O que nos observa em A árvore mais sozinha do mundo

Por Vinícius de Silva e Souza





Desde há alguns anos que Mariana Salomão Carrara vem se mostrando uma grande narradora. Sua obra, bastante característica, peculiar e madura desde o início, tem como cerne a narração e o tempo (não por acaso já se declarou, por diversas vezes, leitora de Elvira Vigna).
 
Mas, se em Se Deus me chamar não vou temos algo de cronológico na organização temporal da narrativa pelos olhos de uma criança, em É sempre a hora da nossa morte amém, temos uma narrativa mais intrincada e que se desdobra com o passar do tempo, na mente de uma mulher idosa; em Não fosse as sílabas do sábado trabalha com o vai e vem do luto também pelos olhos de uma única personagem; e, em A árvore mais sozinha do mundo, a autora rompe com estruturas estabelecidas para criar quatro narradores diversos que observam e discorrem sobre um mesmo ponto em comum: uma família.
 
O espelho, o carro, a roupa e a árvore. Partindo de objetos inanimados e sempre tão presentes no cotidiano, desvendamos o dia a dia de uma família de plantadores de tabaco no Rio Grande do Sul. Se os narradores são quatro, os personagens são oito: os objetos e os membros da família:  Carlos, pai, Guerlinda, mãe, e as filhas Alice e Maria. (Pedro, tão pequeno e ainda mudo, apenas se pincela aqui e ali).
 
Aos poucos, desvendamos um pouco mais sobre cada um. A relação entre Alice e Maria se destaca ao longo da narrativa, explorando irmandade mesmo diante de tão grandes diferenças. Alice, a mais velha, só pensa em vencer um concurso de beleza, enquanto a pequena, inteligente e afiada, quer ser minivereadora. Mediando os conflitos, surge Guerlinda, a típica dona de casa que se vê abalada pelo retorno de sua mãe, Elvira, lá pelas tantas, e busca ajudar Carlos como pôde. O marido e patriarca, por fim, foge de estereótipos dessa posição: vive assolado por uma tristeza sem fim, deprimido, solitário e calado.
 
Mariana Salomão Carrara acerta precisamente nas sutilezas. Gradualmente percebemos quem narra e gradualmente também nos tocamos das personalidades de cada narrador. A árvore, presença mais marcante e mais velha, transborda reflexões e olhares afetuosos à família, ao contrário do espelho, talvez, ironicamente, o narrador mais perspicaz e aprofundado no que diz respeito a observar e analisar a família. É por ele que todos da casa passam, se reúnem à mesa para comer diante dele, logo, os detalhes mais sutis e o que se têm de mais interno se mostra apenas a ele. Ao passo que tudo que ocorre no exterior da casa, é visto pela árvore, com um olhar do alto, acima de toda a miséria que aflige a família, e capaz de enxergar a plantação como um todo. O carro, por sua vez, incomoda um pouco com alguns forçados erros ortográficos e de linguajar, enquanto a roupa pouco aparece.
 
É inegável a posição da árvore como principal voz do romance, não só por estar no título da obra, mas também por possuir o maior número de seções sob seu olhar e por explorar tão bem esse tão afiado olhar.
E, nas miudezas do cotidiano, vai se revelando as condições precárias de vivência e sobrevivência da família, em um estudo com ritmo mais lento do que a autora costuma empregar nas suas obras, o que, por vezes, satura, mas em um geral, encanta e aproxima, fazendo-nos imergir cada vez mais.  
 
Mas, se o ritmo não prejudica tanto o andamento da narrativa, a explosão de ações mais concretas apenas no fim, sim. Abrupto demais o longo momento apocalíptico que encerra a obra. Após uma primeira parte mais lenta, de plantação, a colheita vem na força de uma tempestade, e não em uma crescente, o que por si só não é um problema, se não fosse pelo inconclusivo encerramento.
 
Com ares de Vidas secas e com um bem executado exercício de linguagem e fuga da zona de conforto, essa mais recente obra de Mariana Salomão Carrara a coloca, mais uma vez, como uma das escritoras contemporâneas mais interessantes, com sólida prosa transbordando maturidade. Se há rusgas nesse trabalho, há também aplausos ao seu eterno exercício de narração e ansiedade pelos próximos voos que alçará.


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A árvore mais sozinha do mundo
Mariana Salomão Carrara
Todavia, 2024
208p.

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