Um por todos, todos por um! Quem por Dumas?

Por Henrique Ruy S. Santos


Alexandre Dumas. Foto: Félix Nadar


 
Alexandre Dumas pai é um dos casos mais paradigmáticos de escritor de alta produtividade, daqueles cuja quantidade de obras escritas, entre peças de teatro, ensaios, romances e novelas, é o suficiente para causar assombro pela simples força bruta de sua capacidade imaginativa. Penso, como outro exemplo, no caso de Georges Simenon, escritor francês que, segundo ele mesmo dizia, escrevia um romance a cada 10 dias, sete dias para o esboço inicial e mais três para revisão, acumulando, ao final da vida, um total de quase 400 romances escritos, sem contar biografias e livros de memórias, um feito verdadeiramente surpreendente, independentemente do valor qualitativo das obras.
 
No caso de Dumas, embora não seja assim tão fecundo, trata-se de um autor que foi um profissional assíduo das letras. Após obter sucesso com peças teatrais nas primeiras décadas do século XIX na França, Dumas ingressou no ramo dos romances de folhetim serializados, publicando em periódicos franceses como Le Siècle e o Journal des Débats. A procura por suas histórias se tornou tão grande, que Dumas passou a trabalhar com uma série de colaboradores contratados, que realizavam desde o fornecimento de argumentos para os romances até o acabamento de personagens e episódios. Foi desse modo que nasceu a Maison A. Dumas et Cie., empresa de produção literária que reunia escritores, historiadores e pesquisadores de uma forma geral em prol da escrita de folhetins.
 
Esse seu método de produção, que visava se adequar a uma demanda relativamente alta e manter a também alta popularidade conquistada, foi e é certamente bastante polêmico. O escritor chegou a ser alvo de um processo movido por seu principal colaborador, Auguste Maquet, que reclamou, além dos valores em dinheiro que julgava serem de seu direito, a coautoria pelas obras de cuja elaboração participou. Como resultado, Maquet ganhou o dinheiro, mas perdeu os créditos, e hoje lemos na capa de clássicos como Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo apenas o nome de Dumas.
 
A elevada popularidade de Dumas veio à custa, como é frequente acontecer, de uma certa ojeriza por parte da crítica mais exigente. Já mesmo em sua época, era frequentemente comparado com Victor Hugo, seu amigo, tido como um autor muito mais competente em fazer o que Dumas tanto fazia em suas obras, isto é, misturar ficção e história. Não por acaso, já no século seguinte, Lukács, no livro que dedicou à teoria do romance histórico, deteve-se nas obras do autor de Os miseráveis e de outros autores como Walter Scott e Stendhal, mas sequer mencionou Dumas em suas mais de 400 páginas dedicadas ao tema. Dumas parece fazer parte, assim, daquele grupo de escritores extremamente populares do século XIX, mas que sempre enfrentaram certa rejeição da crítica pelo caráter muitas vezes pueril e mesmo adolescente dos livros que escreveram. Falo de escritores como Jules Verne, Robert Louis Stevenson e Arthur Conan Doyle, cuja popularidade até os dias de hoje é atestada pelas inúmeras adaptações de suas obras para outras mídias, especialmente o cinema hollywoodiano.
 
O frequente exagero dessas adaptações, que muitas vezes optam pela intensificação do mirabolante nos enredos e do espalhafato da ação, termina por sedimentar, nos críticos de hoje, uma desconfiança atávica: tratar-se-ia de literatura feita para agradar um público à caça de histórias rocambolescas e de aventuras extravagantes, portanto de valor supostamente inferior às obras de verdadeiro vigor.
 
Para Flaubert, nas obras de Dumas, “tudo se mistura, corre e se resolve sem um minuto para refletir” (p. 111);1 para Brunetière,2 Dumas era um escritor divertido, mas de medíocres qualidades literárias, e os anos dariam conta de relegá-lo ao devido ostracismo, dando primazia, no lugar, aos autores pouco populares à época, mas de melhores atributos estéticos, como é frequente acontecer com autores pouco apreciados em seu tempo; e o próprio Dumas, comparando-se a Victor Hugo e a Lamartine, dizia não passar de um vulgarisateur.3
 
Entretanto, para tomar a correta medida do valor literário de Dumas em relação a outros próceres do romance histórico francês, nada menos que um estudo sistemático da obra do autor e da literatura francesa produzida à época seria suficiente. Mas alguma luz pode vir de lamparinas mais humildes e, se proponho empresa menos ousada, nem por isso me resguardo da busca pela percuciência da análise, sendo justo, na medida do possível, tanto com a crítica quanto com Dumas. Para isso, tomo como ponto de partida uma das obras mais famosas do autor, o já citado romance Os três mosqueteiros, certamente sua história mais adaptada para outras mídias. Para o bem ou para o mal, esse livro parece encapsular tudo que há de mais característico na literatura dumasiana e, dado o seu valor paradigmático, na literatura do tipo folhetinesco produzida à época.
 
As aventuras de Athos, Porthos, Aramis e do destemido d’Artagnan foram publicadas inicialmente em um período de quatro meses, entre março e julho de 1844, no jornal Le Siècle. A própria instituição do romance de folhetim impunha ao autor determinadas condicionantes que acabavam por informar a estrutura da obra, que precisava atender às exigências de serialização e do público consumidor dos periódicos. Com isso, surge já a primeira objeção, algo pedante e mesmo ingênua, de certa crítica que enxerga no trabalho de Dumas uma literatura de tipo inferior unicamente por atender a determinações externas que não correspondem exatamente a um ideal do fazer literário, atrelado, desde pelo menos o Romantismo, a uma concepção de expressão de um gênio particular ou de uma subjetividade transbordante e única. Nesse ponto, para nos dirigirmos corretamente ao argumento, não podemos deixar de historicizar determinadas categorias estéticas para que as entendamos em suas conexões com a realidade material dos escritores de cada época.
 
Em bom português, mais do que escrever para dar vazão a uma expressividade maior que o mundo, Dumas escrevia para ganhar dinheiro, e cabe à crítica entender como o fez e com que sucesso realizou a empreitada (sucesso do ponto de vista da fatura das obras, e não de público, o que é inegável no caso de Dumas). No universo das letras, nada mais comum do que isso, em diversas épocas, isto é, nada mais normal do que escrever pressionado por necessidades de ordem financeira. Mas o escândalo e certo pudor advêm de novos mecanismos literários surgidos no século XIX e empregados por autores de folhetim, cultivados especificamente com o objetivo de aumentar as vendas: o corte preciso dos capítulos, a predominância da ação rápida, a distensão dos diálogos etc. são elementos que passaram a integrar as obras estruturalmente, atendendo a condições tidas como pouco “nobres”, mas que, se não exagero, correspondem, em algum nível, a tradições muito remotas, calcadas nas práticas de contação de histórias por via da oralidade, como é o caso d’As mil e uma noites.
 
Sob a égide da crítica à literatura de folhetim e por trás de muita “análise” com verniz estético, havia e há muito ressentimento moralista, sobretudo em alguns críticos do século XIX, como Sainte-Beuve, que enxergava na chamada “literatura industrial” uma decadência, chegando a afirmar que “a moralidade literária da imprensa em geral desceu um degrau” (p. 190).4 É possível, todavia — e julgo ser salutar fazê-lo —, observar determinadas obras sem que recorramos a chavões como “decadência cultural” ou a expressões esquisitas como “moralidade literária”.
 
Afinal, não importa o quão firmemente um/a escritor/a acredite no contrário, ele/ela está sempre limitado/a pelas condições históricas que lhe sobrevêm, e até mesmo os grandes abalos sísmicos que, vez ou outra, atingem determinadas literaturas, os Dantes, os Joyces, os Rosas e as Clarices, até mesmo esses cataclismos da linguagem são expressões e possibilidades do seu tempo, gestados por condições materiais e discursivas que os precederam.
 
A instituição do romance de folhetim é mais uma dessas estruturas que sobredeterminou a escrita literária durante muito tempo, e querer que um escritor seja mais do que lhe era possível é uma atitude que guarda sua dose de injustiça crítica.
 
Todavia, duas coisas ainda são certas. A primeira é que escritores/as geniais efetivamente existem/existiram e chegam mesmo a nos fazer duvidar de seus vínculos históricos (como não lembrar do folclore em torno da figura de Guimarães Rosa, que se dizia inspirado por forças sobrenaturais ao escrever seus livros?), advertindo-nos, paradoxalmente, contra o perigo da fetichização da realidade: se as condições nos sobrevêm e nos determinam, elas tampouco são estanques e nós tampouco somos receptáculos passivos. Ou seja, a arte jamais é somente um mero reflexo de determinações materiais e históricas, como já quis certo marxismo vulgar, cabendo-lhe sempre certa dose de autonomia e de agência sobre essas mesmas determinações. A segunda verdade é que, de fato, Victor Hugo foi melhor escritor que Dumas, escrevendo na mesma época e no mesmo país.
 
Faço essa pequena digressão para retomar o compromisso que assumimos alguns parágrafos atrás, ou seja, uma vez que fizemos justiça ao escritor francês, que lembremos de dirigir um olhar senão benevolente, ao menos compreensivo à própria crítica que aponta os defeitos de Dumas. Afinal, se é verdade que ele foi constrangido pelas exigências feitas a um escritor de folhetim, também é verdade que não fez muito, em termos literários, para subvertê-las. Daí a força e a fraqueza intrigantes de sua obra.
 
Para observarmos essas forças e fraquezas e por que são intrigantes, vejamos um livro como Os três mosqueteiros. Nele, percebe-se, em toda a condução da narrativa, a extrema devoção de Dumas aos enredos de tipo mirabolante, às reviravoltas de última hora que surpreendem o leitor e ao alongamento das peripécias pelo tempo que o autor julgar necessário. Em outras palavras, a extrema fidelidade àqueles recursos narrativos típicos do folhetim, postos a uso com o objetivo de manter o interesse do público pelo maior período possível. Essa dedicação à fabulação acima de tudo faz com que Dumas utilize todos os elementos de construção da narrativa a favor da ação e do enredo, que precisa ir para frente a qualquer custo. Assim, por exemplo, se logo no início do romance aprendemos que Athos é um fidalgo exemplar, homem ponderado e o mais sábio dos mosqueteiros, Dumas não hesitará, no capítulo 28,5 em fazer dele um apostador inconsequente que faz d’Artagnan perder os cavalos que lhe foram dados pelo Duque de Buckingham se isso for necessário à preparação da próxima peripécia. Da mesma forma o próprio d’Artagnan, que precisa dar o pontapé inicial à narrativa agindo de maneira imprudente e envolvendo-se em um duelo com Rochefort, apenas para, passados alguns capítulos, ser reapresentado como um jovem sensato: “Eu sempre disse que d’Artagnan era a melhor cabeça de nós quatro” (p. 116), diz Athos ainda no capítulo 9.
 
A própria reconstituição histórica do reinado de Luís XIII na França do século XVII é feita por Dumas com todas as liberdades possíveis. André Maurois, um dos principais biógrafos do autor d’O Conde de Monte Cristo, observa que Dumas chegou a dizer: “O que é a história? É um prego onde penduro meus romances” (p. 150).6 O leitor mal-humorado pode enxergar aí um defeito, um excessivo relaxamento com o compromisso histórico da narrativa, mas o apreciador bem-disposto não deixa de achar algo de divertido em identificar os anacronismos que Dumas insere à vontade na narrativa, sempre que os ajustes de enredo assim demandam.
 
A volubilidade com que o autor maneja os elementos da narrativa, se prejudica a fatura do livro pela falta de coesão em diversos momentos, a engrandece, em outros, pela imprevisibilidade moral de suas personagens. Quanto a esse elemento, as adaptações cinematográficas posteriores trataram de limar os personagens dumasianos de suas contradições éticas e, se hoje temos uma imagem mais ou menos essencializada de alguns personagens, isso se deve muito mais a essas adaptações, que elegeram determinados atributos (que Dumas é verdadeiramente hábil em nos apresentar em poucas linhas para cada personagem) e os alçaram a traços essencializadores das personalidades de cada um. Para ficarmos com dois exemplos, vejamos Athos e o Cardeal Richelieu. O primeiro é, realmente, o mosqueteiro mais nobre e líder do grupo, conforme costuma ser retratado em diferentes adaptações, mas o personagem possui um passado sombrio bastante questionável (bem no espírito dos heróis românticos) e que assusta o próprio d’Artagnan. O segundo é, sim, um dos vilões da história, mas tem pelos heróis uma profunda admiração e é o responsável por conceder a d’Artagnan a promoção que o integra ao grupo dos mosqueteiros do rei.
 
O único personagem verdadeiramente inegociável é Milady (curiosamente, o mais diferentemente adaptado no cinema), verdadeiro vilã do livro do início ao fim, mas nem por isso menos interessante. Pelo contrário, os 10 capítulos que o livro dedica a sua missão de assassinar o duque de Buckingham na Inglaterra são dos mais bem realizados do livro, quando Dumas reduz o ritmo da narração e mostra, em ato, toda a capacidade de sedução do personagem. Até mesmo o ridículo, abismo sobre o qual Dumas está sempre a se equilibrar em corda bamba — muitas vezes sem sucesso —, é amenizado aqui pelo equilíbrio com que a ação enclausurada é conduzida.
 
Porém, essas contradições psicológicas dos personagens, que passam de vilões a mocinhos com certa facilidade, são todas, no final das contas, subsumidas a um esquema único que revela a visão assaz simplista de Dumas: de um lado, o mundo da nobreza e dos códigos da fidalguia; de outro, todo o resto. No primeiro, estão os heróis, no sentido peculiar que a palavra adquire no relato histórico do autor, isto é, os homens nobres regidos por um código de conduta consuetudinário que pregava a honradez, a galanteria e as demonstrações de virilidade. Nesse âmbito, prescinde-se da riqueza material, e é até preferível que nossos mosqueteiros sejam desprovidos de dinheiro, a fim de que possam provar seu valor pelas armas ou pelo galanteio (a esse respeito, observar a forma ridícula de representação da burguesia gananciosa na figura do Sr. Bonacieux e as peripécias de Porthos como amante de uma mulher rica a fim de que esta o sustente).
 
No segundo, estão principalmente os personagens femininos e certas figuras representativas da burguesia, como o Sr. Bonacieux e o Sr. Coquenard. É por isso que, ao final, todos os personagens da primeira esfera se reconciliam e suas rivalidades se anulam, uma vez que, de fato, sempre pertenceram ao mesmo universo, independentemente dos conflitos provisórios: Richelieu se reconcilia com os mosqueteiros, d'Artagnan com Rochefort etc. Já quanto à segunda esfera, basta observar os destinos dos principais personagens femininos, aos quais o único heroísmo possível, quando possível, é o da morte trágica: Constance Bonacieux morre pelas mãos de Milady; esta morre pelas mãos dos mosqueteiros; e Ana de Áustria, a rainha da França, perde o homem que verdadeiramente amava, o duque de Buckingham, assassinado. Quanto a este último acontecimento da narrativa, há de se notar, de passagem, que os personagens e a obra como um todo parecem condenar unicamente Milady pela morte do nobre inglês, ao passo que Richelieu, verdadeiro mandante do ato, e Felton, aquele que de fato apunhala Buckingham, têm sua parcela de culpa relevada ou mesmo esquecida. Aquele pelas necessidades do cálculo político que tudo justifica, este por se encontrar sob os encantos de uma mulher enganadora, a própria Milady.
 
Com seu louvor à fidalguia heroica de feição medievalesca, seria de se supor um certo pendor reacionário na prosa histórica de Dumas. Acontece que, por mais reacionário que pareça à primeira vista, o conteúdo ideológico ou político da obra do autor francês, como lembra Gramsci, furta-se a definições nítidas, restando-lhe, no lugar, uma leva de “sentimentos democráticos genéricos e ‘passivos’” (p. 40).7 Mais do que necessariamente a exaltação de uma determinada classe social, Dumas interessa-se pelas grandezas individuais, independentemente de afiliações de classe e até mesmo das nacionalidades. Nesse sentido, toda época tem seus grandes homens, absorvidos, na lógica do folhetim de Dumas, na esfera do heroísmo e das intrigas políticas. Aqueles que inicialmente podem ser visualizados por uma ótica negativa, se verdadeiramente pertencerem ao mundo dos heróis, logo são absolvidos por esse esquema inexorável, que tem a vantagem de conceder, pelo menos no caso d’Os três mosqueteiros, uma aparente imparcialidade histórica, de todo condizente com o papel de cronista que o narrador avoca para si.
 
O código de honra dos mosqueteiros, sua fidalguia essencialmente masculina, manifestada pelos hábitos do duelo e da aventura, serve de resguardo a uma França que se via à beira de uma revolução década sim, década não. Nesse sentido, Dumas encontra na valorização desses traços de masculinidade a fixidez que busca em meio às agitações políticas do país. O fato de os mosqueteiros serem meros agentes de interesses alheios é uma das grandes contradições do livro e um dos fatores que o situa precisamente no âmago da tradição do romance histórico. Afinal, é preciso que os personagens mostrem seu valor e sua autonomia mesmo sob o controle de forças maiores e de motores históricos que os excedem. O que move a trama não são, em grande parte, os objetivos próprios dos mosqueteiros, mas sim, principalmente, as vontades de agentes superiores, que dirigem as conspirações políticas e conduzem os jogos de poder da trama. Prova disso é o fato de que a grande aspiração de d’Artagnan, tornar-se mosqueteiro, não constitui o ponto central da narrativa, que vai ter seu clímax ainda muitos capítulos após a consagração do protagonista na ordem dos protetores do rei. Esse objetivo do personagem é tão secundário à ação, que Dumas chega a torná-lo mosqueteiro no capítulo 28, apenas para esquecer que o fez e repetir o acontecimento muitos capítulos depois, em mais um exemplo de seus frequentes lapsos.
 
Ora, os mosqueteiros são, assim, homens medianos, no sentido de que não são os principais agentes da política francesa de sua época, mas tampouco são indivíduos comuns, de todo apartados do que se passa na Corte, e nesse aspecto o romance de Dumas se filia à tradição do romance histórico de Walter Scott na maneira como o classifica Lukács.
 
Ao homem mediano que busca alguma fixidez e estabilidade diante de tantas mudanças históricas resta o código de honra masculino e de feição aristocrática que, se não o iguala totalmente às classes dominantes, resguarda-lhe um certo sentimento de superioridade que o aparta da “ralé” e dos homens de pouca fibra, representados no romance de Dumas pelas figuras dos criados dos mosqueteiros (aos quais, não obstante, ainda é possível certa mobilidade) e por burgueses covardes como o Sr. Bonacieux, entre outros. Dos autores mais ou menos comprometidos com temas políticos, Dumas acaba sendo, assim, um dos mais despolitizados, à medida que seu interesse é por esse elemento aventuresco que encontra nas inquietações políticas do século XVII uma fonte de fabulação quase inesgotável.
 
É sintomática, em Vinte anos depois, continuação de Os três mosqueteiros, a passagem em que um d’Artagnan mais envelhecido e já cansado de uma vida de oficial obediente tenta reanimar o espírito aventureiro de seus antigos amigos: “E o que proponho é lançar a pluma ao vento e segui-la aonde for, retomando a vida aventurosa” (p. 115).8 D’Artagnan, antigo combatente intrépido e destemido, uma vez integrado à oficialidade regimental, dissolve o temperamento revoltadiço na monotonia da disciplina militar automatizada. O verdadeiro inimigo dos mosqueteiros se revela aqui em toda a sua pureza e despersonalização: não os reis, os cardeais, os burgueses avaros ou os duques conspiradores, mas o próprio processo de acomodação da vida, de submissão aos vaivéns dos caprichos alheios. Em suma, o adversário é a perda do ímpeto irrefreável e da sede de aventuras que destaca o homem de valor e cuja falência o reduz a um mero títere dos poderosos e da história, perigo que está sempre a ameaçar os mosqueteiros. É Porthos quem dá a síntese: “Ministros, príncipes e reis passam como torrente; a guerra civil como um incêndio; e nós, será que permaneceremos? Tenho esse pressentimento.” (p. 290).
 
Quase dois séculos depois e ao contrário do vaticínio de Brunetière, podemos atestar a validade do pressentimento de Porthos. Muita literatura melhor e pior que a de Dumas lhe sobreveio, e a França viveu mais um seu bocado de rebeliões e revoluções que não passaram pela pena devoradora do mais exímio folhetinista francês. Dumas era uma máquina de produzir ficção, e se o sucesso de suas obras em sua época se deveu em grande parte a sua capacidade de responder a interesses mercadológicos específicos, sua vitalidade extemporânea é testemunha de um anseio muito mais primordial: o do simples apreço humano por narrativas e por exímios/as contadores/as de histórias.
 
Notas:
 
1 Flaubert, Gustave. Bouvard e Pécuchet. Tradução de Pedro Tarnen. Lisboa: Cotovia, 2015.
 
2 Brunetière, Ferdinand. Revue littéraire - Alexandre Dumas. Revue des Deux Mondes, v. 3, n. 70, p. 695-705, 1885. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2024.
 
3 Dumas, Alexandre. Lettre à Napoléon III, le 10 Août 1864. France mémoire. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2024.
 
4 Sainte-Beuve, Charles Augustin. Da literatura industrial. Remate de males, Campinas, v. 29, n. 2, p. 185-197.
 
5 Todas as citações a Os três mosqueteiros são de: Dumas, Alexandre. Os três mosqueteiros. Tradução de André Telles e Rodrigo Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
 
6 “Qu'est-ce que l'histoire ? disait-il. C'est un clou auquel j'accroche mes romans”. Em Marois, André. Le trois Dumas. Paris: Hachette, 1957.
 
7 Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.Volume 6.
 
8 As citações a Vinte anos depois são de: Dumas, Alexandre. Vinte anos depois. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

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