John Updike, o profeta da infidelidade resolvida

Por Rodrigo Fresán


John Updike. Foto: Yousuf Karsh


 
Com a morte de Jonh Updike em 2009 se iniciou a mais omnipresente e estranha das ausências. O escritor publicava pelo menos um livro por ano (ficção ou poesia ou uma coletânea de ensaios sobre tudo o que lhe interessava, que era nada mais e nada menos que tudo), aumentando assim uma obra que o colocava, outubro após outubro, dentro da prestigiosa e estigmatizante lista dos apostadores com aqueles que deveriam (mas não poderiam) ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Como no caso do seu colega de profissão com quem parecia travar o mais elegante, mas não menos forte duelo literário — Philip Roth —, a justiça se fez para nenhum dos dois. Mas o que foi dito acima não privou Updike de se dar ou nos dar o luxo de fazer muito e de várias maneiras.
 
Só para citar alguns marcos: os contos autobiográficas com um alter ego e uma região própria (David Kern pelas ruas de Olinger ou Tarbox), o ciclo de romances com um personagem que reflete as querelas de seu país (a saga Coelho), os flertes com o fantástico (o díptico das bruxas de Eastwick), o vasto afresco histórico multigeracional (Na beleza dos lírios), o prelúdio de Hamlet (Gertrudes e Cláudio), a eco-distopia (Rumo ao fim dos tempos), thriller islâmico (O terrorista) e — quase invadindo territórios alheios — as idas e vindas do catastrófico escritor judeu Henry Bech. Todos e tudo sob o olhar daquele inconfundível rosto em que parecia coexistir um benéfico pássaro azul com a mais feroz das aves de rapina.
 
Uma vez apagado esse motor de movimento contínuo que parecia perpétuo, pode-se perguntar por onde conhecê-lo ou o que reler. Duas revisitações recentes são uma boa forma de entrar/ compreender o que ajudou a definir, e ao mesmo tempo a deformar, essa figura de hábitos luminosamente tradicionais, mas ao mesmo tempo obscuros e questionáveis hábitos, “ficção The New Yorker”: estilo e espécie que não impediu a Updike um ar de perspicaz mandarim wasp que chegou a seduzir até o quase sempre duro Vladimir Nabokov.
 
Assim, em Updike, a biografia de Adam Begley, Quer casar comigo? (1977), é considerado um romance “fracassado”, mas, ao mesmo tempo, “um dos mais subestimados”. Sim, é possível entender essa nova abordagem — a “triste magia do adultério em condomínios residenciais” — pode ser entendida como uma espécie de variação, coda ou destilado do então muito controverso e fenômeno entre os leitores Casais trocados (1968). Um romance que levou o seu autor para a capa da revista Time como um profeta da infidelidade resolvida e coveiro de um puritanismo culpado que, claro, havia sido enterrado vivo. Mas a verdade é que —composto durante o divórcio de Updike — em Quer casar comigo? se recorre a esta paisagem rumo à ruína, mas com um final supostamente (in)feliz e uma atemporal luminosidade, cortês e amorosa quase com a mecânica da comédia shakespeariana.
 
E — surpreendentemente — aprendemos com seu biógrafo Begley que Quer casar comigo? foi escrito vários anos antes de sua sombria irmã, mais jovem em idade, mas mais velha em impacto. Por que Updike adiou a publicação do que aconteceu em 1962? Pela razão simples e complexa de que ele sentia — e tinha razão — que as fissuras nos casamentos de Jerry e Ruth Conant e Richard e Sally Mathias eram demasiado semelhantes àquelas que continuavam a crescer e a espalhar-se pelas paredes do seu lar, amargo lar e, claro, pelos da casa vizinha de um casal de grandes amigos. A mais apreciável/ admirável novidade aqui é que, até então, Updike nunca havia se arriscado a mergulhar tão profundamente no ponto de vista feminino. E, sim, quando Mary Updike finalmente leu o romance, ela diagnosticou o seu já ex estava com um “você não entendeu nada”.
 
Mas ninguém pode argumentar com Updike que — nos dezoito contos/ postais publicados entre 1956 e 1995 e recolhidos em Os Maple e até mesmo televisionados em 1979 — ele entendeu tudo. Assim, em seu 1.001 livros para ler antes de morrer, James Mustich escolhe — quando se trata de pegar um único título de Updike — este essencial, imenso e inevitável livrinho como uma amostra perfeita e brutalmente delicada.
 
Se em Quer casar comigo? tudo soa como uma inspirada mas muito comovente peça de câmara, em Os Maple se ouve, por outro lado, como essas variações para insone sozinho ou ciclo duplo de lieder reflexivo e comovente, comunga com o que Updike sempre considerou “os três grandes segredos: o sexo, a religião e a arte”. Em sua nota introdutória — na qual se refere ao “padrão musical” — ele aposta em uma possível moral: “todas as moedas têm duas faces” e “as próprias pessoas são incorrigíveis”. E conclui: “não os voltei a encontrar, embora amigos em comum me garantam que ambos ainda estão vivos e têm a melhor aparência possível”. Algo me diz que também os Maple são hoje amigos dos Conant e dos Mathia. E que ninguém olhe de soslaio para ninguém ou dê uma piscadela proibida. Dentro do que cabe. E em Updike sempre cabe muito. 


* Este texto é a tradução de “John Updike, el profeta de la infidelidad acomodada”, publicado aqui, em El Cultural

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