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Alexandre Dumas. Foto: Félix Nadar |
Alexandre Dumas pai é um dos casos mais paradigmáticos de
escritor de alta produtividade, daqueles cuja quantidade de obras escritas,
entre peças de teatro, ensaios, romances e novelas, é o suficiente para causar
assombro pela simples força bruta de sua capacidade imaginativa. Penso, como
outro exemplo, no caso de Georges Simenon, escritor francês que, segundo ele
mesmo dizia, escrevia um romance a cada 10 dias, sete dias para o esboço
inicial e mais três para revisão, acumulando, ao final da vida, um total de
quase 400 romances escritos, sem contar biografias e livros de memórias, um
feito verdadeiramente surpreendente, independentemente do valor qualitativo das
obras.
No caso de Dumas, embora não seja assim tão fecundo,
trata-se de um autor que foi um profissional assíduo das letras. Após obter
sucesso com peças teatrais nas primeiras décadas do século XIX na França, Dumas
ingressou no ramo dos romances de folhetim serializados, publicando em
periódicos franceses como
Le Siècle e o
Journal des Débats. A
procura por suas histórias se tornou tão grande, que Dumas passou a trabalhar
com uma série de colaboradores contratados, que realizavam desde o fornecimento
de argumentos para os romances até o acabamento de personagens e episódios. Foi
desse modo que nasceu a
Maison A. Dumas et Cie., empresa de produção
literária que reunia escritores, historiadores e pesquisadores de uma forma
geral em prol da escrita de folhetins.
Esse seu método de produção, que visava se adequar a uma
demanda relativamente alta e manter a também alta popularidade conquistada, foi
e é certamente bastante polêmico. O escritor chegou a ser alvo de um processo
movido por seu principal colaborador, Auguste Maquet, que reclamou, além dos
valores em dinheiro que julgava serem de seu direito, a coautoria pelas obras
de cuja elaboração participou. Como resultado, Maquet ganhou o dinheiro, mas
perdeu os créditos, e hoje lemos na capa de clássicos como
Os três
mosqueteiros e
O Conde de Monte Cristo apenas o nome de Dumas.
A elevada popularidade de Dumas veio à custa, como é
frequente acontecer, de uma certa ojeriza por parte da crítica mais exigente.
Já mesmo em sua época, era frequentemente comparado com Victor Hugo, seu amigo,
tido como um autor muito mais competente em fazer o que Dumas tanto fazia em
suas obras, isto é, misturar ficção e história. Não por acaso, já no século
seguinte, Lukács, no livro que dedicou à teoria do romance histórico, deteve-se
nas obras do autor de
Os miseráveis e de outros autores como Walter
Scott e Stendhal, mas sequer mencionou Dumas em suas mais de 400 páginas
dedicadas ao tema. Dumas parece fazer parte, assim, daquele grupo de escritores
extremamente populares do século XIX, mas que sempre enfrentaram certa rejeição
da crítica pelo caráter muitas vezes pueril e mesmo adolescente dos livros que
escreveram. Falo de escritores como Jules Verne, Robert Louis Stevenson e
Arthur Conan Doyle, cuja popularidade até os dias de hoje é atestada pelas
inúmeras adaptações de suas obras para outras mídias, especialmente o cinema
hollywoodiano.
O frequente exagero dessas adaptações, que muitas vezes
optam pela intensificação do mirabolante nos enredos e do espalhafato da ação,
termina por sedimentar, nos críticos de hoje, uma desconfiança atávica:
tratar-se-ia de literatura feita para agradar um público à caça de histórias
rocambolescas e de aventuras extravagantes, portanto de valor supostamente
inferior às obras de verdadeiro vigor.
Para Flaubert, nas obras de Dumas, “tudo se mistura, corre e
se resolve sem um minuto para refletir” (p. 111);
1 para Brunetière,
2
Dumas era um escritor divertido, mas de medíocres qualidades literárias, e os
anos dariam conta de relegá-lo ao devido ostracismo, dando primazia, no lugar,
aos autores pouco populares à época, mas de melhores atributos estéticos, como
é frequente acontecer com autores pouco apreciados em seu tempo; e o próprio
Dumas, comparando-se a Victor Hugo e a Lamartine, dizia não passar de um
vulgarisateur.
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Entretanto, para tomar a correta medida do valor literário
de Dumas em relação a outros próceres do romance histórico francês, nada menos
que um estudo sistemático da obra do autor e da literatura francesa produzida à
época seria suficiente. Mas alguma luz pode vir de lamparinas mais humildes e,
se proponho empresa menos ousada, nem por isso me resguardo da busca pela
percuciência da análise, sendo justo, na medida do possível, tanto com a
crítica quanto com Dumas. Para isso, tomo como ponto de partida uma das obras
mais famosas do autor, o já citado romance
Os três mosqueteiros,
certamente sua história mais adaptada para outras mídias. Para o bem ou para o
mal, esse livro parece encapsular tudo que há de mais característico na
literatura dumasiana e, dado o seu valor paradigmático, na literatura do tipo
folhetinesco produzida à época.
As aventuras de Athos, Porthos, Aramis e do destemido
d’Artagnan foram publicadas inicialmente em um período de quatro meses, entre
março e julho de 1844, no jornal
Le Siècle. A própria instituição do
romance de folhetim impunha ao autor determinadas condicionantes que acabavam
por informar a estrutura da obra, que precisava atender às exigências de
serialização e do público consumidor dos periódicos. Com isso, surge já a primeira
objeção, algo pedante e mesmo ingênua, de certa crítica que enxerga no trabalho
de Dumas uma literatura de tipo inferior unicamente por atender a determinações
externas que não correspondem exatamente a um ideal do fazer literário,
atrelado, desde pelo menos o Romantismo, a uma concepção de expressão de um
gênio particular ou de uma subjetividade transbordante e única. Nesse ponto,
para nos dirigirmos corretamente ao argumento, não podemos deixar de
historicizar determinadas categorias estéticas para que as entendamos em suas
conexões com a realidade material dos escritores de cada época.
Em bom português, mais do que escrever para dar vazão a uma
expressividade maior que o mundo, Dumas escrevia para ganhar dinheiro, e cabe à
crítica entender como o fez e com que sucesso realizou a empreitada (sucesso do
ponto de vista da fatura das obras, e não de público, o que é inegável no caso
de Dumas). No universo das letras, nada mais comum do que isso, em diversas
épocas, isto é, nada mais normal do que escrever pressionado por necessidades
de ordem financeira. Mas o escândalo e certo pudor advêm de novos mecanismos
literários surgidos no século XIX e empregados por autores de folhetim,
cultivados especificamente com o objetivo de aumentar as vendas: o corte
preciso dos capítulos, a predominância da ação rápida, a distensão dos diálogos
etc. são elementos que passaram a integrar as obras estruturalmente, atendendo
a condições tidas como pouco “nobres”, mas que, se não exagero, correspondem,
em algum nível, a tradições muito remotas, calcadas nas práticas de contação de
histórias por via da oralidade, como é o caso d’
As mil e uma noites.
Sob a égide da crítica à literatura de folhetim e por trás
de muita “análise” com verniz estético, havia e há muito ressentimento
moralista, sobretudo em alguns críticos do século XIX, como Sainte-Beuve, que
enxergava na chamada “literatura industrial” uma decadência, chegando a afirmar
que “a moralidade literária da imprensa em geral desceu um degrau” (p. 190).
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É possível, todavia — e julgo ser salutar fazê-lo —, observar determinadas
obras sem que recorramos a chavões como “decadência cultural” ou a expressões
esquisitas como “moralidade literária”.
Afinal, não importa o quão firmemente um/a escritor/a
acredite no contrário, ele/ela está sempre limitado/a pelas condições
históricas que lhe sobrevêm, e até mesmo os grandes abalos sísmicos que, vez ou
outra, atingem determinadas literaturas, os Dantes, os Joyces, os Rosas e as
Clarices, até mesmo esses cataclismos da linguagem são expressões e
possibilidades do seu tempo, gestados por condições materiais e discursivas que
os precederam.
A instituição do romance de folhetim é mais uma dessas
estruturas que sobredeterminou a escrita literária durante muito tempo, e
querer que um escritor seja mais do que lhe era possível é uma atitude que
guarda sua dose de injustiça crítica.
Todavia, duas coisas ainda são certas. A primeira é que
escritores/as geniais efetivamente existem/existiram e chegam mesmo a nos fazer
duvidar de seus vínculos históricos (como não lembrar do folclore em torno da
figura de Guimarães Rosa, que se dizia inspirado por forças sobrenaturais ao
escrever seus livros?), advertindo-nos, paradoxalmente, contra o perigo da
fetichização da realidade: se as condições nos sobrevêm e nos determinam, elas
tampouco são estanques e nós tampouco somos receptáculos passivos. Ou seja, a
arte jamais é somente um mero reflexo de determinações materiais e históricas,
como já quis certo marxismo vulgar, cabendo-lhe sempre certa dose de autonomia
e de agência sobre essas mesmas determinações. A segunda verdade é que, de
fato, Victor Hugo foi melhor escritor que Dumas, escrevendo na mesma época e no
mesmo país.
Faço essa pequena digressão para retomar o compromisso que
assumimos alguns parágrafos atrás, ou seja, uma vez que fizemos justiça ao
escritor francês, que lembremos de dirigir um olhar senão benevolente, ao menos
compreensivo à própria crítica que aponta os defeitos de Dumas. Afinal, se é
verdade que ele foi constrangido pelas exigências feitas a um escritor de
folhetim, também é verdade que não fez muito, em termos literários, para
subvertê-las. Daí a força e a fraqueza intrigantes de sua obra.
Para observarmos essas forças e fraquezas e por que são
intrigantes, vejamos um livro como
Os três mosqueteiros. Nele,
percebe-se, em toda a condução da narrativa, a extrema devoção de Dumas aos
enredos de tipo mirabolante, às reviravoltas de última hora que surpreendem o
leitor e ao alongamento das peripécias pelo tempo que o autor julgar
necessário. Em outras palavras, a extrema fidelidade àqueles recursos
narrativos típicos do folhetim, postos a uso com o objetivo de manter o
interesse do público pelo maior período possível. Essa dedicação à fabulação
acima de tudo faz com que Dumas utilize todos os elementos de construção da
narrativa a favor da ação e do enredo, que precisa ir para frente a qualquer
custo. Assim, por exemplo, se logo no início do romance aprendemos que Athos é
um fidalgo exemplar, homem ponderado e o mais sábio dos mosqueteiros, Dumas não
hesitará, no capítulo 28,
5 em fazer dele um apostador inconsequente
que faz d’Artagnan perder os cavalos que lhe foram dados pelo Duque de
Buckingham se isso for necessário à preparação da próxima peripécia. Da mesma
forma o próprio d’Artagnan, que precisa dar o pontapé inicial à narrativa
agindo de maneira imprudente e envolvendo-se em um duelo com Rochefort, apenas
para, passados alguns capítulos, ser reapresentado como um jovem sensato: “Eu
sempre disse que d’Artagnan era a melhor cabeça de nós quatro” (p. 116), diz
Athos ainda no capítulo 9.
A própria reconstituição histórica do reinado de Luís XIII
na França do século XVII é feita por Dumas com todas as liberdades possíveis.
André Maurois, um dos principais biógrafos do autor d’
O Conde de Monte
Cristo, observa que Dumas chegou a dizer: “O que é a história? É um prego
onde penduro meus romances” (p. 150).
6 O leitor mal-humorado pode
enxergar aí um defeito, um excessivo relaxamento com o compromisso histórico da
narrativa, mas o apreciador bem-disposto não deixa de achar algo de divertido
em identificar os anacronismos que Dumas insere à vontade na narrativa, sempre
que os ajustes de enredo assim demandam.
A volubilidade com que o autor maneja os elementos da
narrativa, se prejudica a fatura do livro pela falta de coesão em diversos
momentos, a engrandece, em outros, pela imprevisibilidade moral de suas
personagens. Quanto a esse elemento, as adaptações cinematográficas posteriores
trataram de limar os personagens dumasianos de suas contradições éticas e, se
hoje temos uma imagem mais ou menos essencializada de alguns personagens, isso
se deve muito mais a essas adaptações, que elegeram determinados atributos (que
Dumas é verdadeiramente hábil em nos apresentar em poucas linhas para cada
personagem) e os alçaram a traços essencializadores das personalidades de cada
um. Para ficarmos com dois exemplos, vejamos Athos e o Cardeal Richelieu. O
primeiro é, realmente, o mosqueteiro mais nobre e líder do grupo, conforme
costuma ser retratado em diferentes adaptações, mas o personagem possui um
passado sombrio bastante questionável (bem no espírito dos heróis românticos) e
que assusta o próprio d’Artagnan. O segundo é, sim, um dos vilões da história,
mas tem pelos heróis uma profunda admiração e é o responsável por conceder a
d’Artagnan a promoção que o integra ao grupo dos mosqueteiros do rei.
O único personagem verdadeiramente inegociável é Milady
(curiosamente, o mais diferentemente adaptado no cinema), verdadeiro vilã do
livro do início ao fim, mas nem por isso menos interessante. Pelo contrário, os
10 capítulos que o livro dedica a sua missão de assassinar o duque de
Buckingham na Inglaterra são dos mais bem realizados do livro, quando Dumas
reduz o ritmo da narração e mostra, em ato, toda a capacidade de sedução do
personagem. Até mesmo o ridículo, abismo sobre o qual Dumas está sempre a se
equilibrar em corda bamba — muitas vezes sem sucesso —, é amenizado aqui pelo
equilíbrio com que a ação enclausurada é conduzida.
Porém, essas contradições psicológicas dos personagens, que
passam de vilões a mocinhos com certa facilidade, são todas, no final das
contas, subsumidas a um esquema único que revela a visão assaz simplista de
Dumas: de um lado, o mundo da nobreza e dos códigos da fidalguia; de outro,
todo o resto. No primeiro, estão os heróis, no sentido peculiar que a palavra
adquire no relato histórico do autor, isto é, os homens nobres regidos por um
código de conduta consuetudinário que pregava a honradez, a galanteria e as
demonstrações de virilidade. Nesse âmbito, prescinde-se da riqueza material, e
é até preferível que nossos mosqueteiros sejam desprovidos de dinheiro, a fim
de que possam provar seu valor pelas armas ou pelo galanteio (a esse respeito,
observar a forma ridícula de representação da burguesia gananciosa na figura do
Sr. Bonacieux e as peripécias de Porthos como amante de uma mulher rica a fim
de que esta o sustente).
No segundo, estão principalmente os personagens femininos e
certas figuras representativas da burguesia, como o Sr. Bonacieux e o Sr.
Coquenard. É por isso que, ao final, todos os personagens da primeira esfera se
reconciliam e suas rivalidades se anulam, uma vez que, de fato, sempre
pertenceram ao mesmo universo, independentemente dos conflitos provisórios:
Richelieu se reconcilia com os mosqueteiros, d'Artagnan com Rochefort etc. Já
quanto à segunda esfera, basta observar os destinos dos principais personagens
femininos, aos quais o único heroísmo possível, quando possível, é o da morte
trágica: Constance Bonacieux morre pelas mãos de Milady; esta morre pelas mãos
dos mosqueteiros; e Ana de Áustria, a rainha da França, perde o homem que
verdadeiramente amava, o duque de Buckingham, assassinado. Quanto a este último
acontecimento da narrativa, há de se notar, de passagem, que os personagens e a
obra como um todo parecem condenar unicamente Milady pela morte do nobre
inglês, ao passo que Richelieu, verdadeiro mandante do ato, e Felton, aquele
que de fato apunhala Buckingham, têm sua parcela de culpa relevada ou mesmo
esquecida. Aquele pelas necessidades do cálculo político que tudo justifica,
este por se encontrar sob os encantos de uma mulher enganadora, a própria
Milady.
Com seu louvor à fidalguia heroica de feição medievalesca,
seria de se supor um certo pendor reacionário na prosa histórica de Dumas.
Acontece que, por mais reacionário que pareça à primeira vista, o conteúdo
ideológico ou político da obra do autor francês, como lembra Gramsci, furta-se
a definições nítidas, restando-lhe, no lugar, uma leva de “sentimentos
democráticos genéricos e ‘passivos’” (p. 40).
7 Mais do que
necessariamente a exaltação de uma determinada classe social, Dumas
interessa-se pelas grandezas individuais, independentemente de afiliações de
classe e até mesmo das nacionalidades. Nesse sentido, toda época tem seus
grandes homens, absorvidos, na lógica do folhetim de Dumas, na esfera do
heroísmo e das intrigas políticas. Aqueles que inicialmente podem ser
visualizados por uma ótica negativa, se verdadeiramente pertencerem ao mundo
dos heróis, logo são absolvidos por esse esquema inexorável, que tem a vantagem
de conceder, pelo menos no caso d’
Os três mosqueteiros, uma aparente
imparcialidade histórica, de todo condizente com o papel de cronista que o
narrador avoca para si.
O código de honra dos mosqueteiros, sua fidalguia
essencialmente masculina, manifestada pelos hábitos do duelo e da aventura,
serve de resguardo a uma França que se via à beira de uma revolução década sim,
década não. Nesse sentido, Dumas encontra na valorização desses traços de
masculinidade a fixidez que busca em meio às agitações políticas do país. O
fato de os mosqueteiros serem meros agentes de interesses alheios é uma das
grandes contradições do livro e um dos fatores que o situa precisamente no âmago
da tradição do romance histórico. Afinal, é preciso que os personagens mostrem
seu valor e sua autonomia mesmo sob o controle de forças maiores e de motores
históricos que os excedem. O que move a trama não são, em grande parte, os
objetivos próprios dos mosqueteiros, mas sim, principalmente, as vontades de
agentes superiores, que dirigem as conspirações políticas e conduzem os jogos
de poder da trama. Prova disso é o fato de que a grande aspiração de
d’Artagnan, tornar-se mosqueteiro, não constitui o ponto central da narrativa,
que vai ter seu clímax ainda muitos capítulos após a consagração do
protagonista na ordem dos protetores do rei. Esse objetivo do personagem é tão
secundário à ação, que Dumas chega a torná-lo mosqueteiro no capítulo 28,
apenas para esquecer que o fez e repetir o acontecimento muitos capítulos
depois, em mais um exemplo de seus frequentes lapsos.
Ora, os mosqueteiros são, assim, homens medianos, no sentido
de que não são os principais agentes da política francesa de sua época, mas
tampouco são indivíduos comuns, de todo apartados do que se passa na Corte, e
nesse aspecto o romance de Dumas se filia à tradição do romance histórico de
Walter Scott na maneira como o classifica Lukács.
Ao homem mediano que busca alguma fixidez e estabilidade
diante de tantas mudanças históricas resta o código de honra masculino e de
feição aristocrática que, se não o iguala totalmente às classes dominantes,
resguarda-lhe um certo sentimento de superioridade que o aparta da “ralé” e dos
homens de pouca fibra, representados no romance de Dumas pelas figuras dos
criados dos mosqueteiros (aos quais, não obstante, ainda é possível certa
mobilidade) e por burgueses covardes como o Sr. Bonacieux, entre outros. Dos
autores mais ou menos comprometidos com temas políticos, Dumas acaba sendo,
assim, um dos mais despolitizados, à medida que seu interesse é por esse
elemento aventuresco que encontra nas inquietações políticas do século XVII uma
fonte de fabulação quase inesgotável.
É sintomática, em
Vinte anos depois, continuação de
Os
três mosqueteiros, a passagem em que um d’Artagnan mais envelhecido e já
cansado de uma vida de oficial obediente tenta reanimar o espírito aventureiro
de seus antigos amigos: “E o que proponho é lançar a pluma ao vento e segui-la
aonde for, retomando a vida aventurosa” (p. 115).
8 D’Artagnan,
antigo combatente intrépido e destemido, uma vez integrado à oficialidade
regimental, dissolve o temperamento revoltadiço na monotonia da disciplina
militar automatizada. O verdadeiro inimigo dos mosqueteiros se revela aqui em
toda a sua pureza e despersonalização: não os reis, os cardeais, os burgueses
avaros ou os duques conspiradores, mas o próprio processo de acomodação da
vida, de submissão aos vaivéns dos caprichos alheios. Em suma, o adversário é a
perda do ímpeto irrefreável e da sede de aventuras que destaca o homem de valor
e cuja falência o reduz a um mero títere dos poderosos e da história, perigo
que está sempre a ameaçar os mosqueteiros. É Porthos quem dá a síntese:
“Ministros, príncipes e reis passam como torrente; a guerra civil como um
incêndio; e nós, será que permaneceremos? Tenho esse pressentimento.” (p. 290).
Quase dois séculos depois e ao contrário do vaticínio de
Brunetière, podemos atestar a validade do pressentimento de Porthos. Muita
literatura melhor e pior que a de Dumas lhe sobreveio, e a França viveu mais um
seu bocado de rebeliões e revoluções que não passaram pela pena devoradora do
mais exímio folhetinista francês. Dumas era uma máquina de produzir ficção, e
se o sucesso de suas obras em sua época se deveu em grande parte a sua
capacidade de responder a interesses mercadológicos específicos, sua vitalidade
extemporânea é testemunha de um anseio muito mais primordial: o do simples
apreço humano por narrativas e por exímios/as contadores/as de histórias.
Notas:
1 Flaubert, Gustave.
Bouvard e Pécuchet. Tradução de
Pedro Tarnen. Lisboa: Cotovia, 2015.
2 Brunetière, Ferdinand. Revue littéraire - Alexandre Dumas.
Revue des Deux Mondes, v. 3, n. 70, p. 695-705, 1885. Disponível
aqui. Acesso em: 17 jun. 2024.
3 Dumas, Alexandre. Lettre à Napoléon III, le 10 Août 1864.
France
mémoire. Disponível
aqui.
Acesso em: 17 jun. 2024.
4 Sainte-Beuve, Charles Augustin. Da literatura industrial.
Remate
de males, Campinas, v. 29, n. 2, p. 185-197.
5 Todas as citações a
Os três mosqueteiros são de: Dumas,
Alexandre.
Os três mosqueteiros. Tradução de André Telles e Rodrigo
Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
6 “Qu'est-ce que l'histoire ? disait-il.
C'est un clou auquel j'accroche mes romans”. Em
Marois, André.
Le trois Dumas. Paris: Hachette, 1957.
7 Gramsci, Antonio.
Cadernos do cárcere. Tradução de
Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. 3. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014.Volume 6.
8 As citações a
Vinte anos depois são de: Dumas,
Alexandre.
Vinte anos depois. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2017.
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