Por Pedro Fernandes
Terra do pecado saiu a
público em 1947 e foi o primeiro livro de José Saramago. Que alguns, incluindo
o próprio escritor, tenham lido essa estreia como gorada não é novidade, principalmente,
quando conhecemos o romancista a partir de Levantado do chão. Mas, isso
não é verdade. Mesmo colocando o romance que permanecerá ignorado pelo
autor até cinquenta anos adiante ao lado de suas principais obras do gênero não
deixamos de encontrar nele um exercício bem-acabado de alguém que antes de
reinventar a forma romanesca precisou conhecer minimamente os desenvolvimentos
dos modelos tradicionais. É possível que não apenas a insistência do seu editor,
mas certa consciência de que esses primeiros exercícios no romance possuem alguma
qualidade que não a de servir como mero produto de curiosidade dos leitores, tenha
feito com que este e o livro posterior — Claraboia, finalizado em
janeiro de 1953 — tenham regressado dos longos desaparecimentos experimentados
na sua trajetória como livros.
Em entrevista para o Jornal de
Letras por ocasião da segunda edição de Terra do pecado, José
Saramago explica o que ficou ao seu alcance do itinerário do romance até
sua aparição pela Editorial Minerva. “Eu mandei o original à Parceria António
Maria Pereira, que, se bem me recordo, ou não me respondeu ou disse que não
estava interessada. Mas depois aparece a Editorial Minerva a dizer-me que sim.
Numa carta (não foi pelo telefone, que eu não tinha) dizia-me que o tinha
recebido por meio da Livraria Pax, de Braga. Eu nuca mandei o livro para Braga,
muito menos para a tal Pax que, pelo nome, tem todo o ar de ser uma livraria ou
uma editora católica. Que volta deu esse original isso é uma coisa que não sei.
Verdade seja que eu poderia ter perguntado ao Manuel Rodrigues, da Minerva, mas
nunca perguntei. Na altura estava interessado em que o livro saísse e nem falei
em mais nada com o editor, não fosse acontecer que ele se arrependesse.”1
O vívido interesse pela primeira
publicação para um escritor sem qualquer passado ou filiações intelectuais na
cena literária portuguesa mais a disponibilidade de alguém em trazer a público
o livro serviu ainda para outros dois acontecimentos além desse descuido por se
desfazer do nebuloso itinerário do datiloscrito: a aceitação do não pagamento de
direitos do autor e de que o título original fosse alterado. O livro chamava-se
A viúva, “mas é nos preparativos da edição que o Manuel Rodrigues me
diz: ‘Você sabe, A viúva não é nada comercial. Eu estive a pensar e acho
que há um título bom para isto, A terra do pecado.’ Devo dizer que o
título me arrepiou um bocado, não era nada títulos que eu visse para o livro,
mas que é que eu havia de dizer?” — explica na referida entrevista e encontra
nessa decisão parte da resistência que o leva a renegar por muito tempo essa
publicação.2 A explicação de Saramago favorece o entendimento da sua
razão e ao mesmo tempo expõe certa imaturidade do escritor quanto às relações
editoriais. Se Terra do pecado é um título que lhe parece alheio, também
A viúva estabelece pouco caso com o livro.
A narrativa, sim, se desenvolve em
torno de uma mulher a partir do instante quando morre o marido; parte do seu
dilema ou do imbróglio, sim, está relacionado com a conduta de uma viúva. Mas, esta
não é a matéria essencial do romance, uma vez que o seu narrador se interessa, nem
sempre circunstancialmente, no acompanhamento de outros núcleos: o dos
empregados, o das crianças, o do médico Pedro Viegas. Educado no modelo
neorrealista, o interesse desse narrador se destaca melhor no desenvolvimento
de um quadro recortado do vasto painel rural do Alentejo; os vários grupos de
interesse da narração são compostos pelas figuras que constituem a grande casa
portuguesa. Isto é, mesmo o apelo à concupiscência que invade e tolda a ordem
paradisíaca da Quinta Seca, e que certamente favoreceu a escolha do editor pela
substituição do título original, não parece alinhado com a matéria principal do
romance.
É válido observar que, sem o
conflito entre Maria Leonor, a viúva do proprietário da quinta, e Benedita, a
íntima e fiel empregada, o romance não teria sustentação. Assim é que, os
impasses do conflito entre patrões e empregados, mostrados aqui por lentes como
a do funcionário cumpridor e obediente e a do invejoso e rebelde — e mesmo sua
deriva entre os serviçais — formam o interesse essencial de Terra do pecado.
É verdade que a dinâmica de classe não se mostra à superfície das relações e
nem isso é aventada pela narração ou pela consciência das personagens, uma vez nem
o ponto de vista da narração se mostra nisso interessado e nem contexto da
narrativa o permite. Situado distante do epicentro político e aparentemente desinteressado
dessas questões mais imediatas, o tempo da narrativa, embora não identificado,
encontra-se fixado no auge do Estado Novo; os primeiros movimentos de
trabalhadores contra o regime tardarão a chegar pelo menos duas ou três
décadas.3
Tal contexto imprime-se na
organização dos elementos que constituem a ordem em Quinta Seca. Por exemplo, a
correta separação entre patrões e criados, deixa visível os estamentos corporativos
dessa sociedade fixada em torno da figura de um mandatário — cuja ruína para
que não se expanda carece sempre da existência do homem. Ao pensar a morte de
Manuel Ribeiro, o proprietário de Quinta Seca, Benedita se pergunta o que será
feito da propriedade quando apenas sob a conduta da patroa; as respostas estão
em parte diversa, no incêndio de grandes proporções que destrói integralmente o
celeiro enquanto a viúva deixa-se arrastar por uma enfermidade logo compreendida
como mal psicológico, ou, mais adiante, quando o médico da família reclama de
Leonor das condições de abandono da fazenda: “Outros olhos, que não andassem
cegos por esse nevoeiro imaginário, já teriam visto os caminhos cheios de erva,
o muro da horta meio esboroado, a dar passagem livro aos carneiros dos vizinhos;
outros ouvidos, que não dessem atenção aos passos dos criados, já teriam percebido
o ranger dos gonzos do portão, que não levam azeite há semanas…”4 E
está ainda nos interesses dos pretendentes mal o corpo do proprietário defunto passa
à decomposição definitiva: primeiro, pelo aventureiro cunhado; depois, pelo
cinquentão Pedro Viegas. Nos dois casos, sem a cobiça patrimonial, domina a
ideia de reparo daquilo que uma viúva não é capaz de administrar.
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A primeira edição de Terra do pecado. |
Maria Leonor é estruturada com os
vários restos dos elementos que constituíram toda uma vasta galeria de figuras
femininas na literatura até a época de Terra do pecado. São suas antecessoras,
entre outras, Ema Bovary, de Flaubert e Luísa, de Eça de Queirós.5 (Ao
tocar no nome do autor d’O primo Basílio, podemos inferir, pelos modelos
das personagens e mesmo do drama, que José Saramago compõe com esse romance um
exercício de superação, chamemos assim com Harold Bloom, daquele
antecessor predominante nas letras portuguesas). Parte da incapacidade de administração
da quinta advém de uma inoperância natural, a fraqueza ou a susceptibilidade feminina,
dos instintos. É isso o que irmana essa criatura saramaguiana àquelas personagens
femininas, ainda que não seja o caso de Leonor a submissão às suas faculdades
imaginativas educadas pelos romances ou mesmo certa insatisfação com a
modorrenta vida de quem possui tudo ao alcance pelas mãos alheias. O descompasso
dessa personagem com o seu meio também não encontra material na transposição do
ambiente — ela deixa o burburinho da vida urbana pela rural quando se casa com
Manuel —, mas os restos de quantas ideias colhidas ou mesmo aprendidas do
positivismo no qual foi educado o pai, um homem seduzido pelo saber científico e
que incapaz de o administrar corretamente padece um fim trágico. Isso se mostra
quando a própria Leonor Ribeiro pede a certa altura que a faça alcançar a Primeiros
princípios, de Herbert Spencer. É do inglês o desenvolvimento da teoria
social a partir do modelo evolucionista de Charles Darwin e dela é possível
entender o lugar da protagonista de Terra do pecado na redoma social de
seu tempo.
Parte do que Spencer desenvolve no
livro referido participa na formação da consciência — e seus impasses — de
Leonor. É visível que o romance procura conflitar duas estruturas que se batiam
desde o século XIX (e em Portugal sobrevive até meados do século seguinte
devido ao domínio político vigente): a religião e a ciência. A vida dos
habitantes de Quinta Seca é regida pelos princípios religiosos, como se nota na
presença contínua do padre no convívio familiar dos Ribeiro ou o acompanhamento
do calendário católico; mas, esse cotidiano é de alguma maneira sobrepujado
pela ciência entre os letrados e pelo imaginário popular entre àqueles para os quais
o distante Estado pouco ou nada significa nas suas vidas. Para um padre já
idoso e reumático, dois médicos e um deles formado pelo interesse em não se ver
educado para o ofício da batina: Pedro Viegas e António Ribeiro,
respectivamente. O embate aqui constitui o que o autor dos Primeiros
princípios reconhece como as duas convicções que regem a apreensão da
realidade: o incognoscível e o cognoscível.
Se o padre, os médicos e Benedita se
mostram ajustados cada um aos seus princípios, Maria Leonor encontra-se na encruzilhada
deles. Embora esse impasse não se apresente bem desenvolvido na estrutura da
personagem — o narrador, repetimos, dedica-se àqueles laços interpessoais e aos
conflitos da sexualidade feminina empurrando o romance para o modelo
realista-naturalista e não o filosófico —, podemos encontrar nessa personagem a
tentativa de demonstrar como religião e ciência se alinham: Leonor compreende a
realidade como matéria em movimento, mas deixa-se centrar na tentativa de
apreender a causa incondicional que é impossível de provar por um e por outro princípio.
Quando o marido morre, a crise que adoece Leonor longamente é a prisão de sua
consciência na descoberta ou revelação absoluta desse destino; a doença é dada
com um mal do corpo e do espírito e a cura só é possível sarando as duas dimensões;
quando espoleta o conflito com Benedita, é outra vez a mesma coisa que a impede
restabelecer os laços de intimidade e convívio de antes.
No segundo caso específico — a força
de crivo queirosiano refeita em Terra do pecado —, vale observar um
diálogo entre Maria Leonor e Pedro Viegas já nos últimos instantes da narrativa.
Nessa ocasião os dois têm mantido extensa proximidade e convívio — colocando em
evidência algo que se manifestará corriqueiramente no restante dos romances de
José Saramago, o amor entre o homem de meia-idade e uma mulher mais jovem — e
reencontram Benedita depois de uns dias em que empregada se manteve reclusa
alegando dor de cabeça. A essa altura, a convivência entre as duas mulheres
beira ao estágio do insuportável e o doutor Viegas observa como o comportamento
de Leonor se modifica repentinamente ante a presença da inimiga, favorecendo a
abertura para a seguinte justificação:
— Não é ela que eu temo —
respondeu Maria Leonor, apoiando-se-lhe ao ombro. — É ao seu silêncio, ao seu
aspecto esfíngico e severo, à sua máscara de cera, que não deixa transparecer
um pensamento sequer!… […]
— Não, não é a ela que eu temo. É
a mim! Parece-me que ela não é mais que um desdobramento da minha personalidade,
uma outra Maria Leonor, que se vestiu de modo diferente e que pôs uma máscara
para que eu não a conheça. E agora penso se a verdadeira Benedita não voltará
um dia, como eu a conheci, amiga e boa, quase irmã…4
O exemplo parece suficiente para
mostrar como a personagem saramaguiana encontra-se marcada pelo ideário de
Herbert Spencer. O embate entre Maria Leonor e Benedita, que não é de classe, repetimos,
nem apenas de princípios, também é entre o cognoscível e o incognoscível,
respectivamente, se reparamos o papel da ciência naquela e o imperativo de uma
moral católica nesta. Sendo as duas extensões reunidas em Leonor — a que se
encontra confrontada pela Causa Incondicional (da atitude de Benedita, por
exemplo) que pode ser provada por nenhuma outra causa. Essa mulher em crise desconhece
suas próprias causas. E teme a empregada porque teme que o cognoscível seja
superado pelo seu oposto. Nesse sentido, sua dificuldade de lidar com Benedita
é a mesma em lidar com sua própria extensão incognoscível, o que nesse caso, também
possui sua raiz na mesma moral excludente da funcionária, a que impede se
desfazer do estigma social imposto às mulheres da sua condição: a viuvez como
prisão ao morto.
Ainda seguindo os Primeiros
princípios de Spencer, tal embate é o da liberdade de uma e da outra; como
cada qual limita a liberdade alheia, resultando na inviabilidade do ponto de
equilíbrio completo favorável ao convívio pleno e coletivo entre os homens. É
notável que as duas mulheres possuem o domínio da casa: Benedita mais que a
patroa, porque mantém poder sobre o restante da criadagem, como podemos ver no
episódio em que violenta uma jovem por levantar uma pilhéria sexual contra a
patroa; porque é quem cuida da casa com a força do trabalho; é quem administra
todos ademanes da sua ama; é quem, por fim, projeta nessa ordem a própria ordem
que lhe falta. A morte de Manuel Ribeiro inicia o desfazimento dessa liberdade pelo
alcance da liberdade de Leonor, e assim estão postas as circunstâncias que
colocam em crise o princípio de governança que antes resultava em harmonia.
No âmbito desse conflito, o
romance também lida com a indecibilidade. Apesar de ser os olhos e ouvidos da
casa — este espaço que se converte num estranho monstro numa das perturbações
de Leonor —, não está claro que a empregada tenha realmente flagrado o gesto
sedutor de António Ribeiro sobre Maria Leonor. Assim, as atitudes que colocam essas
duas mulheres uma contra a outra a partir desse episódio é parte da matéria
imaginativa, sobretudo de uma Leonor consumida pelos efeitos paralisantes da
perda de sua imagem para os da casa alimentados de receio e culpa. Ou seja, o jogo
de Benedita parece se basear mais nas atitudes suspeitas da ama e produzidas a
partir de uma imaginação despoletada pela suspeita de Joaquina, a mexeriqueira
colega de profissão para quem o mal da patroa é “falta de homem”, que
propriamente no testemunho de algum acontecimento imoral e é, a princípio,
alimentado por outros dois episódios e uma insinuação que apenas convergem para
o que teria flagrado como um enovelamento entre Leonor e o cunhado, primeiro, e
depois, entre Leonor e Viegas: o que se insinua apresenta-se pela voz do
narrador na composição de um dos devaneios de Benedita, que recordando-se da
alegria noturna de alcova dos seus patrões, sofre em silêncio a pena de estar
só — “Era apenas dois anos mais velha que o senhor. Poderia ser esposa dele, se
Deus tivesse querido…”; e os dois episódios são o assédio do senhor Melo, pai
de Maria Leonor, sofrido por Benedita quando jovem, e a pilhéria de uma das
empregadas em Quinta Seca acerca da pulsão sexual da viúva que recorda na
governanta o trágico episódio da morte de dois jovens devido a invenção das más
línguas.
Cada uma dessas circunstâncias,
além de avivar as suspeitas de Benedita — desde jovem educada para perceber o
que dona Júlia, a mãe de Maria Leonor, chamara de “maldade dos homens”, esclarece
o que dizíamos acerca das motivações do escritor no desenvolvimento do conflito
entre as duas mulheres neste romance; a matriz spenceriana não é excluída,
evidentemente, mas os desdobramentos pertencem ao plano dos vícios humanos no
âmbito das conveniências de relação e modelo sociais. O que se denuncia, eis sua
matéria neorrealista, é uma sociedade sequestrada pelo autoritarismo (curiosa,
mas justificadamente, encarnado naquele de classe submissa); inapta para o
coletivismo porque conduzida por interesses puramente individuais; uma
sociedade, enfim, refém da mesquinharia dos julgamentos morais, de mentalidades
atrasadas e muito distante da almejada liberdade do pensamento e do indivíduo
defendida pelo saber científico e um dos pilares essenciais do modelo iluminista.
Fora o impasse de princípios, a
sociedade portuguesa do tempo de Leonor priva as mulheres — mesmo as de alguma
matriz intelectual — do ser e pensamento livres; em Terra do pecado tal
possibilidade só encontra realização com uma viúva, mesmo assim o seu destino
encontra-se antevisto no fim trágico do pai intelectual. Aviva-se o senso comum
segundo o qual “o excesso do saber” inutiliza o homem por duas vias: ou a da
loucura, ou da morte. Estamos muito distantes das protagonistas que se assumem
plenamente nos principais romances saramaguianos, como Isaura Madruga, a viúva
de A caverna, para citar um exemplo mais próximo ao que agora lemos.6
Mas, Maria Leonor, carrega, de alguma maneira, as centelhas dos tipos femininos
que só poderão começar a brilhar melhor em vias de ou passada a Revolução
de 1974.
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A edição do primeiro romance de José Saramago com o título original publicada no ano do centenário do escritor. |
A viúva tornou-se uma imagem, uma
metáfora ou um tipo no imaginário português,7 mas os meios para os
quais essa figura é arrastada no desenvolvimento do romance saramaguiano não
reafirmam o modelo predominante. A cultura cristã disseminou de maneira diversa
as recomendações bíblicas sobre as mulheres viúvas: “A viúva realmente
necessitada e desamparada põe sua esperança em Deus e persiste dia e noite em
oração e súplica. Mas a que vive para os prazeres, ainda que esteja viva, está
morta.” (Tim, 5: 5-6). A recomendação de Timóteo enquadra a mulher viúva em duas
prisões: a terrena e a eterna. Nas sociedades ocidentais, a viuvez feminina se
estende como uma marca indelével no resto de suas vidas.
Na Idade Média, por exemplo, são
identificadas, por extensão das determinantes religiosas, pelo menos duas
recorrências da viúva: prevalecem aquelas que caíam na mendigagem, o que, numa
sociedade pouco caritativa, obrigam-nas a todo tipo de artimanhas para sobreviverem,
como o uso dos saberes intuitivos, tornando-as presas fáceis para a Inquisição.
É um caso para as idosas. As jovens, por sua vez, estavam submetidas ao crivo
da Igreja, que lhes impunham uma morte simbólica ao impedi-las um novo
casamento ou disporem de seu corpo. A boa viúva era a que devotava o resto da
vida à memória do falecido, ao cuidado com sua família e à vida religiosa. Boa
parte dos resquícios desse passado conservaram-se quase inalteráveis, principalmente
em sociedades autoritárias, como a do Estado Novo, em que a religião católica e
o culto às formas tradicionais funcionavam como dois dos seus pilares. Aquele
primeiro modelo medieval ajustou-se à viúva portuguesa do contexto de Terra
do pecado, quando, na imagem ressaltada culturalmente, as vestes pretas
destacam não apenas uma mulher em particular, mas uma realidade social marcada
pelo drama da precariedade e da falta, o que, por extensão, muito significou numa
imagem da condição geral do povo português, também pobre, espoliado e marcado pelo
vazio dos que foram presos, mortos, partiram ou morreram nas guerras de
ultramar.
Com Maria Leonor, José Saramago ingressa
no campo das representações dessa figura. É verdade que a sua personagem não atravessa
qualquer dilema econômico, porque se encontra bem estabelecida financeiramente
e numa época em que o patrimônio herdado pela mulher viúva não é tomado pelo Estado
ou pela Igreja; também se distingue das mulheres de manto negro. Essa
personagem não é desenvolvida utilizando-se integralmente dos caracteres
encontrados no estereotipo dos modelos vigentes na historiografia e nem como retrato
de uma realidade social fundada na precariedade da viúva. É tão-somente o
dilema moral, produto dos múltiplos expedientes dos interditos, e a ataraxia da
mulher em relação a eles que coloca em evidência neste romance a viúva; é este
o problema essencial que demove a narrativa saramaguiana. É, como, mesmo sendo
social e intelectualmente resolvida, a mulher precisa zelar por manter a casa livre
de quaisquer conspurcações carnais.
Em certa passagem do romance, Maria
Leonor responde ao doutor Viegas, que antes insinuara a indolência da casa, que
neste ambiente se respira mais que preguiça, “Respira-se entre estas paredes um
ar de tragédia grega.” E é Leonor a de ares de heroína trágica. Embora não lute
por modificar a ordem que a oprime, porque é uma criatura vacilante entre o cognoscível
e o incognoscível, é ciente da sua condição e do que se impõe contra ela; o seu
drama resulta do impasse entre o saber e não o exercer porque a sombra da ordem
dominante se ergue peremptória e opressora e tampouco sua personagem tem vocação
para a farsa que a ordem a obriga a viver
E, se em parte, Leonor se
distancia do modelo bíblico condenável, tampouco é a viúva exemplar; se não
inaugura o tipo herege, que se lança contra a religião acusando-a de não prover
o milagre que salvaria seu marido, o que seria até justificável, a narrativa não
deixa de notar que, desde a morte do marido, ela acaba por se afastar do mais
regrado convívio religioso ao mesmo tempo que restabelece certo interesse pela
ciência ao recorrer às memórias do pai. Por isso, dissemos antes, da relativa
incongruência encontrada no título original desse romance. No conjunto, Leonor
é apenas uma mulher que ficou sem o marido, mas suas qualidades — mesmo sua
instabilidade — materializam o tipo feminino, seja pelos dilemas ante a
liberdade do corpo e da consciência redespertas com a viuvez, seja pela maneira
como conduz sua maternidade no cuidado dos pequenos Dionísio e Júlia. E,
intencionalmente ou não, o romance, se não debate, sugere, ainda que tímida ou
implicitamente, o simultâneo desmantelamento da imagem da viúva tal como
definida pela religião e depois transformada em motivo cultural. É que, mesmo
presa nesse contexto de imposições morais, este romance não abraça
integralmente o destino proposto pelos seus antecessores e o destino dessa
mulher escapa a artimanha trágica.
Na edição de 1997, a que resgatou Terra
do pecado do esquecimento, Saramago acrescentou uma nota justificando o
contexto e as circunstâncias de escrita e publicação do livro. O “Aviso” —
assim intitula o referido texto — restabelece em parte o conteúdo das respostas
registradas nas várias entrevistas em que pôde comentar acerca do livro, como a
referida no começo deste texto, e conclui com o seu reconhecido tom cético:
“Não podia adivinhar [o jovem autor] que o livro terminaria a pouco lustrosa
vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito
para oferecer ao autor de A Viúva.” A sentença do autor no presente
olhando para o autor em retrospecto demonstra a estranheza entre eles e é
coerente: aquele autor não vingaria, como não vingou. Mas, o seu
desaparecimento foi desviado. O reconhecimento do escritor transformou o
interesse pelo romance até ali enjeitado e mesmo os leitores mais atentos da
sua obra que esbarre com esse produto “de leituras mal arrumadas e mal
organizadas” por curiosidade não deixará de reparar que o Saramago ruim é
melhor que muitos escritores que continuamente têm se preparado para o ofício.
Talvez esteja aqui outra das
armadilhas daquele incognoscível que solapa o mundo possível de Maria Leonor;
nesse caso, o talento não está acima da técnica, nem a técnica acima do talento,
como o escritor começará a descobrir uma vez compreendida pela teimosia os
meandros da porfia com a palavra, sem que entenda isso como uma superação ou
encontro com a Causa Incondicional. Aos moldes do romance saramaguiano, esse é um
livro menor, mas no cômputo geral é um romance bem realizado. As fragilidades —
do enredo, do desenvolvimento da interioridade das personagens ou dos planos
descritivos, para apontar três das mais referidas entre os críticos que o
comentaram — são inferiores ao cuidado demonstrado em cumprir ciosamente os princípios
básicos da arte de narrar: o quê e como contar.
Notas
* Este texto é uma versão resumida
de um ensaio maior a ser publicado em breve.
1 Refiro à entrevista conduzida
por Rodrigues da Silva, “O homem faz-se a si próprio”, Jornal de Letras,
Artes e Ideias (ano 27, n.690, 26 de março a 8 de abril de 1997, p.11-14).
2 Em 2022, no âmbito das
celebrações do centenário de José Saramago, as editoras em Portugal e Espanha
realizaram uma edição do romance obedecendo o título original. A melhor solução,
como tem sido recorrente para casos dessa natureza, seria manter em evidência
os dois nomes da obra. A título de exemplo, eis dois casos: o Amerika,
de Franz Kafka, cujo título era Der Verschollene (O desaparecido);
e The Wild Palms (Palmeiras selvagens), de William Faulkner, cujo
título era antes If I Forget Thee, Jerusalem (Se eu me esquecer de
ti, Jerusalém).
3 Esse levante, da organização ao
seu sucesso, é tratado pelo escritor em Levantado do chão. De alguma
maneira, a ambiência rural, indiretamente retratada em Terra do pecado,
atualiza o leitor do romance de 1980 acerca do tempo da subserviência, quando
os estamentos sociais se apresentam mais ou menos acomodados graças às forças
da autocracia e do pensamento dominante.
4 Todas as citações deste romance
ao longo do texto são da 10ª edição portuguesa saída ainda em julho de 1997.
5 Quando, em entrevista, tratou do
enredo de Terra do pecado, José Saramago sempre descreveu Benedita como
uma criada “que vem em linha recta da Juliana d’O Primo Basílio, quer
dizer, é o mesmo tipo de pessoa” — lê-se, nesse caso, nos diálogos que manteve
com Carlos Reis. Fernando Venâncio, em leitura do romance de 1947, publicada na
já referida edição do Jornal de Letras, anota que a criada de Saramago é
mais convincente do que a colega lisboeta porque não dispõe da ganância.
“Juliana quer o seu ‘dinheirinho’, cega-a a vingança de classe, Benedita exige
da patroa uma honra que proteja a sua própria, e contenta-se com o exercício do
poder. Juliana é diabólica por calculismo, Benedita por convicção. Mas há mais.
Enquanto que, em Eça, há a trivialidade das provas tangíveis, das ‘cartas’ que
um marido poderá ver, Benedita apenas percebe esse rumor que no ar ficou do
abraço entre Leonor e António, e o cheiro ‘a sexo’ que perdura no quarto onde
Viegas e Leonor acabam de encontrar-se. Isso, somado ao intangível dos
propósitos que movem Benedita, faz desta chantagem um acto mais absurdo
e mais revoltante. Mas igualmente mais puro.”
6 Outras viúvas povoam a obra de
José Saramago. Ainda nos romances, podemos citar: em Claraboia, romance
escrito depois de Terra do pecado mas só publicado postumamente, as
viúvas Cândida e Amélia; em Levantado do chão, a viúva de Augusto
Pintéu, morto em um acidente de carroça, episódio encontrado igualmente no
romance de 1947; em O ano da morte de Ricardo Reis, a casa alugada pelo
médico no regresso à Lisboa, pertenceu a uma viúva que foi morar com os filhos;
em A jangada de pedra, Maria Guavaira é também ligada ao meio rural, viúva
de idade madura há três anos e que encerra a narrativa grávida, sem saber de
quem, e junta-se a Joaquim Sassa; em O evangelho segundo Jesus Cristo,
Maria é viúva depois da morte de José por crucificação; em Todos os nomes,
é viúva a madrinha da mulher desconhecida, dela afastada sob a acusação de um envolvimento
com o pai no passado; em O homem duplicado, a mulher que bate à porta
para oferecer seus serviços domésticos a Tertuliano Máximo Afonso é uma viúva
já de idade e sem filhos, depois a mãe de Maria da Paz, noiva do professor de
História, apega-se à igreja a partir da morte do marido.
7 Para recorrer aos usos nas artes
plásticas, podemos recordar a variedade de registros fotográficos em preto e branco
das viúvas de Nazaré. A viúva de Terra do pecado, por sua vez, parece
encontrar seu parentesco com a personagem de mesmo designativo esculpida pelo
português Teixeira Lopes por ocasião do concurso de admissão à Escola de
Belas-Artes de Paris. A obra de 1893 expõe uma jovem mulher de olhar melancólico
para o chão, com o seio descoberto e entregue a uma criança que se ergue nua de
um berço revolto. O tema é romântico, enquanto a expressão naturalista, como se
nota nos efeitos contraditórios da composição, a viuvez alheia-se entre
a imagem idealizada da maternidade e da sensualidade feminina.
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