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Marcelo Mirisola. Foto: José Caria |
Ler o livro de estreia de alguém após ter lido outras de
suas produções mais maduras é um risco. Por um lado, a leitura da obra inicial
à luz dos desenvolvimentos que viriam a se realizar posteriormente na obra de
um autor pode fornecer diversas chaves interpretativas interessantes e
insuspeitadas caso o primeiro contato tivesse se dado diretamente com a obra de
estreia. Alguns traços de estilo ou certas propensões temáticas parecem fazer
mais sentido se cotejados com o que foi escrito em momentos ulteriores. “A
anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”, diria Karl Marx.
Por outro lado, esse tipo de leitura pode incorrer no que
julgo ser um erro, isto é, a prática nem sempre acertada de encarar a obra de
um escritor como uma linha evolutiva, sempre caminhando em direção a um suposto
maior grau de complexidade e refinamento. A obra inicial, sob esse prisma,
perde sua autonomia enquanto texto único, na medida em que se torna apenas o
estágio inicial de um desenvolvimento formal ou temático que só encontrará sua
plenitude no porvir. Seguindo esse raciocínio, a melhor obra de qualquer
escritor seria sempre a última, o que é um absurdo com o qual não vale a pena
despender esforços de refutação.
Faço esse preâmbulo, em parte, para que não soe leviano e
irrefletido o que direi a seguir:
Fátima fez os pés para mostrar na choperia
(1998), livro de estreia do escritor paulista Marcelo Mirisola, contém, em
gérmen, algumas tendências que o autor solidificaria, para o bem ou para o mal,
em obras seguintes.
Há duas forças opostas que governam a prosa deste livro de
estreia e que travam uma luta acirrada nos 30 contos que compõem a obra. A
primeira delas é uma inclinação forte à libertinagem textual, ao fluxo de
consciência desimpedido. Nesse caso, como apontou Nelson de Oliveira a
propósito do segundo livro de Mirisola,
O herói devolvido, a organização
sintática do texto privilegia os anacolutos, a quebra repentina de sentidos, a
alternância abrupta de assuntos, o que coloca o leitor em uma busca aflita pela
coerência. E os temas tratados são diversos, mas sempre girando em torno de desafetos
amorosos, sexo e as mais diversas taras. Quando esta é a força predominante (e
este é o caso neste primeiro livro do autor), as categorias narrativas básicas
de tempo, espaço e enredo são devidamente escanteadas em favor da construção de
uma voz que soa espontânea e sem filtros, como no conto “doencinha”:
“Hoje eu pus fogo numa cobra e dei-lhe um nó cego fodido.
Para o inferno as sutilezas. As elevações da alma e os ‘haikais’ das donas de
casa curitibanas. Tô com o saco cheio da estrutura da bolha de sabão e das
sutilezas dos golpes de vista” (p. 26).
Por meio da retórica rebarbativa, sente-se um desprezo
incontido pela vulgaridade do mundo degradado da classe média, com seus
hábitos, seus gostos e sua literatura. É, acima de tudo, a dicção de um
narrador entediado com tudo e consigo mesmo, mas nem por isso econômico no que
diz. Os contos são curtos, mas são jorros sucessivos de um palavrório cínico e
mordaz, que dão a impressão de abranger muito mais do que de fato dizem.
A segunda das forças atuantes no texto de Mirisola, mais
tímida nesta estreia, é a que tende à elaboração ficcional em moldes um pouco
mais tradicionais, mas ainda preservando o cinismo da voz e a lassidão do
enredo. Delineiam-se personagens mais nítidos e situações narrativas mais
claras, como no caso dos contos “taradinho (parte dois)” (este com uma
tonalidade à Dalton Trevisan digna de nota) e “Prurido”.
Em obras posteriores, o escritor paulista transitará entre
essas duas inclinações, mas sempre mantendo a peculiaridade de estilo. Na falta
de uma condução narrativa mais clara, de um enredo propriamente dito, a prosa
de Marcelo Mirisola é por vezes cansativa. É o caso deste
Fátima…, em
que a marca deliciosamente cínica do texto nem sempre compensa o excesso de
paciência que o leitor deve ter para embarcar em algumas tagarelices do
narrador. Esse é um traço que marca negativamente o seu
Joana a contragosto,
de 2005, cuja articulação monotonal faz parecer que estamos a ouvir um bêbado
que acabamos de conhecer tagarelarando sobre a ex-namorada e sua suposta
impiedade amorosa. Aquele indivíduo cuja insistência no assunto e repetição das
mesmas queixas nos levam inevitavelmente a desconfiar da suposta retidão de sua
conduta e da tão alardeada perfídia do ex-afeto. Em resumo, um chato, de quem a
ex-namorada provavelmente teve razão em se afastar. Em maior medida nesse
romance de 2005, mas também na estreia de 1998, falta firmeza que nos prenda à
dicção ebriamente lúcida do texto, e sobram constantes autocongratulações e uma
vontade talvez grande demais de ser Bukowski, espécie de guru da alardeada
geração 90, mas que, por sua vez, não é tudo isso.
Não é o caso, por exemplo, do seu
Hosana na Sarjeta,
de 2014, em que a verborragia está a serviço de um relato variado e divertido,
bem naquele estilo “despirocado” da geração
beat, cujo maior expoente em
terras brasileiras talvez seja o
Pornopopeia de Reinaldo Moraes.
Mas em sua estreia com
Fátima…, Mirisola já manifesta
a dicção peculiar que mantém ao longo de toda a sua carreira literária. Os
narradores deste livro de estreia (tornou-se lugar-comum chamá-los alter egos
de Mirisola) todos envergam aquele estado de espírito do sujeito que não
encontra transcendência nenhuma na vida, da personalidade excessivamente lírica
a que, entretanto, não cabe mais nem o desajuste calculado dos
beats
como rótulo assumível. É o sujeito que, ainda que sinta latejar o chamado
interior de algo que vai além da mesquinhez do cotidiano, ainda que tenha esse
pressentimento a amenizar a perda de sentido de tudo, não consegue ir além das
próprias insignificâncias. O que resta é mergulhar de cabeça na pequenez e
fazer dela literatura, na expectativa de que o ato de expressão baste por si
só. A autocaracterização do narrador do conto “Relato de uma breve história de
sacanagem” é reveladora de sua autodegradação.
“Sou um tarado romântico que reconhece a si mesmo no cheiro
do amor e da merda da pessoa amada.” (p. 99)
Esta obra de estreia de Mirisola é, em muitos sentidos, uma
literatura-excremento, no sentido de que parece ser expelida, quase vomitada
como uma matéria de cujo acúmulo é preciso se livrar, sem, todavia, abrir mão
do artesanato formal. Daí certo ar de espontaneidade planejada, de desabafo
premeditado que permeia todos os contos aqui presentes. É, para usar uma
expressão cara ao autor, uma literatura feita a contragosto, de modo que a
impressão geral é a de que os narradores, se pudessem, dispensariam todo o blá
blá blá da sublimação literária elevada e se comunicariam, como diz o narrador
do conto “Qual o mal de a Mina”, “‘que nem cachorro’, sabe? Sem frescuras do
tipo ‘Bom dia, como está?’” (p. 56). Nessa tentativa de recuo primitivista a
pulsões desracionalizadas, no fundo o livro de estreia de Mirisola tenta o que
as vanguardas do início do século XX já tentavam: a expressão do desejo puro, o
alcance do verbo liberto das amarras civilizacionais, com a adição, em sentido
contrário, do cinismo e do desencanto como ingrediente, traço civilizacional
inegável, ainda que, mais uma vez, a contragosto.
Mas o caminho para o verbo abjeto é, paradoxalmente, o do
artifício, o do constrangimento formal. Por isso, para manter a atitude
porra-louca, é preciso fabricar as próprias felicidades apenas para que se
possa pisar nelas, fabricando, assim, também, a própria rebeldia:
“Onde está minha senhora? As crianças? A Marajó 85? A
felicidade que eu faço questão de esculhambar? A minha felicidade?” (conto
“Adeus Rua Butantã!”, p. 45)
No final das contas, “é tudo um fazer e refazer de conversas
desperdiçadas ou, para quem quiser, um balanço de latidos interiores, de lucros
e prejuízos imaginários” (conto “Mas um cara doce como eu?”, p. 88).
As narrativas não buscam a solenidade de momentos
edificantes nem contêm epifanias vislumbradas a partir do cotidiano, mas, na
confluência entre o estado psicológico do narrador e as peculiaridades miúdas
do dia a dia, o autor logra obter efeitos contundentes. Nessas passagens, a
transição do espaço e da temporalidade internas para o dado externo é feita com
ironia desconcertante:
“Quando eu penso no meu corpo, às onze e meia da manhã,
dobrado sob o cobertor, de repente, me ocorre a eternidade e a culpa de ter uma
cabeça que dói. A claridade que vem do sol. A culpa e a eternidade tanto podem
ser associadas à fatuidade de comprar pão calçando chinelinhas quanto à
desventura de levantar da cama.” (p. 116)
Em
Fátima fez os pés para mostrar na choperia, o
então estreante Marcelo Mirisola já mostrava muito da retórica feroz que o
tornaria
persona non grata entre muitos círculos literários.
Particularmente, este ainda não é o Mirisola que mais me agrada, mas não deixa
de ser notável observar a construção de uma prosa bem peculiar que viria a
adentrar o século XXI com vigor próprio.
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