Os acadêmicos que não gostam de ler
Por Rafael Kafka
Ilustração: Ximo Abadia. |
Fato curioso que percebo em muitos acadêmicos que me rodeiam: a falta de gosto pelo hábito de leitura. Penso em específico em Teresa. Uma das maiores e mais sensíveis inteligências que conheço, ela literalmente lê aquilo que o programa de um determinado curso de pós-graduação a manda ler. Um dia, estávamos numa livraria e eu observei algum autor que sinto que preciso ler — acredito que James Baldwin —, uma espécie de dívida literária, como se fosse um compromisso meu comigo mesmo. Ela disse que não entendia esse sentimento, que não tem isso para consigo e fiquei imaginando que ela não entende o real sentimento de alguém que faz da leitura um combustível para sua existência cotidiana, não a que é apenas marcada pelos resultados acadêmicos.
A leitura é acima de tudo prazer, mas também é uma tarefa de descoberta do mundo. Um autor leva a outro e assim vou criando malhas de leitura que minha mente torna necessárias serem percorridas. Exemplo: em conversa com meu possível orientador de mestrado, decidi ler o livro de Cláudio Willer sobre gnose para estudar um autor beat. Willer cita Yeats e decidi arranjar um livro desse autor para ler. Os diálogos com Otávio, esse orientador, têm muito dessa verve por ele ser um grande leitor, um acadêmico leitor. Cada conversa revela um sem número de referências a mais a serem lidas, o que me deixa muito encantado.
Boa parte dos acadêmicos que eu conheço me parece mais preocupada em ter o título de mestre e doutor por questões bem pragmáticas. Questões de status social e questões de ordem financeira. Elas não estão preocupadas necessariamente em aprender algo pelo prazer da descoberta. Tanto que ficam muito chocadas quando alguém próximo a si lê um volume com número razoável de páginas.
A leitura é algo pragmático, não algo introjetado. Penso que numa sociedade em que a leitura, em especial a literária, é uma coisa que todos, ou boa parte da sociedade pelo menos, têm dentro de si o ato de ler não é condicionado tão somente por metas imediatas e muito restritas. Ler nesse contexto se torna um gesto intuitivo e autêntico por meio do qual as pessoas procuram entender o mundo ao seu redor e a si mesmas com um olhar autônomo.
O leitor orgânico é um leitor inquieto. Como disse acima, um autor leva a outro e o leitor orgânico parte de uma referência para outra de modo aberto e vivo. Ler para quem realmente gosta é uma tarefa marcada pela insatisfação cognitiva. E isso não se resume apenas à leitura de livros. Mesmo no audiovisual é comum encontrarmos leitores os quais procuram referências de diferentes diretores em variadas obras fílmicas de modo a expandir seu horizonte teórico.
Claro que não nego a ocorrência de uma série de fatos que tornam a leitura mais difícil e inalcançável em nossos dias. Em um momento no qual discutimos o fim da jornada 6x1, fica mais evidente a necessidade de trabalhadores terem mais tempo para si e seus entes queridos, tempo para cuidarem de sua saúde e tempo e incentivo para ler. Muitos leitores vorazes se perdem quando a vida adulta chega e com ela vêm diversos afazeres dos quais não podemos fugir. Vestibular, busca por emprego, repartir dívidas com família etc.
Lembro com muita angústia de como eu quando adolescente encontrava na leitura uma forma de aliviar meus sintomas de ansiedade os quais eram piorados pela cobrança terrível de largar os estudos e ir trabalhar. A leitura me oferecia um mundo mais belo do que aquele do subemprego e dos baixos salários. Fiquei com vontade de fazer curso superior e acabei optando por ser professor, pois acreditava — e ainda acredito — que nessa profissão eu poderia aprender trabalhando, poderia ler e discutir com meus alunos criando uma grande comunidade de aprendizado.
Consegui sobreviver a esse tempo difícil, conseguir um emprego num cargo público e se não ganho rios de dinheiro pelo menos posso ler e aprender com meus alunos — apesar de que hoje estou em casa cuidando da saúde mental combalida. Todavia, esse tempo longe da escola me permitiu dar o devido valor ao esforço que tive para sair da condição em que morava, inclusive graças a programas sociais importantes. A leitura sempre esteve ali como uma forma de amplitude da minha existência, como um elemento a me revelar muitas possibilidades de existir.
Quando uma das crises depressivas mais fortes que tive me deixou sem ler por semanas durante a pandemia, eu me sentia péssimo. Só queria ver o tempo passar e a noite chegar, quando eu me via menos inundado por sentimentos ruins. Hoje tenho um bom termômetro de meus níveis de humor minha capacidade de ler.
Dito tudo isso, entendo que boa parte da massa trabalhadora brasileira não tenha condições de ter acesso ao hábito de ler. O dinheiro é curto e o tempo mais ainda. E o cansaço brabo demais. Todavia me soa curioso gente que está produzindo ciência e simplesmente não gosta de ler, lendo quando muito os textos de seus programas de pós-graduação e até mesmo criticando quem gosta de ler vorazmente por considerar a leitura algo importante demais para ser feito a conta gotas.
Lembro de Janis, outra amiga minha, criticando minha postura expositiva nas redes sociais. Para quem não me acompanha por lá, costumava falar bastante sobre meus estados emocionais e conflitos psicológicos de um jeito bem desnecessário em alguns momentos. Num último ato de resistência antes de aceitar que tal exposição era tosca, recomendei, acreditem, que ela lesse sobre literatura de testemunho para entender minha necessidade de concretizar minha dor em palavras. Ela me respondeu que não leria, pois ela lê somente aquilo que a interessa academicamente.
Mesmo eu achando agora o motivo pelo qual falei aquilo a ela muito estúpido, não deixo de perceber na sua visão mais uma vez a leitura como algo pragmático, não como um projeto de descoberta do mundo. A leitura tem um fim fora de si. A leitura em si não é prazerosa, não se volta para a descoberta da realidade. A impressão que tenho é que esses sujeitos se trancam em suas bolhas cognitivas e leem e percebem somente aquilo que o seu campo intelectual permite com suas regras.
O direito à literatura, como apregoado por Antonio Candido, tem como meta a construção de sujeitos plenamente leitores, sujeitos que dentro de suas possibilidades existenciais concretas respiram e vivem literatura. É um paradoxo curioso pesquisadores e educadores que deveriam amar a leitura rechaçá-la com tanto vigor de suas vidas cotidianas, o que indica que a leitura ainda é muito usada como uma ferramenta de ascensão social e não de prazer em si mesma.
Comentários