Por Renildo Rene
Walter Salles revelou seu olhar vertiginoso sobre o nosso
cenário político, mas esqueceu de encenar a compra da televisão realizada por
Eunice Paiva, no início deste milênio, que confirmaria certas dimensões para
pensar o ideal brasileiro pós 88. No novo filme do diretor, visitamos a família
de Marcelo Rubens Paiva, em uma estrutura linear bem definida de tempo e espaço,
após o seu desaparecimento orquestrado por militares brasileiros na década de
70.
Já na cena inicial, os créditos indicam a data e o contexto
dos eventos que o espectador irá vislumbrar. Em seguida, uma restauração
imagética da residência sempre bem ocupada por familiares, amigos e objetos que
encenam a cultura popular daqueles anos. Veroca, Nalu, Eliana, Babiu e
Cacareco, os filhos de Marcelo com Eunice, ganham presença por meio dessa
vertigem da câmera de ocupar diferentes posições, movimentos, tamanhos, para ilustrar
os dias como a união de muita gente, e com a felicidade que os une prestes a
ser minada. A típica representação da família segue a ambientação dos cidadãos
discutindo políticas em seus espaços particulares, ocorrendo de forma
muitíssima direta e apontando para os papéis do círculo social de boa parte da
galera intelectual da resistência contra a ditadura.
Duas figuras, porém, estão circulando nesse universo e se
tornaram bem mais visíveis pelas reações que suas aparições me causam, porém mais
tímidas quando li o material base do filme: a empregada Zezé e o cachorro de
Marcelo. O animal será elemento para despertar a empatia com outro sentimento
que falarei mais adiante, já a personagem interpretada por Pri Helena relembra
como o trabalho doméstico tem um serviço importante e, amargamente, relegado
para que essa família continue em resistência.
Zezé é responsável pelo funcionamento da casa e das
crianças, tanto antes como após, na virada da trajetória de Eunice Paiva: ela
cuida de todos os afazeres, recepciona serenamente os amigos com água mesmo
quando os militares aparecem, cuida das crianças quando a mãe e uma das filhas
são levadas para a prisão, lava a residência com mangueira vigiando os carros
do lado de fora, tira dinheiro do próprio bolso e fica sem receber seu salário
quando os bens de Rubens são bloqueados, e ajuda a enterrar com doçura o
cachorro atropelado. Sua demissão prova justamente o amargor que é ver sua
participação sempre restrita ao periférico na composição das cenas porque sua
função não revela nada além do cotidiano de quem trabalha, quem repete os
mesmos hábitos do ofício enquanto a outra experiência de classe vive sequências
de ação diferentes de enfrentamento à violência.
Quando Eunice entra no seu quartinho para dar a notícia,
sabemos que o filme não pode e não quer (e nem conseguiria) ir além do trabalho
mais síndrome-estrutural do Brasil. Eunice, alçada como símbolo, pelas
linguagens que lembram a dureza dos anos de chumbo, dos cidadãos menos ligados
a militância. Zezé, enfrentadora do período obscuro da política sem quaisquer
glamour e/ou informações diretas de como lutar contra aquilo que mina os
direitos cidadãos — ela apenas segue trabalhando, até depois da demissão,
sabemos, porque sua presença é, fora do lugar emocional de apego das crianças,
substituível (os filhos conseguem montar uma escala para realizar as mesmas
tarefas empregadas por ela) e requisitada em outros lugares.
Puro contraste entregando camadas variáveis: Fernanda e Pri,
Eunice e Zezé, trejeitos concisos, recheados de profundidades e outros trejeitos
dispersos, mas limitados diante o tempo. Uma dupla que carrega a cena para o
jogo de signos implícitos. A segunda ministra as várias atribuições que cabem a
sua personagem com cativação no rosto e presença sentida em cada cômodo; interpreta
as cenografias de quem sabe manter o espírito do ofício quando o espaço está
mais iluminado ou não. É o contrário da primeira, interpretando uma mulher
posta mais madura, de aparência contida e reveladora nos atos pequenos de
hesitação.
Isto não chega a ser, obviamente, oposição ao filme de
Salles e aos escritos de Paiva visto seus potenciais de abraçar o sentimento de
fragilidades estruturais da família intelectual frente ao desenrolar dos
acontecimentos no Brasil. Ambos aparecem à mercê das possibilidades dos
brasileiros (e motiva-os) a se relacionarem com as artes, a encenação política
e as necessidades de discutir se as imagens de resistência sobre as ditaduras
são sempre as mesmas ou seguem revisitadas.
A máquina militar se edificou rompendo a liberdade de
pessoas como Rubens — ponto que converge a tantos outros parentes de
desaparecidos políticos — e pessoas como Eunice heroicamente hastearam a
bandeira de enfrentamento por gestos corajosos; mas pessoas como Zezé engajam a
força braçal da população que sustentou/sustenta quaisquer estágios da política
brasileira pela adjacência de seus ofícios (por isso, a ainda atualidade das
obras de Leon Hirszman e Giafrancesco Guarnieri abrindo luz para famílias
operárias em tempos de repressão). Uma coisa é certa: Walter Salles conseguiu
despertar, singelamente posso dizer, esse contraste dentro da própria resistência
— que não é só conflito de ideias, é conflito de representações dessas ideias.
O filme aposta na economia de ação acompanhando a angústia
sentida naqueles dias de tortura e, sem precisar apressar os desdobramentos por
anos, dá a tônica do vazio cruel infiltrado na família. É o oposto da
autobiografia publicada por Marcelo Rubens Paiva que alarga o tempo de suas
experiências por décadas, distinguindo o tempo pela apropriação que faz de
vários episódios, para cruzar a dimensão das memórias pessoais com a
instabilidade política do país. De leitor à espectador, espiamos os dias de
Eunice Paiva por outra forma, outro olhar que emancipa a rotação dos seus dias
para sobreviver diante a omissão violenta do Estado.
Com a prisão da matriarca, a técnica do diretor rotaciona
diferentes sobreposições de efeitos e de trilhas sonoras para tonificar estados
de pseudo-torpor; ora encaramos elementos sombrios, ora somos nocauteados por
concisões de marcas melodramáticas muito bem administradas (estamos falando da
mesma pessoa que colocou Central do Brasil no farol da indústria
cinematográfica mundial). Falo de um pseudo-torpor porque enquanto no livro
somos convidados a conhecer a lacuna dos sentimentos de Eunice pela relação
filho x mãe, no filme a pontualidade dos atos dessa mulher e suas
motivações nunca são a diminuição total da necessidade de externar sua
moralidade, mas estratégia lançada por sua própria personalidade.
E quem irá dobrar a percepção histórica dessa figura é o
talento brilhante de Fernanda Torres ao recuperar Eunice Paiva pela entrega de
seu corpo ao espectador. Nós acompanhamos sua desenvoltura e seu andar, da
residência à prisão, enquanto deciframos admiravelmente a coragem envolvida no
seu papel de mãe. Aquilo que não consigo sequer descrever e que denominamos por
atuação, Torres exibe em aspectos ambivalentes: opositora política, ela age
pacientemente; responsável por cinco filhos e esposa de um desaparecido
político, ela externaliza o cuidado materno da proteção por raiva e medo. A
direção sabe desse talento e expõe-no por sombras, distâncias, luzes — tudo
realçado ao máximo.
Não à toa esses sentimentos intercalam-se ainda mais quando
o cachorro da família é atropelado pelos militares já fazendo perseguição na
porta de casa. A indignação de Eunice por Fernanda movimenta a mesma indignação
de quem vê vontade de enfrentar o algoz, justamente após o único episódio onde
a morte é testemunhada diretamente. Outra cena mais tarde, na sorveteria, ela
já se encolhe e um enquadramento de seu perfil é o suficiente para compreender
o retrato feito — a insatisfação de seguir em frente ao redor de tanta
normalidade colocada sobre a incerteza do corpo de seu marido.
Tal incerteza vai somente alimentar outra necessidade
registrada cautelosamente por Marcelo e Walter: a fome de arquivo para edificar
o largo da ausência. O livro examina, de um certo ponto de vista, várias
notícias, documentos oficiais e outros textos e imagens para incorporar um
inventário que denuncie a omissão do Estado durante décadas. O filme recupera
esse elemento — há troca de cartas, de objetos, registros fotográficos, filmes —
e o encena para avançar a relação de incongruência sentida entre as personagens.
Uma sacada estética para aproveitar o cinema como expansão visual dessa
história e catalisar as emoções sobre quem se sente firme face à escuridão.
Como resultado, a arte coloca em disposição o lugar
testemunhal dos arquivos como ponte direta para o território da mãe e seus
filhos. Tudo envolve a completa ocultação da ação direta dos militares
(principalmente, a tortura) para direcionar a percepção do espectador para a
instabilidade psicológica entre troca de olhares, falta de informação, incompreensão
do funcionamento da máquina e obstinação para enfrentar a mudança brusca.
***
Gostaria de igualmente poder estender minhas impressões e
comentários da minha experiência lendo a autobiografia e assistindo a sua
adaptação, porém o espaço me encobre e a atenção para outros dilemas da
literatura me consomem. Deixo, no entanto, algumas indicações aos indivíduos
mais curiosos ou que, tocado por essas questões, se disponham a também pensar
nesses eixos.
Uma boa oportunidade de pensar a situação da classe
trabalhadora, e que é pensar também as referências históricas que temos para
suas representações no audiovisual quando se fala em política, são os filmes da
produtora Filmes de Plástico.
Marte um (dir. Gabriel Martins, 2022) toca
na persistência do trabalho precário diante crises nacionais a partir de uma
provocação totalmente centrada nos sonhos e dilemas de outro tipo de composição
familiar; enquanto
O dia que te conheci (dir. André Novais, 2024) procura
no mesmo cotidiano da Zezé de Walter Sales um olhar banal diante de
representações igualmente banais.
Annie Ernaux é quem vai relembrar, na economia (atentem-se
para esse termo, analisado sob outra forma pela francesa em contraposição ao
filme de Salles) de seu texto, a escrita como possibilidade de deflagrar a inserção
da classe média intelectual nas artes e propor outra discussão sobre a
miserabilidade do labor no plano das artes, vide
O lugar (1983).
Contudo, me parece que, ironicamente, o que Annie Ernaux
escreve se aproxima muito da experiência do que está escrito no livro de
Marcelo Rubens Paiva: as inúmeras tentativas de colocar a confissão memorial à
frente do leitor, provocando reações diversas ao que já foi sentido — e não o
que se pode sentir. E, então, o leitor poderá encontrar no romance
Estive lá
fora (2012), de Ronaldo Correia de Brito, o recurso ficcional de ter o
tempo da leitura para se colocar no tempo da ditadura, não só porque esse livro
implica em personagens que nunca existiram no nosso plano (será?), mas porque a
mobilização das famílias e das fontes de arquivos ocorrem de diferentes
maneiras ao qual estamos sempre sendo expostas — como se esquecêssemos pela
manhã, para lembrarmos com êxtase à noite.
Minha última dúvida é querer saber por que Walter Salles
retirou o elemento mais simbólico do seu material base e que manteve meu
interesse impregnado naqueles dias de leitura sobre a família Paiva. Se me
incomodava o contraste de privilégios percebidos no livro, algo me saltava na
superfície do texto para refletir sobre a memória e que foi totalmente
dissolvido em uma única cena. Este algo é pensar Eunice Paiva como instrumento
de combate ao “mal de Alzheimer Nacional”, como bem ilustrou Bernardo Kucinski,
enquanto ela sofria da doença diretamente na frente de seus filhos. Isso é
profundamente doloroso e me tocou bastante! No livro, isso aparece
primeiramente quando Marcelo diz que reconheceu os primeiros estágios de
esquecimento por uma compra desnecessária de uma televisão, e no filme há pouca
exploração sobre isso (problemas de expectativas minhas, talvez, após o
material de divulgação envolvendo a senhora Fernanda Montenegro) e vai se
destoar em um terno relato humano, justificando o título.
Nada mais havendo a tratar por hora, encaminho mensagem a
senhora Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva para, então, lhe avisar que,
esqueceram de comprar sua segunda televisão
mas tem gente que ainda vive no invisível e, lembrando você,
não irá se cansar de dizer:
“Ainda estou aqui”.
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