Por Henrique
Ruy S. Santos
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Murilo Rubião. Foto: Arquivo pessoal |
O que dizer de um escritor cuja totalidade da obra não passa
da tímida produção de 33 contos? O que dizer do assombro que nos atinge quando
percebemos que a exiguidade da produção escrita é inversamente proporcional à
qualidade do texto, ao maravilhoso dos mundos criados?
Essas são só algumas das muitas perguntas que o contato
inicial com a produção de Murilo Rubião nos impõe. A leitura de seus contos,
reunidos pela Companhia das Letras em 2016 em uma edição de sua obra completa
(edição do centenário do autor), logo nos surpreende pelo veio fantástico, que
ainda hoje soa inovador em terras brasileiras. Os caminhos seguidos por nossa
literatura no século XX, principalmente a partir da década de 1930,
privilegiaram o desenvolvimento das tendências neorrealistas, ora em clave mais
desbragadamente social, ora com inclinações à análise psicológica (nos melhores
exemplos, tem-se a mistura das duas tendências). No primeiro caso, avultam
nomes como Jorge Amado, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos etc. No
segundo, Dyonélio Machado, Cyro dos Anjos, Graciliano Ramos de novo etc., para
ficar apenas nos nomes da prolífica década de 1930 (uma exceção digna de nota é
Cornélio Penna, com seus romances de forte pendor gótico, sempre flertando com
o sobrenatural). A década seguinte, a de 1940, viu surgirem Clarice Lispector e
João Guimarães Rosa, em muitos aspectos consequências do Modernismo de 22, mas
que representavam decididamente uma ruptura.
O que é notável é perceber que nada disso, isto é, nada do
que se fermentou em solo nacional em termos literários durante o século XX,
parece preparar o público leitor e crítico à escrita do mineiro Murilo Rubião,
que publicou seus primeiros contos ainda na década de 1940. Em 1947, quando Julio
Cortázar recentemente publicara seu conto “Casa tomada”, e quando Jorge Luis Borges
escrevera
O Aleph apenas alguns anos antes, o único parâmetro de muitos
para ler Rubião era Franz Kafka. Com efeito, o autor de
O processo foi a
baliza de leitura de um leitor do quilate de Mário de Andrade, a quem Rubião
enviava seus contos no início da carreira. O embaraço do grande modernista
brasileiro diante da produção fantasiosa de Rubião se revela em alguns trechos
da correspondência que os colegas escritores mantiveram entre si:
“Bem, mas aqui interfere um problema, como diria?
confessional? isso: confessional. É que eu fico sempre numa enorme dificuldade
de dar opinião pra esse gênero de criação em prosa a que estou denominando aqui
de baseada no princípio da fantasia. O próprio Kafka, confesso a você que
frequentemente me deixa numa insatisfação danada.” (Moraes, 1995, p. 56)
Duas coisas chamam a atenção no comentário do escritor
paulista. O primeiro é o desconcerto que logo o autor de
Macunaíma sente
diante do “princípio da fantasia” que, segundo ele, rege a prosa tanto de
Rubião quanto de Kafka. Essa atitude, de início incompreensível vinda de quem
vem, quando observada à luz da obra do próprio Rubião, já indicia
características que encontramos no escritor mineiro e que o diferem
radicalmente da empreitada simbólica do Modernismo heroico que é o
Macunaíma.
O romance do herói sem caráter coligia todas as peripécias que subvertiam a
lógica realista e mergulhavam de cabeça no absurdo sob a égide de um projeto
intelectual e cultural mais ou menos bem definido, ao qual, em última
instância, se reporta toda a carga simbólica do texto, em chave alegórica.
Assim, a ilogicidade das aventuras de Macunaíma encontrava resguardo numa
empreitada racionalista de explicação do Brasil via literatura, assentada, no
caso de Mário de Andrade, num sólido conhecimento das tradições folclóricas
brasileiras. Daí o caráter rapsódico da obra, apontado por mais de um crítico.
Não há nada disso em Murilo Rubião, de modo que se pode
dizer que a entrega à fantasia é muito mais desregrada, até mesmo mais
desintelectualizada, sem implicar, com isso, falta de rigor formal ou ausência
de referências. Afastado temporal e mais ou menos geograficamente do modernismo
paulista de 22, o escritor mineiro pode subverter o real sem o apego a projetos
e manifestos pré-definidos. O vanguardismo de Rubião (se é que se pode falar em
vanguarda) é decisivamente menos engajado do ponto de vista extraliterário, até
mesmo levando em conta o caráter menos coletivo das tendências vindas de Minas.
A militância artística dos paulistas de 22, por outro lado, costumava levar a
uma experimentação formal mais desmedida e, no caso de Mário de Andrade, à
incorporação mediatizada do folclore como elemento de brasilidade.
A segunda coisa que chama a atenção no embaraço de Mário de
Andrade é a menção a Kafka. A comparação serve mais uma vez para dar a Rubião o
que é de Rubião, isto é, para averiguar em que medida o autor brasileiro tem
caracteres próprios.
Nos romances e novelas de Kafka, o absurdo costuma se
infiltrar de forma sorrateira, de maneira que o incômodo e a desconfiança
emergem muito mais da subsistência de uma lógica realista que insiste em animar
toda a narrativa mesmo diante dos sinais cada vez mais flagrantes de que as
instituições e as pessoas não estão operando sob o signo da normalidade. Nesse
tipo de estranheza, Kafka é um verdadeiro mestre.
No caso de Rubião, também há muito disso, mas a predileção
pela concisão e a concentração narrativa cultivada pelo contista brasileiro (e
a preferência exclusiva pelo conto já indica esses traços) favorecem o recurso
aberto à fantasia, ao irreal, entretanto sem alarde. “Os primeiros dragões que
apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes” (Rubião,
2016, p. 46). Assim começa o conto “Dragões”. Outro exemplo da imediata
instalação narrativa nas imediações do mágico é o início de “O pirotécnico
Zacarias”:
“Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de
pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o
pirotécnico Zacarias?
A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que
estou vivo — o morto tinha apenas alguma semelhança comigo. Outros, mais
supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao rol dos fatos
consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma
penada, envolvida por um pobre invólucro humano.” (Rubião, 2016, p. 7)
Em outros casos, o golpe de magia vem com mais tardar, mas
atinge com igual surpresa qualquer não iniciado, como no sensacional “O
ex-mágico da Taberna Minhota”. O tom tragicômico da frase que abre o conto,
diga-se de passagem, é um verdadeiro achado: “Hoje sou funcionário público e
este não é o meu desconsolo maior” (Rubião, 2016, p. 15). O prosaísmo mundano
da declaração inicial é anulado, ou melhor, elevado pela súbita irrupção do
irracional:
“Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no
espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me
surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me
perguntou como podia ter feito aquilo.” (Rubião, 2016, p. 15)
A narrativa do mágico que perde o talento para o ilusionismo
e se converte em um “mero” funcionário público sem atributos notáveis — como
forma de suicídio, após várias tentativas frustadas, pois soubera que o
funcionalismo público era como uma morte lenta — é um dos pontos altos da
produção de Rubião. Atesta, acima de tudo, a aptidão para exprimir uma
melancolia que é muito pertinente à tumultuada (para usar um eufemismo) década
de 1940 (tanto no Brasil quanto no resto do mundo), quando o funcionalismo público
representava para muitos intelectuais não só a ociosidade desonrosa das
sinecuras, mas também o dilema da capitulação ao autoritarismo getulino. Em
Rubião, essa conjuntura se converte na alegoria da perda da magia, o que lhe
ressalta o gosto pelo insólito, que tão definitivamente o caracteriza.
A melancolia e o sentimento geral de desencaixe do mundo dão
a Rubião a matéria de muitos dos seus contos. Nos momentos em que deixa de lado
um tom mais bem-humorado, tom esse que anima contos como os já citados
“Ex-mágico…” e “O pirotécnico Zacarias”, a vocação onírica de Rubião é invadida
pelo horror da incomunicabilidade, do silêncio e dos ciclos eternamente
repetíveis. Como num quadro de Edward Hopper ou um conto de E. T. A. Hoffmann,
Jadon, o narrador do conto “Comensais”, senta em uma mesa de refeitório cercado
por simulacros humanos, autômatos sem vida. O personagem insiste em estabelecer
comunicação e, em resposta a uma indiferença inabalável de todos ao seu redor,
recorre em vão a agressões e a todo tipo de impropérios. Nada além de silêncio
e olhares vazios. Quando finalmente se depara com um rosto conhecido entre os
comensais do refeitório, o de Hebe, um antigo amor de adolescência, Jadon se
atira com desespero a ela, a fim de resguardá-la da letargia que acomete a
todos. Consuma-se o horror, e a narrativa de Rubião se mostra não impermeável
às visões do pesadelo e do inferno:
“— Vamos, Hebe, vamos — gritava, puxando-a pelos braços que
não ofereciam resistência, transformados em uma coisa gelatinosa. O corpo
grudara-se no assento. Não esmorecia, apesar de sentir-se incapaz de removê-la.
No momento em que mais se empenhava em arrastá-la, um gesto brusco seu lançou
para trás a cabeça de Hebe e as suas pálpebras, movendo-se como se pertencessem
a uma boneca de massa, descerraram-se. Largou-a, aterrorizado.” (Rubião, 2016,
p. 248)
As influências de Kafka são mais visíveis em contos como “A
cidade”, “Diáspora” e “O homem do boné cinzento”. Nessas narrativas, a
figuração de cidades pacíficas subitamente transtornadas por forças externas
desconhecidas e possivelmente opressoras, para além dos ecos kafkianos,
prenuncia as imagens fantásticas da Ditadura de 1964 que a produção do goiano
J. J. Veiga tão bem criaria em 1966 com seu A hora dos ruminantes.
Borges se faz sentir em “O edifício”, cuja perscrutação na
ideia do infinito faz lembrar as aventuras babélicas do escritor argentino.
Entretanto, no escritor mineiro, não há a curiosidade filosófica tão aguçada
nem o jogo incessante com referências obscuras, reais e inventadas, que marcam
a obra do escritor portenho e que enredam sua obra numa trama de justificação
retórica absolutamente imaginativa. No lugar, Rubião manifesta uma predileção
quase exclusiva por uma intertextualidade bíblica explícita, com cada um dos
contos, sem exceção, sendo precedido pela citação de um versículo das
Escrituras. O recurso, para além das funções mais comuns de epígrafe, confere
ao texto uma aura sacralizada e, o que é mais importante, filia-o a tradições
remotas que sinalizam ao leitor o acionamento de mecanismos alegóricos de
interpretação. Alguns contos de Rubião se leem como se lê um texto sagrado,
isto é, circunscritos a uma temporalidade e espacialidade próprias, que não
condizem com coordenadas históricas reais, sem deixar, todavia, de reportar-se
a estas indiretamente. As cidades e os lugarejos das breves narrativas são
quase sempre localidades isoladas da paisagem e da realidade (vales, a cercania
das montanhas etc.). Nos diálogos que temos estabelecido neste texto, vale
notar que a Juparassu do conto “A noiva da casa azul” evoca, em suas ruínas e
decrepitude, a Comala de Juan Rulfo em Pedro Páramo, e o povoado
pacífico de Mangora (“Diáspora”) faz lembrar a Manarairema de J. J. Veiga no já
citado A hora dos ruminantes.
Murilo Rubião é um cultivador de penumbras. Sua escrita se
move nas zonas onde a luz que nos chega não é a que esclarece, a que torna as
coisas e as pessoas visíveis, e sim a que permite melhor tatear na obscuridade.
No plano estilístico, as frases iniciais de muitos dos seus contos revelam um
rol de elipses que arremessam o leitor, in medias res, em ações sem
sujeito evidente. O efeito é o da estranheza e da confusão provisória que
antecipa as inversões lógicas a que as narrativas estão submetidas:
“Destinava-se a uma cidade maior, mas o trem permaneceu
indefinidamente na antepenúltima estação.” (“A cidade”, p. 29)
“Lamentava ter aceitado o conselho de procurar a clínica do
doutor Pink.” (“O lodo”, p. 71)
“Vinha do interior do país” (“A fila”, p. 81)
“No terceiro dia em que dormia no pequeno apartamento de um
edifício recém-construído, ouviu os primeiros ruídos.” (“O bloqueio”, p. 151)
Com Rubião, nos reencontramos com uma arte do narrar
lapidada no essencial, desprovida dos adornos supérfluos de tudo que é
contingencial. E o que é essencial para o autor é a incerteza, a incompletude,
a insensatez dos infinitos. Seus narradores são figuras confusas, perdidas,
solitárias e às vezes violentas. A prosa de Rubião olha para as grandes
questões e paixões humanas — a morte, o desejo, a solidão — e dissolve a dureza
de seus enigmas como um mágico que tira esfinges de uma cartola apenas para se
deparar com novas formas de perplexidade. Somos assaltados pela súbita
percepção de que as respostas para todas as perguntas sempre estiveram ao
alcance de uma estrela. É só ir lá buscar.
______
Obra completa
Murilo Rubião
Companhia das Letras, 2016
288 p.
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Bibliografia
MORAES, Marcos Antonio de (Org.).
Mário e o pirotécnico
aprendiz: cartas de Mário de Andrade e Murilo Rubião. Belo Horizonte: Ed.
UFMG; São Paulo: IEB-USP; São Paulo: Ed. Giordano, 1995.
RUBIÃO, Murilo.
Obra completa: edição do centenário.
São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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