|
Do original de Auto da barca do inferno (1517) |
O teatro de Gil Vicente é a monarquia de Portugal. Pode
parecer estranho nomear assim de supetão um objeto que é formado numa gestação
complexa — as letras e as significações das letras, que são tão maleáveis —,
mas a dinastia de Avis (no poder do rei transmutado pelas enunciações
vicentinas) transfere a imagem teológica para a poética.
A ideia do humanismo perante a moralização
ad infinitum
dos costumes, que era preconizado através do ensejo e do uso do tropo
alegórico, não é precisa para elencar os traços de um
auto. O caráter de
humano era calculado pela lógica aristotélica de hierarquia no
representamen,
ou seja, mesmo com o misto de qualidades da extração social (baixas e altas) no
bojo da peça,
Auto da barca do inferno situava exatamente o viés do
contrassenso no lugar platônico do
diálogo: a
homologia, dizia
Lyotard, e também a unicidade do referente (
salvação)
Fato é: a possibilidade (infra)discursiva no gênero
auto
acalenta uma espécie de dialética das formas por posicionar certa abertura aos
pares. A abertura é estendida no lugar do
barco, sugerido pelo limiar da
tentativa de representar virtudes e vícios da sociedade de corte portuguesa,
expirado como ponte ou arco da encenação. As confusões extraliterárias e fora
do escopo semântico existem a partir daí: adjetivos como crítico e desbocado,
em Gil Vicente, não fazem sentido se olharmos para as simbioses entre o que
ele, autor, falava e o que o Estado português prescrevia.
Desemboca que o ponto principal é a submissão das sequências
metafóricas à voz de Deus, que determina a referência das duas barcas — uma
indo à perdição, a outra ao paraíso — em um único sentido. Essa clausura
requer, no entanto, a investigação de onde parte a função da sátira para saber
onde começa a visão da via da fé contra a corrupção do grande teatro do mundo.
Aparentemente, não há diferenças absolutas entre a ordenação
civil e a arte de falar bem. Antes do
Sturm und Drang romântico,
toda
poética era ética. Fórmula assertiva pois, se olharmos o conceito de
verossimilhança,
encontraremos apenas um requisito dramático para a contextualização de lugares
tidos por verdadeiros nas instituições, o que permite dizer que a alegoria era
um manejo, um subterfúgio, embora não às claras, do sistema de
pensamento,
quer dizer, dos níveis de acepção e de cruzamento entre a língua e o discurso,
os afetos e as ideias.
Podemos pontuar, além disso, que a fusão de temas medievais
no
Auto (o aparato católico, o absolutismo, a expansão marítima) e de
formas antigas (a instância do
ridículo aristofânico, o gesto “
plebeu”
românico de Plauto) possivelmente vem da delineação irrestrita que a revolução
renascentista fez. Talvez não como Panofsky atenta — como
satanocracia,
difundida a partir de uma mitologia histórica contra a Idade Média —, mas como
reiteração enfática. Não falo de paródia, mas de reconstituição engenhosa de
tópicas: classes, religião, hábitos. Uma das características mais especiais
desses tempos era a do fato dos agentes serem contemporâneos um ao outro,
estarem numa concatenação paralelística regular, autores que emulavam os
autores.
Assim como Bosch pintou, Horácio chamou nas
Odes:
passando da nau dos loucos ao navio prosopopeico, da alegoria dos passageiros à
metáfora do Estado como veículo, a arte do simbolismo lexical no
Auto sugere
algumas facetas de produção que são posicionadas por um vínculo retórico e
estilístico. Nosso poeta inflamou, durante os diálogos, ícones que se ligavam a
tipos, tipos que vazavam num
topos registrado na coerência dos
actus
corporis organici.
Decidi simplificar a aparatação de alguns indícios. A
alegoria se dividiria no seguinte: objetos que portam significados diretamente
à constituição dos pecados/virtudes, onde
1. o fidalgo carrega um paje, que simula a condição de
tirania;
2. o onzeneiro carrega um bolsão, que simula a ganância e a
busca pelo dinheiro;
3. o sapateiro carrega um avental e formas da profissão
liberal, que simulam a burguesia;
4. o frade carrega uma moça, uma espada, um capacete e um
broquel, que simulam a corrupção do clero;
5. a alcoviteira carrega armários de mentir, coxins, furtos,
moças, joias e outros, que simulam a prostituição;
6. o judeu carrega um bode, animal característico que simula
o judaísmo;
7. o corregedor e o procurador carregam processos da Justiça
e livros, que simulam a burla da magistratura;
8. o enforcado carrega a corda no pescoço, que simula a
vileza terrena e o pecado.
Todos eles vão na barca destinada ao inferno. A porta de
entrada para a alegoria permitiria juntar as metáforas. Ou melhor: são as
metáforas que organizam a fisiologia da alegoria, fazendo eclodir a palavra na
sentença. A loucura dos vícios leva à bancarrota espiritual:
se eu me perder
na Nau Catarineta, eu vou, eu mato, eu morro e volto pra curtir (Macalé/Salomão).
A artificialização do
signum cria o meio para que a ligação apareça. O
jardim das delícias terrenas está fundado: ‘triunfo diabólico, falsa
felicidade’.
A metáfora continuada é exatamente o caso do
Auto.
Inclinando a paixão e deleitando os sentidos, ela consegue persuadir. O jargão
ciceroniano de “docere, delectare, movere” cabe como resumo:
nós ensinamos
um objeto que é belo pela simples circunstância de que quem o vê internalize e
passe a praticar sua vida de outro modo.
Vejamos, a partir disso, que o esforço de Vicente iria ser
totalizado quando a noção de barca da glória, tendo como guarda o anjo,
aparece. Somente o parvo e os quatro cavaleiros embarcam, ou são permitidos a
embarcar, na esteira do gozo eterno. Como desvios da danação, uma das
possibilidades semânticas do
Auto para esses dois emblemas é: os
cavaleiros, defensores do catolicismo, e o tolo, protótipo agostiniano da
humildade (e da ingenuidade do português pobre), fazem parte da figura da
contraposição.
Notemos que, na peça, o parvo não entra levando algo e os cavaleiros saem com a
cruz de Cristo. Esse ornato é moldado, no fim do texto, no dito do anjo:
“A justiça divinal
vos manda vir carregados
porque vades embarcados
nesse batel infernal.”
depois, os cruzados falam:
“Vigiai-vos, pecadores,
que, depois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!”
Gil Vicente distribui o binário pela seção cristã do
passado-futuro, que acrescenta um terceiro. Não sei exatamente como, mas a
história da arca de Noé, do Gênesis, é espelhada na substância
tipológico-escatológica que tem de comum com o
Auto: na primeira, ela
resgata; na segunda, substitui pelo polo negativo. Isso, azeitado, corresponde
a dois sentidos (para além do presente, que é
moral): um
tipológico
(não havia outro jeito, quer dizer, é um desígnio icônico), outro
anagógico
(profeticamente instaurado, isto é, a ser realizado). Assim, teremos em
resultado tanto o começo quanto o fim, tanto o nascimento quanto a morte.
O desenvolvimento plástico da gramática vicentina repousa na
incessante afirmação de modelos. A atitude dantesca dos autos não é “espírito
da época”, e sim imitação estilística, discursivamente alinhada aos planos
políticos portugueses. Desse modo, o
Auto é uma propaganda que se
difunde contra os insensatos de maneira violenta, mas não menos engraçada,
claro.
O que podemos concluir? Mais ou menos isso: lembro a
patética do poeta alemão Hans Sachs que, em 1529, compôs versos que comparavam
a Fortuna à tempestade, fazendo mergulhar a âncora no mar para que, esperando,
ele ficasse calmo. A analogia que trago em relação a Gil Vicente parte do
princípio de que é enfrentando a maré revoltosa que um poeta ganha da revolta,
possivelmente transplantada na filiação maquiavélica da jurisdição. A bússola
indicada por Sachs não é mais que a
allegoria vicentina. Ela se comporta
na ação de ajudar o governo da cidade.
Comentários