Por Renildo Rene
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Cris Judar. Foto: Tania Judar |
Quando imagina que nós viveríamos o fim de toda a água do
mundo como as personagens de José Saramago enfrentam a cegueira, penso que
Magda, uma das personagens deste romance, acredita em uma anulação de forças
sexuais: as relações heterossexuais cairiam de seu pedestal — porque a
necessidade do líquido se encontraria em qualquer corpo — e as relações
homossexuais descobririam outros sentidos para navegar no nosso “mundo de
crenças” — porque boa parte de sua existência esteve apoiada na contraposição
ao normativo. E no caso de seu relacionamento com Glória, esse colapso
significaria também um rompimento do encaixe das duas enquanto um casal,
devolvendo a elas a aridez da solidão, que não sabemos se é desejada, destinada
e/ ou temida.
Em
Oito do sete, parece ser confuso encontrar
maneiras de acompanhar esse relacionamento por um sentido mais cronológico:
como começou, o que aconteceu e como elas se mantêm juntas (ou se realmente
continuam, após o fim da leitura). Talvez seja melhor que não saibamos de tudo:
para estar a par, a descontinuidade é opção viável de obter significados. Se a
metáfora dos cegos é um instrumento para pensar as relações comunitárias, a
metáfora dos corpos vazios de água pensa a interdependência do corpo para além
do que nos foi ensinado, sobretudo no sentido religioso.
Pareço estar muito confuso? Deixe-me introduzir novamente.
Magda e Glória são duas narradoras criadas por Cris Judar dentro de seu
primeiro romance, publicado em 2017 pela editora Reformatório, interpretando
movimentos de como a estrutura narrativa pode se modificar e ser sentida diante
da confusão de sentimento e do caráter dos sujeitos. Cada uma assume o papel de
narrar nas duas primeiras partes que iniciam o livro, respectivamente. O nível
da pessoalidade da primeira se estende por vários excertos que acompanham a
definição do seu lugar no mundo, marcado pela dominação dos ruídos e frequentes
traços da figura masculina, como o seu pai. Intercalando com intervalos de
anedotas curtas, Magda apresenta os contornos da construção de sua fragilidade
enquanto mulher, tentando não somente entender, mas entregar ao leitor a
atmosfera em estilhaços de seu relacionamento.
Ainda que não possamos falar inteiramente de um nível de
profundidade narrativa, se colocamos como régua para isso a inteira
apresentação dos eventos em ordem detalhada (entre o que a narradora vê e
sente), a parte de Magda como narradora disponibiliza quase que totalmente as
peças desse quebra-cabeça, seja por seu tamanho no livro e/ou seja pelo grau de
imagens mais compreensíveis e metafóricas. Porém, em seguida não aparece espaço
para montar esse quebra-cabeça, só outras vertentes que saem do mesmo núcleo de
personagens.
Glória, em tempo específico vivendo longe da companheira em
Roma, aparece na segunda parte se manifestando como uma “outsider” dos eventos
que testemunha — o namoro, a juventude e a cidade italiana. Seus fragmentos
narrativos, então, estão dispostos obedecendo sua autodefinição e duas ordens
de suas experiências: a) entregar o famoso outro lado da história no
relacionamento e b) colocar imagens da heteronormatividade dos homens como um
território muito mais superficial, definido, pouco profundo e flutuante do que
o das mulheres sáficas, principalmente quando estas são presumidas nos limites
da marginalidade do sexo.
O “outro lado”, vale dizer, está muito mais próximo de uma
conversa jogada fora, sem necessidade de aparecer como um caso de desmentira e/
ou descrença do que foi dito anteriormente. As duas parecem ter uma consciência
(auto)narrativa muito forte de que contam algo e muitas vezes para si mesmas,
mas não sabem que na totalidade deste material uma está seguindo a outra.
Glória provoca o leitor por sua postura muito defensiva e direta, muitas vezes
opinando orgulhosamente sobre Magda, e esta, à altura do campeonato, pode ser
desvinculada da confiabilidade cativante despertada nas primeiras páginas.
Todas as passagens mais metafóricas, reflexivas e fissuradas
na intimidade e inseguranças criadas por Magda passam a ganhar um ar de jogada
quando passamos a ler Glória; um jogo próprio do texto mesmo, montado na
escritura. E quando falo de “versões” diferentes para cada eu da narrativa,
saio de eventos — uma vez que eles ganham menos importância aqui — para
sujeitos específicos. Ou seja, os depoimentos se contrapõem no próprio
exercício do romance (e estão, em conjunto, configurando-o), no sentido de
enunciar a personalidade uma da outra no princípio da complicada diferença de
entender o outro. Isso ficando mais transparente na parte de Glória, apenas
cria as divergências escapadas de dentro da narrativa.
Nos resta tentar localizar o romance de Cris Judar montado
sob contrapropostas de olhar o relacionamento entre duas mulheres,
(des)negociando o formato mais normativo do gênero por sua estrutura alinear, a
natureza polivalente de quem narra e a força mental de encarar julgamento para
as personagens. Optando por fragmentos, excertos e pausas, a escrita de Cris
toca no intenso com o mínimo possível e queixa o convencional pelas
inseguranças dissidentes incapazes de serem identificadas com exatidão.
Mas o jogo ainda se desmembra com mais dois outros
narradores ao final do texto, o anjo Serafim e a cidade Roma. Saindo da jogada
trivial que parece remontar as brigas de casais, a terceira parte destina a
Serafim esboçar pontes entre o divino e o humano.
Em última instância, “Roma” é quase um monólogo provocativo
sobre o ínfimo papel do contemporâneo dentro da eternidade, da milenariedade da
cidade acima do que ocorre hoje. Seu espaço de cidade é pontilhado em voz
narrativa pelo acúmulo testemunhal de experiências históricas (sejam elas mais
canônicas ou banais) e, ao mesmo tempo, da insignificância/neutralidade que se
dá a isso. Um anjo e uma cidade! Como eles repercutem na própria leitura
naquelas páginas finais?
O romance implode de dentro para fora porque as quatro vozes
se digladiam entre si, mas a arena narrativa em cada uma diminui. Um gesto por
vezes tímido da autoria para arquitetar a dúvida e a confiança sobre a rispidez
dos corpos diante do tempo. Glória e Magda são os corpos pensantes entre si,
movimentam-se em imanência contra um histórico masculino de anulamento de seus
desejos, ainda que não saibamos concretamente como eles se prismam; Serafim é a
própria experiência transcendental corpórea com certa inclinação de recriar o
pensamento do etéreo ao humano (se a religião esteve anulando certas
existências, o aparecimento do anjo me parece ser uma contra-visão para isso).
E, por fim, Roma instiga o próprio material do romance além
de ter a estrutura clássica como referência: Cris Judar destina as páginas
finais a criar indigestões articulatórias sobre o tema da sexualidade. Mesmo
que esteja tudo muito tímido, é justamente nesta parte que somos lembrados das
contradições e insignificações dos corpos na terra. Ao mesmo tempo que todos
que representam certas dissidências nunca serão os primeiros porque a abertura
da sexualidade sempre esteve presente e afora a normatividade heterossexual,
questionar e confundir o leitor do romance me parece ser um exercício de manter
a linguagem do sexo contemporânea aos próprios desejos de sublimação.
Não à toa, Glória e Magda não apresentam nada de único e
singular que as diferencie no nosso mundo, mas as suas memórias dimensionadas
na interioridade do romance outorgam a essência mais íntima de seus desejos.
Para ser lido,
Oito de sete precisa que o leitor extraia a essência do
intimismo misterioso no desejo real; ou, como disse Marcelo Ariel na
apresentação do livro, precisa-se ocupar um campo onde a nossa existência
humana se mistura em outros tempos e espaços que não aqueles que nos deram.
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Oito do seteCris Judar
Reformatório, 2017
152p.
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