e, acima de tudo, aliviados por terem conseguido atingir o objetivo final, Trótski e Breton deixaram para trás o acúmulo de tensões e conflitos. A despedida foi emocionante, dos dois lados. Acima do ombro esquerdo de um retrato seu, Breton escreveu esta eloquente dedicatória: “A León Trotski, em memória dos dias vividos à sua luz, com minha admiração e lealdade absolutas. André Breton, México, 30 de julho de 1938.”
 
O que o México terá significado para André Breton? A resposta é múltipla: um refúgio de luz na encruzilhada do surrealismo pouco antes da Segunda Guerra Mundial; uma fonte de energia renovada para a cabeça do movimento cansado; um feliz reencontro com a infância nas paisagens de Índio Costal; mas também, uma última carta na teimosa aposta política do surrealismo; algumas amizades e inúmeros detratores cuja virulência parece apenas picar o próprio vigor e o aparecimento inesperado da Beleza numa corte de milagres, imagens que se sucedem, como o tempo, numa velocidade de deslizamento para se cristalizarem em alguns versos do poema “Fata Morgana” e uma espécie de resumo de sua estadia no Souvenir du Mexique.
 
Ao retornar a Paris, no início da primavera de 1948, Benjamin Péret deu várias entrevistas de rádio nas quais recordou os seus seis anos de exílio no “país surrealista por excelência”. Na primeira delas, menos de um mês após retornar e a uma pergunta de Dominique Arban sobre as atividades que realizou no México, Benjamin Péret respondeu: “O que fiz no México? Entediei-me profundamente. O México é um país que só está interessado no México. Tudo é tradição, mas apenas uma tradição formal, vazia de toda vida. É um país onde a maioria da população é muito pobre. A grande maioria. Acima disso, há uma fina camada de ‘mexicanos médios’ e, em seguida, de pessoas muito ricas. Um espírito de rebelião entre os pobres? De jeito nenhum. Sofrem de uma excessiva falta de cultura. E já é um eufemismo falar de cultura. Na realidade, metade da população não sabe ler nem escrever. O que eu estava fazendo lá? Qualquer coisa para sobreviver. Igualando moedas, a vida é mais cara que aqui. E a 2.500 metros de altitude cansa-se rapidamente.” Certamente, Dominique Arban iniciara o diálogo passando pelo panfleto A desonra dos Poetas, escrito publicado falsamente localizado no México para evitar possíveis represálias, no qual Péret condenava violentamente a poesia da Resistência liderada pelos ex-surrealistas Paul Eluard e Louis Aragon.
 
Dias depois, noutra entrevista, Maurice Nadeau faz-lhe a pergunta que, talvez, todos nós lhe teríamos feito e continuamos a perguntar: “Como é que ele não se sentiu confortável num país que, em muitos aspectos, deveria agradá-lo?” Péret admite que o México é um país extraordinário, especialmente porque não existe unidade nacional — ou seja, um nacionalismo que abomina em todo o lado — graças à diversidade étnica e à marginalização dos povos indígenas. Mas, mais adiante, ele esboça uma visão profética do México que provavelmente já se cumpriu: “Se formos descuidados, o México em breve será um subúrbio dos Estados Unidos, cheio de rádios, alto-falantes e chicletes, e o povo mexicano será prisioneiro de uma miséria ainda pior do que a que sofre atualmente, o que é um eufemismo...” Em 1952, Benjamin Péret alude aos violentos contrastes que ferem o país, desde a paisagem às tradições como a coexistência do amor às flores e o culto à morte, mas insiste no mistério que transcende as contradições: “Acima de tudo flutua um mistério que surge em todos os lugares.”
 
Embora a Cidade do México na década de 1940 ainda fosse a região mais transparente, Benjamin Péret nunca deixou de se sentir sufocado nas terras altas, mas o oxigênio que lhe faltava era tanto físico quanto intelectual. No início do exílio, ele sofreu das sandices e dos lugares-comuns dos jornalistas mexicanos sobre o surrealismo — “O que é o surrealismo, como você come isso?” (Ulises Monferrer, Así, 14 de março de 1942) — até que optou por não conceder mais entrevistas sobre o assunto. Depois, teve que sofrer a quarentena em que os comunistas o mantiveram por sua militância trotskista. Quase não teve contato com o México da época e, mais precisamente, com a sua elite intelectual e artística, com exceção de um punhado de dissidentes relacionados com as suas posições políticas. Péret nunca recebeu apoio das autoridades mexicanas ou da comunidade artística para encontrar um emprego de acordo com suas habilidades, com poucas exceções, e mal sobreviveu com empregos ocasionais e mal remunerados. Foi professor de francês na escola de artes plásticas La Esmeralda e mais tarde no IFAL, embora ninguém se lembre de ter aperfeiçoado o francês com um professor tão excepcional. O editor catalão Bartomeu Costa-Amic tentou ajudá-lo encomendando um prólogo para algumas fotografias de Manuel Álvarez Bravo sobre Os tesouros do Museu Nacional do México: a escultura Asteca (1943). A tensão econômica era uma constante na vida do poeta e, por isso, o exílio não lhe parecia muito diferente ou mais difícil do que o habitual pão parisiense.
 
Assim, Benjamin Péret fugiu do presente que o repugnava e libertava-se revivendo o passado mítico que, segundo ele, mal durava em algumas manifestações da vida contemporânea. Parece que o longo trabalho destinado à sua Antologia dos mitos, lendas e contos populares da América, que realizou durante o seu exílio, formava à sua volta uma redoma de cristão, prisão ou refúgio dependendo do destino dos dias, sob qual o oxigênio da poesia compensava a sufocação circundante e assim lhe permitia sobreviver no ar rarefeito do vale do Anáhuac. Assim, o seu fascínio pelo país chegou tarde, no final da sua estadia, quando descobriu Yucatán e as ruínas de Chichén Itzá, “cobertas por uma pesada armadura de silêncio”.
 
O extenso poema “Ar mexicano” é sem dúvida o mais inspirador que escreveu e, segundo Octavio Paz, “um dos mais belos textos poéticos que inspiraram a paisagem e mitos americanos”. A busca pelas origens é a obsessão que impulsiona os esforços de Péret. Seja o mundo, a poesia, as invenções ou as coisas, encontramos ao longo da sua obra e em diversas modalidades a mesma obsessão pela origem. Sua tradução francesa do livro Chilam Balam de Chumayel foi publicada pela primeira vez em Paris em 1955 e, para completar sua complexa relação de amor e ódio com o México, pouco antes de morrer em 1959, Benjamin Péret traduziu Pedra de sol de Octavio Paz. É a última tradução poética de Péret e a primeira para o francês da poesia de Paz.
 
Péret poderá parecer ingrato aos mexicanos que o acolheram junto com a sua companheira, a pintora Remedios Varo. Para ele, que era por inteiro, o exílio não era uma questão de bons costumes, nem de fórmulas diplomáticas, mas de ética em virtude da qual não há negociação possível com a verdade. Ele tentou viver fiel à sua verdade e o México não foi exceção à regra. A inteligência tem que morrer para salvar a pele? Outros dirão que tudo é uma questão de medida, de moderação, algumas palavras desconhecidas de Benjamin Péret, cuja lápide de granito continua escrita em letras escarlates: “Je ne mange pas de ce pain-là”. 


* Este texto é a tradução de “Un viaje al país de los surrealistas”, publicado aqui, em El Universal.

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