Fátima fez os pés para mostrar na choperia, de Marcelo Mirisola

Por Henrique Ruy S. Santos


Marcelo Mirisola. Foto: José Caria


 
Ler o livro de estreia de alguém após ter lido outras de suas produções mais maduras é um risco. Por um lado, a leitura da obra inicial à luz dos desenvolvimentos que viriam a se realizar posteriormente na obra de um autor pode fornecer diversas chaves interpretativas interessantes e insuspeitadas caso o primeiro contato tivesse se dado diretamente com a obra de estreia. Alguns traços de estilo ou certas propensões temáticas parecem fazer mais sentido se cotejados com o que foi escrito em momentos ulteriores. “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”, diria Karl Marx.
 
Por outro lado, esse tipo de leitura pode incorrer no que julgo ser um erro, isto é, a prática nem sempre acertada de encarar a obra de um escritor como uma linha evolutiva, sempre caminhando em direção a um suposto maior grau de complexidade e refinamento. A obra inicial, sob esse prisma, perde sua autonomia enquanto texto único, na medida em que se torna apenas o estágio inicial de um desenvolvimento formal ou temático que só encontrará sua plenitude no porvir. Seguindo esse raciocínio, a melhor obra de qualquer escritor seria sempre a última, o que é um absurdo com o qual não vale a pena despender esforços de refutação.
 
Faço esse preâmbulo, em parte, para que não soe leviano e irrefletido o que direi a seguir: Fátima fez os pés para mostrar na choperia (1998), livro de estreia do escritor paulista Marcelo Mirisola, contém, em gérmen, algumas tendências que o autor solidificaria, para o bem ou para o mal, em obras seguintes.
 
Há duas forças opostas que governam a prosa deste livro de estreia e que travam uma luta acirrada nos 30 contos que compõem a obra. A primeira delas é uma inclinação forte à libertinagem textual, ao fluxo de consciência desimpedido. Nesse caso, como apontou Nelson de Oliveira a propósito do segundo livro de Mirisola, O herói devolvido, a organização sintática do texto privilegia os anacolutos, a quebra repentina de sentidos, a alternância abrupta de assuntos, o que coloca o leitor em uma busca aflita pela coerência. E os temas tratados são diversos, mas sempre girando em torno de desafetos amorosos, sexo e as mais diversas taras. Quando esta é a força predominante (e este é o caso neste primeiro livro do autor), as categorias narrativas básicas de tempo, espaço e enredo são devidamente escanteadas em favor da construção de uma voz que soa espontânea e sem filtros, como no conto “doencinha”:
 
“Hoje eu pus fogo numa cobra e dei-lhe um nó cego fodido. Para o inferno as sutilezas. As elevações da alma e os ‘haikais’ das donas de casa curitibanas. Tô com o saco cheio da estrutura da bolha de sabão e das sutilezas dos golpes de vista” (p. 26).
 
Por meio da retórica rebarbativa, sente-se um desprezo incontido pela vulgaridade do mundo degradado da classe média, com seus hábitos, seus gostos e sua literatura. É, acima de tudo, a dicção de um narrador entediado com tudo e consigo mesmo, mas nem por isso econômico no que diz. Os contos são curtos, mas são jorros sucessivos de um palavrório cínico e mordaz, que dão a impressão de abranger muito mais do que de fato dizem.
 
A segunda das forças atuantes no texto de Mirisola, mais tímida nesta estreia, é a que tende à elaboração ficcional em moldes um pouco mais tradicionais, mas ainda preservando o cinismo da voz e a lassidão do enredo. Delineiam-se personagens mais nítidos e situações narrativas mais claras, como no caso dos contos “taradinho (parte dois)” (este com uma tonalidade à Dalton Trevisan digna de nota) e “Prurido”.
 
Em obras posteriores, o escritor paulista transitará entre essas duas inclinações, mas sempre mantendo a peculiaridade de estilo. Na falta de uma condução narrativa mais clara, de um enredo propriamente dito, a prosa de Marcelo Mirisola é por vezes cansativa. É o caso deste Fátima…, em que a marca deliciosamente cínica do texto nem sempre compensa o excesso de paciência que o leitor deve ter para embarcar em algumas tagarelices do narrador. Esse é um traço que marca negativamente o seu Joana a contragosto, de 2005, cuja articulação monotonal faz parecer que estamos a ouvir um bêbado que acabamos de conhecer tagarelarando sobre a ex-namorada e sua suposta impiedade amorosa. Aquele indivíduo cuja insistência no assunto e repetição das mesmas queixas nos levam inevitavelmente a desconfiar da suposta retidão de sua conduta e da tão alardeada perfídia do ex-afeto. Em resumo, um chato, de quem a ex-namorada provavelmente teve razão em se afastar. Em maior medida nesse romance de 2005, mas também na estreia de 1998, falta firmeza que nos prenda à dicção ebriamente lúcida do texto, e sobram constantes autocongratulações e uma vontade talvez grande demais de ser Bukowski, espécie de guru da alardeada geração 90, mas que, por sua vez, não é tudo isso.
 
Não é o caso, por exemplo, do seu Hosana na Sarjeta, de 2014, em que a verborragia está a serviço de um relato variado e divertido, bem naquele estilo “despirocado” da geração beat, cujo maior expoente em terras brasileiras talvez seja o Pornopopeia de Reinaldo Moraes.
 
Mas em sua estreia com Fátima…, Mirisola já manifesta a dicção peculiar que mantém ao longo de toda a sua carreira literária. Os narradores deste livro de estreia (tornou-se lugar-comum chamá-los alter egos de Mirisola) todos envergam aquele estado de espírito do sujeito que não encontra transcendência nenhuma na vida, da personalidade excessivamente lírica a que, entretanto, não cabe mais nem o desajuste calculado dos beats como rótulo assumível. É o sujeito que, ainda que sinta latejar o chamado interior de algo que vai além da mesquinhez do cotidiano, ainda que tenha esse pressentimento a amenizar a perda de sentido de tudo, não consegue ir além das próprias insignificâncias. O que resta é mergulhar de cabeça na pequenez e fazer dela literatura, na expectativa de que o ato de expressão baste por si só. A autocaracterização do narrador do conto “Relato de uma breve história de sacanagem” é reveladora de sua autodegradação.
 
“Sou um tarado romântico que reconhece a si mesmo no cheiro do amor e da merda da pessoa amada.” (p. 99)
 
Esta obra de estreia de Mirisola é, em muitos sentidos, uma literatura-excremento, no sentido de que parece ser expelida, quase vomitada como uma matéria de cujo acúmulo é preciso se livrar, sem, todavia, abrir mão do artesanato formal. Daí certo ar de espontaneidade planejada, de desabafo premeditado que permeia todos os contos aqui presentes. É, para usar uma expressão cara ao autor, uma literatura feita a contragosto, de modo que a impressão geral é a de que os narradores, se pudessem, dispensariam todo o blá blá blá da sublimação literária elevada e se comunicariam, como diz o narrador do conto “Qual o mal de a Mina”, “‘que nem cachorro’, sabe? Sem frescuras do tipo ‘Bom dia, como está?’” (p. 56). Nessa tentativa de recuo primitivista a pulsões desracionalizadas, no fundo o livro de estreia de Mirisola tenta o que as vanguardas do início do século XX já tentavam: a expressão do desejo puro, o alcance do verbo liberto das amarras civilizacionais, com a adição, em sentido contrário, do cinismo e do desencanto como ingrediente, traço civilizacional inegável, ainda que, mais uma vez, a contragosto.
 
Mas o caminho para o verbo abjeto é, paradoxalmente, o do artifício, o do constrangimento formal. Por isso, para manter a atitude porra-louca, é preciso fabricar as próprias felicidades apenas para que se possa pisar nelas, fabricando, assim, também, a própria rebeldia:
 
“Onde está minha senhora? As crianças? A Marajó 85? A felicidade que eu faço questão de esculhambar? A minha felicidade?” (conto “Adeus Rua Butantã!”, p. 45)
 
No final das contas, “é tudo um fazer e refazer de conversas desperdiçadas ou, para quem quiser, um balanço de latidos interiores, de lucros e prejuízos imaginários” (conto “Mas um cara doce como eu?”, p. 88).
 
As narrativas não buscam a solenidade de momentos edificantes nem contêm epifanias vislumbradas a partir do cotidiano, mas, na confluência entre o estado psicológico do narrador e as peculiaridades miúdas do dia a dia, o autor logra obter efeitos contundentes. Nessas passagens, a transição do espaço e da temporalidade internas para o dado externo é feita com ironia desconcertante:
 
“Quando eu penso no meu corpo, às onze e meia da manhã, dobrado sob o cobertor, de repente, me ocorre a eternidade e a culpa de ter uma cabeça que dói. A claridade que vem do sol. A culpa e a eternidade tanto podem ser associadas à fatuidade de comprar pão calçando chinelinhas quanto à desventura de levantar da cama.” (p. 116)
 
Em Fátima fez os pés para mostrar na choperia, o então estreante Marcelo Mirisola já mostrava muito da retórica feroz que o tornaria persona non grata entre muitos círculos literários. Particularmente, este ainda não é o Mirisola que mais me agrada, mas não deixa de ser notável observar a construção de uma prosa bem peculiar que viria a adentrar o século XXI com vigor próprio.


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Fátima fez os pés para mostrar na choperia
Marcelo Mirisola
Editora Estação Liberdade, 2006
144 p.
 
 

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