Boletim Letras 360º #614
Katherine Mansfield. Foto: Ida Baker. |
Linda Burnell, mãe de Kezia e
Lottie, descansa no andar de baixo, enquanto sua mãe organiza a nova casa da
família no interior da Nova Zelândia. Seu marido, Stanley, foi trabalhar, mas
voltará sempre ansioso em rever a família. As filhas brincam de preparar o
almoço em um degrau de concreto, e sua irmã canta canções de amor para um jovem
imaginário. Ainda que a vida familiar seja exemplar, há algo vazio e intenso em
Linda. A trama de A Aloe remete às memórias da infância de
Katherine Mansfield (1888-1923), mas engana aqueles que, à primeira vista,
limitam a obra a um romance curto de memórias. Num fio que passa por três
gerações de mulheres, o texto é repleto de conjecturas e experimentações
estilísticas. Um tesouro redescoberto a cada nova leitura. Contemporânea de
Virginia Woolf, com quem teve uma amizade complexa, com períodos de
distanciamento e outros de muita proximidade e até cumplicidade, Katherine
Mansfield é dona de alguns dos melhores contos já escritos em língua inglesa.
Com seu espírito inquieto, a autora experimentou com a estética modernista,
trazendo nuances novas e rompendo o tradicional de um jeito extremamente
elegante e perspicaz. Cada vez mais descoberta, mas ainda incógnita em certos
círculos e rincões, Mansfield causa encantamento e reflexão. Admirar sua
escrita é caminho sem volta. Publicação da editora Lume; tradução de Nara
Vidal. Você pode comprar o livro aqui.
Setenta anos após sua primeira
publicação em húngaro, este livro redescoberto da literatura do Holocausto
recebe sua primeira edição em língua portuguesa. Um relato profundamente humano
sobre o horror dos campos de concentração, sob o olhar de um de seus
sobreviventes.
Ao saltar do trem, um grupo de
judeus é direcionado a dois caminhos: à esquerda, aqueles julgados sem
serventia, imprestáveis para o trabalho forçado, que seriam executados em menos
de uma hora; à direita, os que seriam encarcerados e escravizados, cujos corpos
seriam destituídos de qualquer tipo de humanidade — mas que seguiriam vivos.
József Debreczeni foi um dos que tiveram “sorte”. Passou doze meses atrozes de
servidão em uma série de campos de concentração, terminando no Crematório Frio,
como era chamado o hospital de Dörnhau, onde os prisioneiros fracos demais para
trabalhar eram deixados para morrer. Publicado originalmente em húngaro em
1950, O crematório frio nunca fora traduzido devido às hostilidades da Guerra
Fria e do antissemitismo. Passaram-se mais de sete décadas até este livro ser
vertido em quinze idiomas, finalmente inserindo-o no rol das grandes obras da
literatura sobre o Holocausto. Debreczeni obriga o leitor a imaginar seres
humanos em circunstâncias impossíveis de compreender intelectualmente,
revelando-nos uma sociedade assombrosa. Como ressalta o posfácio de Michel Laub
à edição brasileira, este relato é um registro histórico — mas que, em tempos
sombrios de extremismo político, faz também as vezes de uma súplica: que o
passado não volte a se repetir. Tradução de Zsuzsanna Spiry; publicação da
Companhia das Letras. Você pode comprar o livro aqui.
Um mergulho lírico no universo de Super Mario World, em que a memória detalhista da jornada do herói da Nintendo se enreda com a relação entre o poeta aos nove anos de idade e a mãe.
Quatro décadas depois de lançado,
o jogo dos irmãos ítalo-americanos Mario e Luigi, dois encanadores que
enfrentam inimigos nos subterrâneos do Brooklyn, é uma presença vivíssima ao
nosso redor. Nas telas e também em camisetas, meias e canecas, encontramos a
figura simpática desses heróis com seus inconfundíveis bonés, macacões e
bigodes, que agora saltam também dentro de um livro de poemas escrito por um
jovem, nascido na Irlanda do Norte, que se destaca na poesia de língua inglesa
atual. Se o mundo e o amor fossem jovens, de Stephen Sexton, é um mergulho
lírico no universo de Super Mario World, em que a memória detalhista da jornada
do herói da Nintendo se enreda com a relação entre o poeta aos nove anos de
idade e a mãe, quando ela vivia os seus últimos dias. A cada verso, as fases da
vida e as fases do jogo se fundem e se iluminam. O mundo à volta é um jogo e
vice-versa. Atento a essas fusões, o escritor Ricardo Terto, que assina o texto
de orelha da edição, lembra que “morre-se inúmeras vezes em jogos, e mais:
morrer faz parte do percurso de aprendizado da jornada”. Em versos densos e
medidos (uma sílaba para cada um dos 16 bits do sistema), magistralmente
traduzidos por Ana Guadalupe, Sexton retoma essa lição aprendida enquanto
apertava os botões do controle e encontra uma porta que leva do videogame ao
jogo de vida e morte de que todos participamos [Equação]sem outra chance. No
fundo, vibra a esperança de que os irmãos encanadores pudessem lutar também nos
corredores do hospital e, mais ainda, contra os inimigos dentro do corpo da
mãe, prolongando ao máximo a fase em que ela e toda a família estão vivos. A
maior vitória, enfim, é da mais inesgotável matéria de poesia e de vida: o
amor. Publicação do Círculo de Poemas/ editora Fósforo. Você pode comprar o livro aqui.
Nova edição com texto
estabelecido e anotado reaproxima a Narcisa Amália dos novos leitores.
A poeta, tradutora, jornalista e
professora Narcisa Amália (1852-1924) foi extremamente ativa no cenário
literário brasileiro, recebendo elogios de nomes como Machado de Assis, e se
não costuma figurar no cânone oficial, é porque publicou em uma época em que a
autoria feminina era vista com desconfiança. Inspirando-se na francesa George
Sand, Amália se considerava uma precursora brasileira do feminismo. O resgate
de sua obra no século XXI revela uma pensadora complexa, de versos sinestésicos
e pungentes. Apelidada de “Safo brasileira”, ela foi celebrada como uma poeta
romântica multifacetada. Nebulosas dialoga com as três gerações do
romantismo: a que se inspira na paisagem do país, a de vertente melancólica e a
da crítica social que denuncia a violência da escravidão, onde se enxergam as
pulsões republicanas e abolicionistas da autora. A nova edição da Penguin/
Companhia das Letras traz notas e introdução de Anna Faedrich, ajudando novos
leitores a decifrarem o universo desta enigmática autora brasileira. Você pode comprar o livro aqui.
Afiado, sistemático, hilariante, escandaloso, cheio de raiva. Uma overdose pode provocar delírios alucinatórios, euforia súbita, emoção, ternura, voo. E. M. Cioran.
Foi com Memórias de Marta que Júlia Lopes de Almeida estreou em folhetim
em 1888. Neste romance, a narrativa é conduzida pela voz de Marta, que rememora
criticamente suas experiências desde a infância pobre, marcada pela perda do
pai, até a vida adulta. Para além de mero registro histórico ou comentário
social inquietante, o romance possui a força das grandes ficções, elaborando em
poucas páginas um universo pleno e verossímil de figuras brasileiras complexas,
em uma leitura prazerosa e de alta voltagem estilística. A edição da Penguin/
Companhia das Letras traz introdução de Anna Faedrich e estabelecimento de
texto de Rodrigo Jorge Neves. Você pode comprar o livro aqui.
RAPIDINHAS
Décio Pignatari, o poeta por
inteiro. A Companhia das Letras prepara para fevereiro de 2025 a reedição
dos poemas completos de um dos nomes fundadores da Poesia Concreta. Trabalho de
Augusto de Campos e André Vallias.
Edgar Telles Ribeiro imortal.
Depois de umas decisões duvidosas, a Academia Brasileira de Letras reapruma
o eixo ao eleger um escritor para a vaga da cadeira 27 deixada por Antonio
Cicero.
O novo livro de Marize Castro.
A poeta celebra os quarenta anos de atividade literária com a publicação de Maroceano.
O lançamento da editora Una marcou a noite de quarta-feira, 11, em Natal.
Ruy Belo outra vez de regresso.
Uma parte da poesia do poeta volta às livrarias brasileiras com a publicação
de Toda terra, livro que, segundo a Assírio & Alvim Brasil, é uma robusta síntese da sua obra.
OBITUÁRIO
Morreu Nikki Giovanni.
Nikki Giovanni nasceu no dia 7 de
junho de 1943, em Knoxville, Tennessee. Foi ainda nos anos 1960 que sua obra e
pensamento ganharam repercussão nacional: pelo menos três dos seus primeiros
livros, Black Feeling, Black Talk (1967), Black Judgement (1968)
e Re: Creation (1970) aparecem no âmbito movimento Black Arts, marcado
pela luta em prol dos direitos civis negros e pelo Movimento Black Power. A
perspectiva combativa, revelou Nikki Giovanni como “Poeta da Revolução Negra”.
Além da poesia, sua obra se desenvolve na literatura para crianças e no ensaio.
No Brasil, saiu a antologia Um bom choro: o que aprendemos com lágrimas e
risos (2023). Nikki Giovanni morreu no dia 9 de dezembro de 2024, em
Blacksburg, Virgínia.
Morreu Dalton Trevisan.
Dalton Trevisan nasceu em 14 de junho de 1925, em Curitiba. Formado em
Direito, ainda exerceu a advocacia antes de ingressar definitivamente na
literatura. Datam deste período seus primeiros contos, lançados em folhetos.
Entre os anos de 1946 e 1948 esteve à frente revista Joaquim, um marco
na literatura curitibana e que permitiu o convívio do próprio escritor com
alguns dos nomes já importantes e consolidados da criação e da crítica
literárias. Foi também na revista que apareceu muito do material de seus
primeiros livros de ficção, incluindo Sonata ao luar (1945) e Sete
anos de pastor (1948) — duas obras mais adiante renegadas pelo autor.
Observando o bulício das ruas e suas figuras, Dalton Trevisan construiu uma
extensa contística marcada por livros como Novelas nada exemplares
(1959), Morte na praça e Cemitério de elefantes (1964), O
Vampiro de Curitiba (1965) — que formula seu epíteto devido ao isolamento
propositivo que passa a assumir desde então — A guerra conjugal (1969), Crimes
da paixão (1978), Lincha tarado (1980), Ah, é? (1994), Pico
na veia (2002), Capitu sou eu (2003), Macho não ganha flor
(2006), O anão e a ninfeta (2011). Sua única incursão na forma longa foi
com o romance A polaquinha (1985). A vasta e inovadora produção no conto
colocou o escritor entre os mais importantes do gênero na literatura
brasileira. E vários foram os reconhecimentos: recebeu por quatro vezes o
Prêmio Jabuti (1960, 1965, 1995 e 2011); o Prêmio Portugal Telecom/ antigo
Oceanos (2003); o Prêmio Camões e o Prêmio Machado de Assis (2012). Dalton
Trevisan morreu em 9 de dezembro de 2024, em Curitiba.
DICAS DE LEITURA
Na aquisição de qualquer um dos
livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a
manter o Letras.
1. O centauro no jardim, de
Moacyr Scliar (Companhia das Letras, 240p.) O nascimento de um centauro numa pacata
família de imigrantes judeus russos é o ponto de partida para a narrativa que acompanha
a trajetória dessa personagem na tentativa de se adequar no mundo. Você pode comprar o livro aqui.
2. Adeus, Maria e outros contos,
de Tadeusz Borowski (Trad. Matheus Moreira Pena, Carambaia, 416p.) As
minúcias do cotidiano em Auschwitz e outros campos de extermínio alemães. Você pode comprar o livro aqui.
3. Ode à errância, de Adonis
(Trad. Michel Sleiman, Tabla, 272p.) Três livros do poeta sírio que celebram
seus itinerários em três cantos-limites do mundo. Você pode comprar o livro aqui.
VÍDEOS, VERSOS E OUTRAS PROSAS
No passado dia 10 de dezembro foi celebrada a Hora de Clarice. O evento
proposto pelo Instituto Moreira Salles (IMS) visa transformar o dia do
nascimento de Clarice Lispector numa data para se lembrar a obra da escritora
através de projetos dos mais diversos. Neste ano, o próprio IMS disponibilizou
um podcast; em cinco episódios, discute-se a trajetória criativa da escritora. Concebido
e apresentado por Bruno Cosentino, o material traz passagens da obra clariciana
lidas pela cantora Maria Bethânia. Ouça aqui.
BAÚ DE LETRAS
Centauro no jardim, de Moacyr Scliar foi resenhado recentemente pelo nosso colunista Sérgio Linard. O romance também foi reeditado em novo projeto gráfico pela Companhia das Letras. O texto está disponível aqui.
Ainda Dalton Trevisan. Em junho de
2008, publicamos no blog um breve perfil do escritor, agora revisto. O texto
está disponível aqui. Já aqui, em março deste ano, publicamos um texto enviado
por Marcelo Jungle dedicado a apresentação deste que foi um dos últimos
trabalhos executado pelo contista: a Antologia pessoal, livro com sua
escolha dos melhores contos até então.
DUAS PALAVRINHAS
Escreve-se para dizer sou mais que
meu pobre corpo.
— Adélia Prado.
...
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* Todas as informações sobre lançamentos de livros aqui divulgadas são as oferecidas pelas editoras na abertura das pré-vendas e o conteúdo, portanto, de responsabilidade das referidas casas.
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