Um poeta na fila do feijão

Por Thiago Teixeira


Carlos Drummond de Andrade. Arquivo de Pedro Augusto Drummond



Não sei se nos anos de 1940 ainda se passava pela cabeça de algum poeta encastelar-se como aquele Beneditino que ficava longe do estéril turbilhão da rua (ainda que se tenha taxado a vindoura geração de 45, que já começava a aparecer, como conservadora e um tanto parnasiana), afinal, já naquela altura o turbilhão da rua passou a ser fonte de poesia, e o que o poeta buscava era mesmo sujar o brim branco na primeira esquina. Sei apenas que foi nesses anos 40 que Drummond lançou Sentimento do mundo,1 no qual o vemos em angústia por perceber entre si e o trabalhador braçal uma distância insuperável, como fica claro em “O operário no mar”. “Quem sabe se um dia o compreenderei?”, pergunta-se, explicitando o distanciamento em relação ao operário, esse agente histórico tão importante no século XX. Um mar separa Drummond do operário, mesmo com toda a vontade de se unir a ele, de modo que mesmo no político livro de 1940 há dificuldade na ideia de engajamento.
 
Impossível não nos lembrar das cartas de Mário de Andrade a Drummond, nos anos vinte, quando Mário reclamava dos homens de gabinete, dos intelectuais a quem faltava a vontade de viver e sobrava a erudição distanciada da vida. Para Mário, Drummond era então um estudioso de cultura livresca, carente do “espírito de mocidade brasileira”; uma sólida inteligência, sim, mas mobiliada à francesa, ou seja, de cultura francófona. Mário convida-o, então, a abandonar a torre de marfim da cultura europeizante: “Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo”. A resposta de Drummond, porém, é uma afirmação de amor à cultura francesa e a confissão de não se sentir brasileiro. Ele achava dificuldade em abandonar a condição de intelectual livresco, resumida pela frase que traduz bem o desafio do poeta em abandonar a timidez, o ensimesmamento, o ir em direção ao outro (reserva essa que acompanhou toda a sua obra e que aparece na figura do inacessível pai em “Retrato de família”), enfim, a dificuldade de sair do claustro para chegar ao turbilhão das ruas: “O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado”.
 
As cartas entre Mário e Drummond, aliás, são filosoficamente interessantes, porque, de um lado, temos um sensualista, um homem positivo que busca fontes na realidade perceptiva e valoriza a cultura local; do outro lado, um intelectualista, mais atento ao universalismo e afeito aos valores europeus. Dois paradigmas modernistas.
 
Drummond, claro, foi mudando conforme o passar do tempo. Ele foi deixando de ser antítese para ser síntese, conciliando os conflitos modernistas, o que foi se sedimentando no vaivém de seus temas. Em pouco tempo, por exemplo, Drummond vai das preocupações individuais (“O desaparecimento de Luísa Porto”), à necessidade de irmanar-se coletivamente, acompanhando o tempo presente e os homens presentes (“Mãos dadas”); sai do sentimento político e histórico de quem escreve cartas a Stalingrado, para dizer, logo em seguida, que os acontecimentos o enfadam, como lemos na epígrafe de Claro enigma. Ao mesmo tempo, alguns temas se repetem em movimentos pendulares: sempre a sua Minas Gerais, as imagens do campo, as imagens urbanas, a angústia e a solidão, o riso pessimista e a eterna dificuldade em acessar o outro. Essa dificuldade de aproximação ao outro é também dificuldade de comunicação, representada em poemas como “Viagem na família”, “Mineração do outro”, “Oficina irritada”, “O lutador”, “O elefante”. Já no primeiro livro, no poema “Sentimental”, a dificuldade de expressão se mostra na tentativa frustrada de se montar palavras com letras de macarrão. Homem sério, escondido por trás dos óculos e dos bigodes, Drummond já se caracterizava como um homem que não conversa, mesmo tendo um vasto coração com que se expressar.
 
Mas o deixemos torto em seu canto, enquanto ele contempla o operário distante, e vamos dar um salto de 40 anos. O Drummond maduro não se angustia mais com os seus temas, não sofre mais com a dificuldade de aproximação nem com a responsabilidade de carregar o embrulho da expressão poética. É um poeta leve, que carrega menos no riso corrosivo. Domina como nunca a técnica, a ponto de se permitir o uso de trovinhas e rimas despojadas, claro que enriquecidas pela naturalidade com que saem. Com poemas de legibilidade clara e sem quaisquer solenidades, o último Drummond responde às necessidades do momento (não quer ser o intelectual de gabinete) e seus temas reaparecem não mais carregados de conflito e peso.
 
Curiosamente, Manuel Bandeira seguiu o mesmo caminho de despojamento em Mafuá do Malungo (os intitulados “versos de circunstância”) e não é coincidência que ambos tenham desembocado no mesmo lugar, como que consolidando algumas tendências da primeira fase do Modernismo, as que pregavam o despojamento, o poema-pílula, o poema-piada, o não solene, o jogo, o riso e mesmo a alegria. Evidencia-se que tais poemas são fruto de maturidade e domínio completo da técnica lírica.
 
Ocorre que esse último Drummond não está mais no Brasil de A rosa do povo. Ainda que vivesse em mais uma ditadura, agora ele se depara com outras questões. O Brasil de então carrega a estampa do subdesenvolvimento, das crises econômicas, da desigualdade social, de uma nova fase da Guerra Fria, e padece das necessidades mais básicas. Nessa altura, o entusiasmo do país do futuro e da Bossa Nova já não existia mais. Houve expansão astronômica dos mass media, poetas tornaram-se compositores de música popular, muitos publicaram poemas em jornais de grande circulação, outros distribuíam poemas nas portas de cinema. Figuras internacionais como Brecht, Prévert, Neruda, Nicanor Parra mostravam a possibilidade do poeta como figura pública. Ferreira Gullar já havia tentado o cordel; Vinicius cantava com Tom Jobim. Politicamente falando, o Brasil dos anos 70 e 80, para além da violência institucional e das mentiras da ditadura, é um país de desigualdade social, inflação, analfabetismo e favelização.
 
Mesmo considerado um poeta oficial por alguns, verdade é que Drummond também escrevia para os jornais. Escrever para o jornal, pelo menos naquela época, era já tentativa de romper com o distanciamento e ter contato maior com o público.  No Alguma poesia dos anos 30 há já poemas publicados primeiramente em jornal, mas nos anos de 1980 a prática era mais intensa entre os poetas da época. Alguns dos poemas dessa fase foram coletados em uma obra póstuma, o Amar se aprende amando, e nele já podemos vislumbrar as preocupações do Drummond dos anos 70-80, um Drummond mais próximo do turbilhão da rua, com poemas sobre bolsa de valores, computadores, carnaval, Copa do Mundo, greve de garis, salário, liquidações de inverno. Em um dos poemas, por exemplo, por meio de rimas simples, repetitivas e pobres (feitas com base em particípio), o poeta-cronista lamenta a separação do casal de namorados, ocasionada não porque os amantes fossem de famílias inimigas ou por qualquer drama psicológico, mas porque a inflação tentacular lhes arrebatou os planos de futuro. A poesia agora tem como matéria as questões urgentes, sensível com o dia a dia de um país pobre e bloqueado. Agora ela vai até onde a fome aperta: a falta de feijão.
 
***
 
Eis que uma das principais notícias do começo de abril dos anos 1980 era o preço do feijão. Sob a batuta de Delfim Neto, a economia era corroída pela inflação. Faltava feijão nas prateleiras, o que aumentou significativamente o preço em um país assolado pelo aumento astronômico do custo de vida. O governo tentava tabelar os preços. Estados compravam feijões dos anos anteriores para equilibrar a oferta. Em São Paulo, trocou-se o feijão pela soja, no Rio de Janeiro passou-se a misturar os dois, mistura jocosamente apelidada de black and white ou sojoada (o Ministério da Agricultura, capitaneado por Amaury Stábile, chegou a recomendar o cozimento da sojoada com bicarbonato de sódio, e há relato de panelas de pressão que explodiram). Não faltou, claro, matéria jornalística ensinando a fazer as melhores receitas com feijão e soja.
 
No Rio Grande do Sul, em uma das inúmeras manifestações contra o governo, um evento popular receberia a alcunha de “passeata da panela vazia”, e tinha como slogan a frase: “Mais feijão e abaixo o João” (o presidente era João Figueiredo). Em Recife, um grupo escolar promoveu uma manifestação em que crianças carregavam cartazes nos quais se lia “Queremos feijão e não tapeação”. Em Diamante, sertão paraibano, sessenta mulheres vitimadas pela seca comandaram um saque em um posto médico para retirar remédios e comida (regiões do nordeste, incluindo o Ceará e o sertão paraibano, eram assoladas pela seca que vitimava 5 milhões de pessoas). O Rio de Janeiro ficou sem abastecimento de feijão; por isso, no mercado Disco da rua Riachuelo, após chegar uma tonelada do vegetal, em menos de duas horas já havia se esgotado. Na feira livre da rua Barão de Cotegipe, há relatos de que, em 15 minutos, esgotou-se uma barraca com 380 quilos de feijões pretos sabidamente bichados.
 
Começaram os distúrbios. O povo carioca passou a frequentar as chamadas filas do feijão, que eram importados da Argentina pelo governo do Rio. Os mercados mal eram abastecidos com feijão preto, para se esgotarem no mesmo dia, com direito a imensas filas e tumultos. Pelotões de choque eram escalados, pois as filas eram organizadas pela PM, a base de gás lacrimogêneo, cassetete e prisões. Em Caxias, a polícia feriu 18 pessoas ao dissolver uma das filas, agora apelidadas de filas do sofrimento.
 
Um dos distúrbios nos interessa pessoalmente, noticiado em 23 de outubro de 1980. No supermercado Leão, em Campo Grande, anunciavam-se 24 toneladas de feijão, a serem distribuídas em outras redes. 60 mil policiais foram escalados, o bastante para um tumulto de 13 horas, fechamento do comércio, vinte desmaios e inúmeros feridos. Foi então que, no dia 25 de outubro de 1980, após ler a notícia de Campo Grande e se deparar com as fotografias de Rogério Reis, Drummond publicou “A excitante fila do feijão”:
 
 
A excitante fila do feijão
 
Larga, poeta, a mesa de escritório,
esquece a poesia burocrática
e vai cedinho à fila do feijão.
 
 Cedinho, eu disse? Vai, mas é de véspera,
seja noite de estrela ou chuva grossa,
e sem certeza de trazer dois quilos.
 
Certeza não terás, mas esperança
(que substitui, em qualquer caso, tudo),
uma espera-esperança de dez horas.
 
 Dez, doze ou mais: o tempo não importa
quando aperta o desejo brasileiro
de ter no prato a preta, amiga vagem.
 
 Camburões, patrulhinhas te protegem
e gás lacrimogêneo facilita
o ato de comprar a tua cota.
 
 Se levas cassetete na cabeça
ou no braço, nas costas, na virilha,
não o leves a mal: é por teu bem.
 
 O feijão é de todos, em princípio,
tal como a liberdade, o amor, o ar.
Mas há que conquistá-lo a teus irmãos.
 
 Bocas oitenta mil vão disputando
cada manhã o que somente chega
para de vinte mil matar a gula.
 
 Insiste, não desistas: amanhã
outros vinte mil quilos em pacotes
serão distribuídos dessa forma.
 
 A conta-gotas vai-se escoando o estoque
armazenado nos porões do Estado.
Assim não falta nunca feijão-preto
 
 (embora falte sempre nas panelas).
Método esconde-pinga: não percebes
que ele torna excitante a tua busca?
 
 Supermercados erguem barricadas
contra esse teu projeto de comer.
Há gritos, há desmaios, há prisões.
 
 Suspense à la Hitchcock ante as cerradas
portas de bronze, guardas do escondido
papilionáceo grão que ambicionas.
 
 É a grande aventura oferecida
ao morno cotidiano em que vegetas.
Instante de vibrar, curtir a vida
 
 na dimensão dramática da luta
por um ideal pedestre mas autêntico:
Feijão! Feijão, ao menos um tiquinho!
 
Caldinho de feijão para as crianças…
Feijoada, essa não: é sonho puro,
mas um feijão modesto e camarada
 
 que lembre os tempos tão desmoronados
em que ele florescia atrás da casa
sem o olho normativo da Cobal.
 
 Se nada conseguires… tudo bem.
Esperar é que vale – o povo sabe
enquanto leva as suas bordoadas.
 
 Larga, poeta, o verso comedido,
a paz do teu jardim vocabular,
e vai sofrer na fila do feijão.
 
Vemos aí a terza rima dantesca, a mesma que o poeta usou para realizar o maior poema da nossa língua (“A máquina do mundo”), em uma voz lírica que, como o fez Mário nos anos 20, convoca o poeta a largar a mesa de escritório e a poesia burocrática, para enfrentar, com o povo, a fila do feijão. O uso da terza rima, típica dos poemas épicos, anuncia a seriedade do assunto, mesmo que o tom seja um tanto despojado. O poema percebe a dimensão dramática da luta, vê no racionamento do feijão uma decadência da época, de tempos desmoronados, e ainda prega insistência no caso de a luta acabar frustrada — o mesmo tema de “O lutador” e “O elefante”.
 
O poema não deve ser lido sem o acompanhamento das fotografias, que retratam o enfrentamento entre a polícia e povo, além de mostrar o drama de José Luis Valentim, homem que ficou onze horas na fila para voltar de mãos vazias. A combinação entre fotografia e poesia remete-se aos tempos de Vanguarda, quando as fotocolagens ganharam dimensões políticas e eram acompanhadas por textos literários (lembremo-nos que o mais político dos líricos, como Brecht, publicou Friedensfibel, uma espécie de álbum em que fotografias históricas eram acompanhadas com versos). As colocações de Drummond são típicas do seu estilo, com certo riso e ironia, uso de epítetos para elevar o feijão a uma figura de disputa épica. O cotidiano do poeta-burocrata é morno — e o uso do verbo “vegetas” é um jogo para equipará-lo ao ambicionado vegetal —, de modo que a busca do feijão traz certo drama à la Hitchcock, certa excitação e aventura; em outras palavras, a invocação do eu lírico traz em seu bojo um distanciamento em relação à realidade retratada, por que ela, a realidade, é vista como uma novidade onde a vida acontece, longe do escritório (lembremo-nos do título de seu diário: “O observador no escritório”). 
 
Nitidamente Drummond incorpora os acontecimentos reais e cotidianos, como aconselhara Mário, naturalmente devotando-se ao Brasil; porém, mesmo aqui não há puro engajar-se ou mesmo o superar da distância, pois insiste, sutilmente, uma resina de não pertencimento. Percebe-se que o poeta mantém consciência de que está afastado da luta pelo feijão, ele a conhece a distância, como se conhece um filme de Hitchcock. Se ele se exorta a abandonar o escritório é porque vive em um escritório. O poema, em verdade, não sai do campo desiderativo e apenas anuncia o que deve ser feito; elabora uma poética não realizada.  Algo parecido acontece com “Oficina irritada”, no qual Drummond deseja para o poema um hermetismo que ele definitivamente não tem.
 
Mas esse verniz de distanciamento é o coração de Drummond. É esse distanciamento o que lhe dá a visão crítica, a formatação do seu estado lírico, a não aceitação da realidade dada. É esse distanciamento o que vedou o poeta contra a Indústria cultural e os modismos, e fez dele um poeta popular, mas não populista. Com esse distanciamento, ele nunca reduziu a qualidade dos poemas em prol do acesso maior. Ele sempre foi o homem escondido nos óculos e bigodes, uma visão distanciada a ver passar as pernas pretas e amarelas, sempre dividido entre os olhos da lucidez e o emotivo coração que nada fala. Seu lirismo não é kitsch, justamente por conta do distanciamento, e talvez isso tenha dado ao seu verso um meio tom entre o lírico e o épico, entre o emocional e o racional, entre o verso e a prosa — isso é aquilo.
 
Não obstante tudo isso, “A excitante fila do feijão” é claramente um poema sobre o povo, um poema político. Remete-nos ao “Consideração do poema”, que abre A rosa do povo:
 
tão firme, tão fiel,
o povo, meu poema, te atravessa.
 
Há que se considerar a ambiguidade do último verso. É o poema que, tal uma lâmina, atravessa o povo, ou é o povo que atravessa o poema? E atravessar? É cortar, misturar, ou passar para o outro lado?
 
Povo e poema uma só carne. Povo e poema atravessados. Voz lírica e voz política uma faca só lâmina. No último Drummond os acontecimentos não mais o enfadam, eles o convocam.
 
 Larga, poeta, o verso comedido,
a paz do teu jardim vocabular,
e vai sofrer na fila do feijão.
 
Notas
 
1 Sobre o título, gostaria de chamar a atenção para uma ambiguidade sintática, que é repetida no Ungaretti de Sentimento do tempo. Ocorre que podemos dar duas leituras para esse título, abrindo as seguintes perspectivas de leitura em relação ao livro: 1. trata-se de poemas que abordam o sentimento do poeta em relação ao mundo, como se nele, antena da raça, corresse a percepção da sua época, ou 2. trata-se de poemas que captam o sentir do mundo, uma espécie de Zeitgeist, como se o mundo se antropomorfizasse e o poeta apenas se incumbisse de lhe captar os eflúvios sentimentais. Ou seja, estamos diante do sentimento do indivíduo (força lírica) de 1, ou diante do sentimento coletivo e histórico (força épica) de 2? De quem é o sentimento afinal: do poeta ou do mundo? A resposta: dos dois ao mesmo tempo. Drummond é sempre dois impulsos simultâneos e essa é uma das forças de sua poesia. Ele sempre será, ao mesmo tempo, o poeta da roça e do elevador. A poesia de Drummond é o exemplo mais acabado de que, em poesia, inexiste o princípio de contradição aristotélico. O leite se mistura ao sangue, as mãos de uma criança são leves e pesadas, um enigma pode ser claro: isso é aquilo.


Thiago Teixeira é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, atualmente cursa Filosofia na Universidade Federal de São Paulo. Escreve para o blog Escritos sobre escritos.
 
 
 

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