O monstruoso na literatura de Aurora Venturini

Por Gabriella Kelmer


Aurora Venturini. Foto: Claudia Bernaldo de Quirós


 
Publicados no Brasil pela Fósforo, com tradução de Mariana Sanchez, os romances As primas e Nós, os Caserta têm muito em comum. Este último — publicado inicialmente na década de 1960, depois reeditado em 1992 — tem a senioridade, tendo sido o ponto de inflexão em que talvez se tenha estabelecido, para a jovem Aurora Venturini, o espaço literário que a interessava ocupar. Entretanto, é sua literatura verdadeiramente descoberta na Argentina deste século apenas em 2007, por meio da vitória de As primas no prêmio Nova Novela do jornal Página/12. Enfim, aos 85 anos, depois de décadas de uma imerecida desatenção do público, tornou-se, por uma radicalidade surpreendente no tratamento estético dado a temáticas pouco frequentes na literatura, uma escritora celebrada.
 
Fosse-me dado um único qualificador para a literatura da argentina, nas duas obras referidas, escolheria desconcertante. Não habitam em suas obras apenas flagrante nudez no tratamento das deficiências físicas e cognitivas que acometem suas personagens, nem somente uma perturbadora fascinação pelas sujidades, pelas deformidades e pelo baixo corporal; mais do que isso, são todos esses aspectos perfilados por uma implacável voracidade na operação narrativa, constituída por uma linguagem nua, impiedosa, que propõe crua e naturalmente um mundo habitado por sombras, repugnância, rejeição.
 
Em famílias maculadas por padecimentos, discriminação e desajuste, as narrativas introduzem narradoras-protagonistas neurodivergentes (denominação que soaria demasiado estranha aos romances, cujas perspectivas não registram qualquer evitação da impropriedade ou do capacitismo, seja este direcionado para fora ou autocentrado). Cada uma das personagens habita similarmente um universo transicional, entre a vivência marginal do núcleo em que nasceram e a vida em sociedade, conseguindo, por meio de excepcionais vocações artísticas, exercer uma parcela de liberdade longe do seio familiar. Os pais, evocados repetidamente nos dois textos como antagonistas inclementes, repelem as deficiências dos filhos, a quem atribuem a culpa de serem o que são. Surge dessa zona intervalar, advinda de uma rejeição nascida com a prole, um desentendimento mútuo que os torna cruéis e outrora até violentos uns com os outros.
 
Em Nós, os Caserta, Chela — apelido de María Micaela Strodolini, herdeira dos sicilianos Caserta — narra a história de seu crescimento, experimentado em uma solidão quase absoluta. Criança atípica, marcada por uma inteligência incomum, e “morena”, traço que flagrantemente a distancia do padrão de beleza aceito pela família, é condenada a viver em isolamento na estância dos pais, confinada a um sótão que habita por muitos anos em companhia de sua coruja, Bertoldo, e depois do irmão mais novo, Juan Sebástian, ele mesmo nascido com deficiência cognitiva e nanismo, sendo este um traço que se revela parte da herança familiar italiana. A narradora, cujas ações se dividem entre uma excepcional e privilegiada compreensão das artes e um comportamento errático, estabelece desde então um certo desacerto entre a persona culta e cognitivamente privilegiada e a menina — depois mulher — que enfrenta graves problemas de socialização, embora sejam elas a mesma pessoa. Move-se Chela pelo mundo, encontrando nele companhias que ocupam as mesmas sombras que ela, e durante todo o percurso, vez e outra direcionado à Europa dos seus antepassados, vê-se sempre retornando à estância familiar, apesar dos traumas deixados pela sua criação.
 
No absurdo enfrentado pelo isolamento da vida diária e, mais tarde, da desilusão amorosa e da busca pela própria história, tornam-se as referências artísticas de Chela, embora decerto enriquecedoras, algo deslocadas; exemplarmente, ressoa desde o sótão a voz de Rimbaud, cujos poemas são aplicados pela narradora aos mais diferentes contextos, sendo esse o mesmo espaço em que Chela se comunica com a coruja e elabora planos para assombrar as “gentes” da casa junto ao irmão, em uma atmosfera insólita bastante teatralizada. A esse respeito, aliás, atravessa a história um subtexto fantástico, que oferece solução alternativa, embora propositadamente exagerada, aos acontecimentos do texto, como é o caso quando do nascimento de Juan Sebástian, cujo nome vira, na boca da solitária irmã mais velha, uma evocação e um chamamento — de certo modo, uma profecia — que antecipa o isolamento experimentado também por esse filho, outro enjeitado da vida familiar. Todavia, se Chela envolve-se em rituais do além-mundo, declara-se uma herdeira da navegação de Odisseu ao buscar um tesouro mediterrâneo e escuta as vozes de seus antepassados, a narrativa vez e outra articula tais eventos em uma linguagem que os dessacraliza, ironizando a recorrência ao sobrenatural justamente por se valer dela.
 
“Depois de beber o elixir – confesso que nos excedemos –, vimos que nos ciprestes do caminho, em número de oito, brotaram braços e pernas e capacidade oral para entoar salmos, e vieram em nosso auxílio para carregarmos a falecida em seu relicário. Ah, sim... eram os capuchinhos da fortaleza do século 17, cantando louvores a Nossa Senhora. Eu tiritava num crepúsculo interno mais horrendo que a alta noite e suas circunstâncias, e aqueles oito, em marcha ereta sem tropeço, portavam o baú com seu amado e atroz conteúdo.” (Venturini, 2023, p. 178-179)



Em As primas, conhecemos Yuna, personagem quem atravessa processo de amadurecimento contíguo ao de Chela. Ela também vive em uma família atípica, já abandonada pela figura paterna (evento que a própria Yuna comemora, satisfeita em ver o pai escapar à dita anormalidade do núcleo familiar).  São as figuras femininas — a mãe, rigorosa professora, a irmã, Betina, cuja deficiência é descrita implacavelmente, e as primas, Carina, que tem problemas cognitivos, e Petra, que dá continuidade à representação do nanismo no âmbito da literatura de Venturini — as que se destacam na experiência de Yuna. Destacam-se na narrativa eventos chocantes, horrorosos, absurdos, narrados com uma simplicidade que gera no leitor um imenso desconforto: é esse o caso de um aborto, expressamente descrito; da alusão ao batismo de “material orgânico” de um casal que não pode ter filhos; de um assassinato que permanece não resolvido ao fim da narrativa; do estupro a que é submetida Betina. Tais ocorrências são simultâneas à expressão artística de Yuna na pintura, sendo a personagem excepcional ao tomar como inspiração os acontecimentos de sua família tragicômica.
 
A protagonista, ela também frequentadora de escolas para crianças atípicas, introduz uma limitação linguística e cognitiva que transforma sua narração. Não há uma discussão que adote termos científicos, sendo a deficiência antes vivida como estigma e ofensa. Há, entretanto, um crescimento da personagem durante a obra, tornando-se ela mais compassiva àqueles que dificilmente escapam às suas condições; ela mesma, de outro modo, encontra sua diferenciação por meio da beleza e do talento artístico, como boias de salvação que tornam possível uma outra vida, apartada da experiência da infância. Há nela um desejo de deixar tudo para trás, o que é afirmado ao fim do romance, quando diz a narradora ter apagado todo o vivido (assertiva de que se deve desconfiar).
 
“Assim sendo me vieram umas inspirações enormes e eu sonhava os acontecimentos vividos transformando-os em figuras cada vez mais coloridas e belas dentro da minha imaginação se moviam e conversavam comigo me obrigando a tirá-las d dentro e despejá-las nos papelões e nas telas e eu era tipo um ser estranho e dependente das ordens que aquelas formas ou figuras mandavam tiranicamente e que se eu não respondesse elas mordiam meu cérebro e meu coração com dentes de vidro quando a vivência tinha algum significado e exigia ser vertida numa tela ou papelão. Eu me sinto mal se não obedeço a essas vozes sussurrantes que incomodam e dou os parabéns para mim mesma quando, terminada a pintura, mãos invisíveis aplaudem tenuamente com batidas de asas de borboletas e gorjeios de inefáveis pássaros pequenininhos como beija-flores cantam loas e então eu entendo que a obra já vai para um concurso, para uma exposição.” (Venturini, 2022, p. 63)
 
Nota-se, nos dois romances, uma afinidade temática e composicional, em especial no que compete à tipologia do narrador e às características das personagens. A diferença fica centrada principalmente no procedimento eleito para cada narração. Em As primas, Yuna, que diz com assombrosa desafetação ser a irmã mais nova um “erro da natureza” e ser ela própria um “erro também” (Venturini, 2022, p. 14), introduz a princípio um vocabulário rudimentar, de pontuação irregular e pouquíssima subordinação, em narração que implica também desconforto físico, sendo para ela os pontos finais e as vírgulas desnorteadores. Ao longo da obra, utiliza muitas vezes um dicionário, operação que demarca, diferenciando as palavras próprias daquelas que toma emprestadas, até ao ponto de enfim incorporá-las. No polo oposto, Chela, de Nós, os Caserta, possui altas habilidades e nenhum impedimento linguístico; compõe-se sua voz, desse modo, a partir de um distinto domínio das complexidades e afetações da língua, rebrilhando um amplo conhecimento das artes plásticas e da literatura. Onde é Yuna elementar e ingênua, embora também artística, mostra-se Chela verborrágica, maliciosa e em todas as conclusões adiantada.
 
Estão as duas unidas, no entanto, não só por agruras semelhantes no contato com o mundo externo, como também por uma ausência flagrante de tato, uma simplicidade não necessariamente do pensamento, mas da compreensão dos efeitos gerados por uma dada expressão, sendo os fatos contados, em momentos de potencial tensão dramática, sem nenhuma afetação. Narra Yuna com a mesma irrepreensibilidade o nojo sentido frente ao mecanismo acoplado à cadeira da irmã, deficiente física, para que esta possa fazer as necessidades à mesa do almoço; o aborto forçado a que a prima, deficiente intelectual, é submetida pela tia Nené; a morte desta mesma mulher, confessando a narradora rir “do absurdo” que foi ter a tia quebrado o pescoço ao tropeçar em uma flor “cujo nome é alegria-do-lar” (Venturini, 2022, p. 55). De modo semelhante, Chela, conquanto a diferenciem suas menções sistemáticas a Proust, a Albrecht Dürer, a Pablo Neruda (que é inclusive personagem da narrativa), assim como um refinamento de linguagem que destaca construções que deixam claro amplo repertório cultural, como é o caso de “lacônico como um dório, frugal como um estoico” (Venturini, 2023, p. 35), despe-se inteiramente ao revelar o racismo com o qual vitimizava uma criada que deixou de oferecer a ela compaixão; ao narrar a morte de Bertoldo, sua coruja e única companhia por muitos anos, depois de ter racionalizado que matá-lo é melhor do que deixar que sofra sua ausência; ao contar como seu mais querido professor articula opiniões de superioridade racial em confidência.



Assim, pelos assuntos aludidos por cada narrativa, fica ao leitor evidenciada a novidade incomum na construção das obras, nas quais parece residir, em revelações abismais, de modo direto e pertinaz, uma ausência de culpa que denota não insensibilidade, mas uma singular apreensão dos acontecimentos. Essa é, evidentemente, uma conquista da concepção das obras conforme sua autora as constituiu, contribuindo grandemente para as temáticas trabalhadas as distintivas narrações. Nesse sentido, a cronologia simplista das orações coordenadas de Yuna, assim como o pendular pensamento de Chela, que transita entre uma pureza incivilizada e o hermetismo pedante, servem ao propósito duplo de afigurar visões de mundo vinculadas à monstruosidade declarada e aceita pelas personagens, que vivem no máximo de conforto a elas possível quando ao lado daqueles que nomeiam seus duendes, ogros, idiotas e liliputianos. Ao redor das autodeclaradas meninas-monstro, todavia, habitam horrores outros, mais densos, que em geral assumem aparências ou comportamentos em que a monstruosidade é bem menos evidente, e talvez por isso mesmo mais temível.
 
Dessa maneira, com a mobilização de um léxico inclemente, que aproxima a monstruosidade da experiência da rejeição social e das deficiências vividas pelos seres ficcionais a partir dos quais se constituem as narrativas, as obras também articulam uma dada imagem de sociedade, situada centralmente na La Plata — cidade localizada na planície bonaerense — em que residem tanto Yuna como Chela, de intolerância, higienismo, racismo e abusos físicos, verbais e sexuais. Dessa forma, é urgente a conclusão de que seriam então monstros todas as personagens, de uma maneira ou de outra, especialmente aquelas que, tendo todos os seus contornos destacados pela luz, evadem-se de qualquer responsabilidade afetiva quanto as que não vivem nessas mesmas condições.
 
Ao hiperbolizar as escolhas, introduzindo um mundo de reações físicas abjetas, linguagem ofensiva e personagens singelas em sua crueza, a autora é feliz em gerar um inescapável incômodo quanto ao mundo apresentado. A naturalidade da linguagem, que causa tanto espanto, aponta para uma vivência que, impolida, vê de dentro um universo poucas vezes pensado desse modo (lembremo-nos aqui de personagens como o Quasímodo, de Victor Hugo, ou o Frankenstein, de Mary Shelley, que seguem o veio do horror e do espanto propostos por Venturini, além de obras como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e O Jardim secreto, de Frances Hodgson Burnett, romances comparáveis apenas pelo fato de Eugênia e Colin viverem um mesmo processo de segregação de Yuna e Chela, embora em diferentes níveis). Por essa vereda criativa, notabiliza-se o fato de que o desconforto gerado no leitor espelha, talvez de modo indesculpável, uma postura encontrada também naqueles que se veem maculados pela deficiência no âmbito narrativo.
 
Não há redenção possível a Yuna e Chela, pelo que dizem e pelo que abandonam, pelo que causam aos outros e a si mesmas, mas elas também não o buscam, dedicando-se a mapear uma vida que veem como amaldiçoada. Antes de ser herança genética, no entanto, e para além dos arroubos de indivíduos atípicos na linha familiar, a condenação de cada uma delas é o fato de lamentavelmente seu sangue as unirem a famílias, essas sim, primordialmente monstruosas.


______
As primas
Aurora Venturini
Maria Sanchez (Trad.)
Fósforo, 2022
160p.

Nós, os Caserta
Aurora Venturini
Maria Sanchez (Trad.)
Fósforo, 2023
192p.

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