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Mostrando postagens de dezembro, 2024

O quarto ao lado, de Pedro Almódovar

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Por Paula Vázquez Prieto   Num hospital de Manhattan, Martha (Tilda Swinton) acaba de receber más notícias. A esperança em seu novo tratamento contra o câncer se esvazia como o balão esquecido de um aniversário distante. Não resta muito tempo e a isso se soma o prognóstico de uma agonia lenta e dolorosa. Quem chega para visitá-la é Ingrid (Julianne Moore), uma amiga de juventude, quando ambas eram atiradas e imprudentes, e desfrutavam da aventura e da escrita. Martha como correspondente de guerra e Ingrid como romancista partilharam anedotas e amantes apaixonados, como agora compartilham a nostalgia e uma amizade reconquistada. Para Ingrid, a morte é o tema do seu último romance; para Martha, a realidade que está por vir.   Enquanto observa a neve cair pela enorme janela de seu quarto, Martha cita as últimas falas de Os vivos e os mortos , filme de John Huston baseado no famoso conto de James Joyce. “Cai debilmente no universo, e cai debilmente, como o final inevitável, sobre...

Navilouca

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Por Eduardo Galeno Do original de Auto da barca do inferno (1517)   O teatro de Gil Vicente é a monarquia de Portugal. Pode parecer estranho nomear assim de supetão um objeto que é formado numa gestação complexa — as letras e as significações das letras, que são tão maleáveis —, mas a dinastia de Avis (no poder do rei transmutado pelas enunciações vicentinas) transfere a imagem teológica para a poética.   A ideia do humanismo perante a moralização ad infinitum dos costumes, que era preconizado através do ensejo e do uso do tropo alegórico, não é precisa para elencar os traços de um auto . O caráter de humano era calculado pela lógica aristotélica de hierarquia no representamen , ou seja, mesmo com o misto de qualidades da extração social (baixas e altas) no bojo da peça, Auto da barca do inferno situava exatamente o viés do contrassenso no lugar platônico do diálogo : a homologia , dizia Lyotard, e também a unicidade do referente ( salvação )   Fato é: a possibilidade ...

Um poeta na fila do feijão

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Por Thiago Teixeira Carlos Drummond de Andrade. Arquivo de Pedro Augusto Drummond Não sei se nos anos de 1940 ainda se passava pela cabeça de algum poeta encastelar-se como aquele Beneditino que ficava longe do estéril turbilhão da rua (ainda que se tenha taxado a vindoura geração de 45, que já começava a aparecer, como conservadora e um tanto parnasiana), afinal, já naquela altura o turbilhão da rua passou a ser fonte de poesia, e o que o poeta buscava era mesmo sujar o brim branco na primeira esquina. Sei apenas que foi nesses anos 40 que Drummond lançou Sentimento do mundo , 1 no qual o vemos em angústia por perceber entre si e o trabalhador braçal uma distância insuperável, como fica claro em “O operário no mar”. “Quem sabe se um dia o compreenderei?”, pergunta-se, explicitando o distanciamento em relação ao operário, esse agente histórico tão importante no século XX. Um mar separa Drummond do operário, mesmo com toda a vontade de se unir a ele, de modo que mesmo no político livro...

Boletim Letras 360º #613

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DO EDITOR   Ficamos fora da web , pelo menos esta nossa página, durante uma semana: da sexta-feira, 29 de novembro, à sexta-feira, 6 de dezembro. Isso nunca acontecera nestes 17 anos online. Foi uma falha na transição entre servidores que hospedam o domínio do Letras o motivo do problema. Assim, as nossas publicações diárias saíam, mas não chegavam a vocês.   Uma semana de labuta e alguma angústia para conseguimos sair da caldeira escura do apagamento. Um dia este projeto acabará, afinal, nada é eterno. Mas, por aqui, ainda não estamos preparados para isso. Agradecemos àqueles que, preocupados, nos procuraram nas nossas redes e torceram pelo nosso pronto retorno. Toda energia positiva, sabemos, deve ajudar em horas como essas. Deu tudo certo e aqui estamos.   Aproveitamos esta entrega do Boletim Letras 360º para agradecermos ainda pelas ajudas que muitos de vocês enviaram ao Letras nas aquisições com o nosso link durante os dias de Black Friday da Amazon. Reiteramos aqu...

Como ficar quieto em alemão

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Por Alejandro Zambra Tallón.  Macedonio Fernández.    Macedonio Fernández é meu escritor favorito de dois em dois anos. Admiro naturalmente seu humor e sua elegância singular, mas por vezes a relação malogra, por assim somos nós, leitores: por vezes pedimos a um escritor o que jamais quis nos dar. Macedonio é brilhante, mas nem sempre desejamos esse brilho, porque nem sempre somos, como queria ele, “leitores artistas”. Releio Papeles de Recienvenido [Papéis de um recém-chegado] e Continuación de la nada [Continuação do nada], os livros de Macedonio que voltaram a ser reunidos há alguns meses pela editora espanhola Barataria, em uma coleção mais que necessária na qual também comparecem Martín Adán, Juan Emar e outros gênios da vanguarda latino-americana. Rapidamente descubro que neste ano me cabe amar Macedonio. E me parece estranho que às vezes não goste.   Seja como for, devo esclarecer que sempre — nos anos que quero e nos que não quero — rio de suas piadas. Esta...

Fátima fez os pés para mostrar na choperia, de Marcelo Mirisola

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Por Henrique Ruy S. Santos Marcelo Mirisola. Foto: José Caria   Ler o livro de estreia de alguém após ter lido outras de suas produções mais maduras é um risco. Por um lado, a leitura da obra inicial à luz dos desenvolvimentos que viriam a se realizar posteriormente na obra de um autor pode fornecer diversas chaves interpretativas interessantes e insuspeitadas caso o primeiro contato tivesse se dado diretamente com a obra de estreia. Alguns traços de estilo ou certas propensões temáticas parecem fazer mais sentido se cotejados com o que foi escrito em momentos ulteriores. “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”, diria Karl Marx.   Por outro lado, esse tipo de leitura pode incorrer no que julgo ser um erro, isto é, a prática nem sempre acertada de encarar a obra de um escritor como uma linha evolutiva, sempre caminhando em direção a um suposto maior grau de complexidade e refinamento. A obra inicial, sob esse prisma, perde sua autonomia enquanto texto único, na me...

A lição de piano, passado e presente ficam em família

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Por Ernesto Diezmartínez   Apresentado este ano no Festival de Cinema de Telluride, Estados Unidos, e posteriormente no Festival Internacional de Cinema de Toronto, Canadá, para depois ter uma brevíssima e restrita comercial no seu país natal com a finalidade de ser indicado ao Oscar 2025, A lição de piano (EUA, 2024) foi lançado mundialmente pela Netflix como a obra-prima de Malcolm Washington, outro membro do clã liderado pelo duas vezes premiado ator Denzel (que aqui atua como coprodutor do filme de seu filho), filme que também estrela outro de seus filhos, o ator John David Washington. Para ampliar o nepotismo, a esposa de Denzel e mãe de todos os seus filhos, Pauletta, faz uma ponta especial, enquanto as duas filhas restantes também colaboraram no filme: Olivia tem uma breve entrada em cena e Katia é uma das produtoras executivas. Ou seja, tudo ficou em família.   Esta demonstração de nepotismo cinematográfico se encaixa perfeitamente no centro dramático do filme, escri...

John Updike, o profeta da infidelidade resolvida

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Por Rodrigo Fresán John Updike. Foto: Yousuf Karsh   Com a morte de Jonh Updike em 2009 se iniciou a mais omnipresente e estranha das ausências. O escritor publicava pelo menos um livro por ano (ficção ou poesia ou uma coletânea de ensaios sobre tudo o que lhe interessava, que era nada mais e nada menos que tudo), aumentando assim uma obra que o colocava, outubro após outubro, dentro da prestigiosa e estigmatizante lista dos apostadores com aqueles que deveriam (mas não poderiam) ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Como no caso do seu colega de profissão com quem parecia travar o mais elegante, mas não menos forte duelo literário — Philip Roth —, a justiça se fez para nenhum dos dois. Mas o que foi dito acima não privou Updike de se dar ou nos dar o luxo de fazer muito e de várias maneiras.   Só para citar alguns marcos: os contos autobiográficas com um alter ego e uma região própria (David Kern pelas ruas de Olinger ou Tarbox), o ciclo de romances com um personagem que refl...

Uma viagem ao país dos surrealistas

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André Breton e Leon Trótski, no México, em junho de 1938. Há uma tendência a acreditar que a viagem dos três surrealistas ao México - refiro-me a Antonin Artaud, André Breton e Benjamin Péret — foi algo semelhante a uma lua-de-mel ou a umas férias prolongadas em um lugar exótico. O balanço final convida-nos a qualificar o mito em cada caso, embora por razões diferentes. Os dois primeiros chegaram amparados por um programa oficial de conferências, enquanto o terceiro teve que se contentar com esta terra de exílio na Segunda Guerra Mundial, quando teria preferido encontrar-se com os surrealistas que estavam asilados em Nova York, algo que foi proibido devido à sua militância trotskista.   Para Antonin Artaud, relata Luis Cardoza y Aragón, “o Departamento de Ação Social da Universidade Nacional Autônoma do México patrocinou três conferências. Em todas foi além dos textos que conhecemos. Apresentou-as nos dias 26, 27 e 29 de fevereiro de 1936, no Anfiteatro Bolívar, da Escola Prep...