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Gustave Caillebotte. Rua parisiense, dia chuvoso |
Existem dois tipos de pessoas, as
que passeiam e as que não passeiam. A menos que uma causa importante os impeça,
reconheço a minha profunda incompreensão em relação a estes últimos. Vaguear é
uma atividade essencialmente humana, ou assim gosto de pensar, e quando não a
praticamos é como se estivéssemos negando uma parte substancial da nossa
essência. Não estou falando do deslocamento prático, estou falando da
deambulação descontraída, aleatória e reflexiva que é quase uma prática mística
e transformadora. Uma ferramenta para despertar a atenção, a criatividade e até
rebeldia.
O passeio — em oposição ao ato de
simplesmente caminhar — tem como premissa uma sede sem a qual é impossível
ocorrer em todo o seu esplendor. Deve haver uma intenção transformadora no
caminhante: o desejo de voltar um outro. Não tem nenhuma relação com rotinas ou
deveres e é principalmente um exercício psicológico e de atenção —
especialmente atenção. O caminhante sai de casa com todos os cinco sentidos
focados no ambiente ou em si mesmo e, à medida que o passeio avança, o foco da
atenção necessariamente muda. Esta é a verdadeira chave para um passeio
enriquecedor. Antes que as prateleiras das livrarias estivessem repletas de
títulos sobre
mindfulness, o passeio, praticado corretamente, já nos oferecia
a devida clareza mental.
Na verdade, para ter grandes
ideias, e segundo o que diz a ciência, basta mexer as pernas. Não importa o
ambiente, a direção, o que fizemos antes ou o que faremos a seguir. Alguns
estudos já investigaram o fenômeno.
Em 2014, Marily Oppezzo e Daniel L. Schwartz, da Universidade de
Stanford, conduziram o estudo “Give Your Ideas Some Legs: The Positive Effect
of Walking on Creative Thinking”. Motivados pelo vasto anedotário de
passeios famosos nos quais surgiram grandes ideias, descobriram que o
desempenho criativo aumenta 60% quando caminhamos.
Tchaikovski, Einstein, Nietzsche e
outros grandes gênios da arte, da ciência e da filosofia glorificaram o ato de
caminhar em seus processos criativos. Aristóteles e os peripatéticos já eram
conhecidos pelas suas reflexões a pé e figuras ainda mais atuais, como Steve
Jobs ou Mark Zukerberg, incluíram a caminhada nas suas reuniões como método
para esclarecer ideias. A muito completa obra
Caminhar, uma filosofia,
de Frédéric Gros, capta de forma exemplar o gosto pelo passeio dos autores mais
emblemáticos da história do pensamento ao mesmo tempo que nos oferece uma visão
quase poética do próprio ato de passear. Quem estiver interessado em mergulhar
no maravilhoso mundo das célebres caminhadas também encontrará uma leitura valiosa
em
A história do caminhar, de Rebecca Solnit, livro em que a autora
traça a história desta atividade, sua influência na sociedade, suas
repercussões políticas e como grandes figuras da nossa cultura usaram da atividade
de passear para dar forma às suas maiores criações. Inclusive no cinema — e
vemos isso em muitos filmes — a caminhada é comumente o veículo para o
desenvolvimento de ideias, encontros, conversas profundas ou transformação dos
personagens.
Mas, se há uma obra que promoveu
um antes e um depois no conceito de passear e na sua relação com a arte, é
As
flores do mal, de Charles Baudelaire. O poeta francês transformou o passeio
numa prática artística através do seu
flâneur, o transeunte que percorre
a cidade como observador e que se enriquece com a paisagem urbana e as
personagens que a habitam. Dessa forma, as próprias caminhadas materializam seu
trabalho. Nas “Quadros parisienses” o autor retrata as ruas da capital
francesa, desde as imponentes torres das catedrais até às sombrias vielas onde
vivem mendigos e prostitutas.
Os seus poemas sobre velhas e
cegos, sobre as mudanças que a cidade experimenta e as sensações que estas
imagens provocam, são sem dúvida os precursores de uma forma de compreender e
explorar o ambiente urbano, com um forte enfoque artístico, mas também político:
Baudelaire torna protagonistas o decadente e o desconhecido, tudo de que
desviamos o olhar.
Contudo, a verdade é que esta
figura não é exclusiva da obra de Baudelaire e já se encontra em escritos
anteriores de Edgar Allan Poe – em “O homem da multidão” — ou de Gustave
Flaubert. Porém, na poesia de Baudelaire atinge um elemento mais realista,
quase mundano, que a conecta diretamente com movimentos artísticos posteriores.
O flâneur é capaz de fazer uma leitura extraordinária da cidade, pois todos os
seus sentidos estão voltados para descobrir o que ela esconde. A
flanerie
se tornaria assim uma prática ideal para o artista, de qualquer campo criativo,
que encontra inspiração constante e renovada graças à variedade e
imprevisibilidade das estampas urbanas. É uma espécie de rebelião sobre o que
merece a nossa atenção, porque nos convida a investigar a cidade com uma
curiosidade renovada, apreciando algumas banalidades que incluem desde cabos
que pendem das fachadas até portas envelhecidas e a promessa das ruas estreitas
que nos levarão a um lugar onde nunca estivemos.
Esta ideia do flâneur ou a
flanerie
ressoou especialmente em Walter Benjamin, quem se aprofundou nela com uma
perspectiva mais política e altamente crítica frente ao timbre capitalista que
havia tomado uma Paris enormemente transformada pela Revolução Industrial. Nas
Passagens, o autor coloca no centro, não em vão, as galerias comerciais
parisienses cujo único propósito é centralizar os passeios dos viandantes e
convidá-los a adquirir qualquer um dos lustrosos bens expostos nas suas
vitrines.
Perante esta transformação
funcional e a proliferação de espaços destinados à troca de mercadorias, surgem
diferentes visões sobre o uso da cidade. Especificamente, propostas revolucionárias
sobre como caminhar pode nos ajudar a recuperar espaços “roubados” ou perdidos.
E o fato é que, quem caminha, ou melhor, quem vagueia — termo muito mais
preciso para o que dizemos aqui — põe em causa o desenho urbano, com essa forte
influência capitalista e que tem o seu maior expoente no centro ou região
comercial, desenhada em função do comércio e organizada em favor da segregação
urbana.
O passeador — o que vagueia, e não
o que se desloca do ponto A ao ponto B — desafia esse desenho, as indicações,
as sinalizações e os percursos pré-estabelecidos, para utilizar a cidade de
forma totalmente disruptivo, experimental, com o único objetivo de vagar.
Caminhar torna-se um fim em si mesmo. O passeador explora recantos
desconhecidos, afasta-se dos percursos comuns e procura, em última análise,
viver a cidade. Esta forma de compreender a andança fez com que não só os
artistas a tomassem como uma forma de se inspirarem, mas também se tornasse uma
espécie de prática artística em si.
Em seu livro
Walkscapes: o caminhar
como prática estética, Francesco Careri faz um percurso pelo uso da
caminhada, incluindo a prática de diferentes grupos de artistas. Assim, de
acordo com esta compilação de usos do caminhar, no início do século XX, os
artistas dadaístas começaram a organizar excursões a lugares da cidade
desprovidos de interesse, afastando a arte dos espaços a ela consagrados e
regressando à periferia urbana. Em 1924 organizaram um passeio em campo aberto
que chamaram de “deambulação” e do qual apontaram a sua semelhança com uma
experiência onírica e com a escrita automática, em que o espaço é o suporte. Um
espaço que definiam como o inconsciente da cidade.
Em 1958, Guy Debord desenvolveu
sua teoria da deriva, que propõe vivenciar a cidade e as sensações propiciadas
enquanto se transita por ela. Desta forma introduz também o termo
psicogeografia, um método que procura, através da deriva, compreender como o
desenho urbano intervém na nossa forma de viver na cidade e como pode afetar o
nosso estado de espírito. O objetivo desta prática é estudar como interagimos
com a própria cidade.
No documento original, Debord
oferecia uma série de diretrizes a serem seguidas a fim de realizar uma deriva
bem-sucedida. Tal como define o artista, o caminhante deve deixar-se levar
pelas “demandas do terreno”, de natureza psicogeográfica, para explorar a
cidade de uma forma que não responda à necessidade de uma transferência
pré-determinada. O que Debord propõe é que, na cidade, o movimento não pode ser
totalmente aleatório, porque a forma como está desenhada torna alguns locais
mais percorridos do que outros, alguns recantos são mais convidativos a virar
para a direita do que para a esquerda, e este tipo de considerações.
Não é uma ideia muito
interessante? Porque nos mostra a possibilidade de sermos vítimas, de certa
forma, de um desígnio que exerce controle sobre nós sem que tenhamos
consciência disso e do qual só podemos escapar colocando todas as nossas
intenções. Conduz-nos pela cidade, como se existissem passarelas invisíveis,
empurrando-nos para determinadas regiões de interesse, geralmente comerciais, e
deixando muitos outros espaços cinzentos que não utilizamos nem conhecemos. Do
prisma do uso do espaço quase de forma política, Guy Debord dava um exemplo
retirado do estudo da Paris de 1952 de Paul Henry Chombart de Lauwe. Nele,
verificava que todos os percursos realizados por uma estudante durante um ano
traçavam um pequeno triângulo cujas bordas eram sua escola, sua casa e a casa
de seu professor de piano. Em suma, um exemplo de como, por pura inércia,
fazemos um uso muito limitado da cidade.
O interesse que o elemento
psicogeográfico desperta em Debord é tão grande que, para ele, a famosa
deambulação dadaísta de 1924 pelo campo tinha sido um fracasso, porque no campo
aberto não existem elementos que favoreçam a aleatoriedade. Além disso, dentro
de sua abordagem marxista, para Debord o interesse de derivar na cidade é que
ela nos devolva um reflexo, tanto em relação à sociedade como no que diz
respeito ao indivíduo. A deriva é uma ferramenta para transformar o urbanismo e
a arquitetura.
Visto em perspectiva, o que a
teoria da deriva mantém sobre a psicogeografia é um segredo aberto,
praticamente uma daquelas coisas óbvias que você não vê até que alguém lhe diga
que está na sua frente. Qualquer um que saia para passear com os sentidos
suficientemente concentrados no percurso contemplará como o que parece
aleatório é determinado pelo desenho urbano — e, além disso, altamente
relacionado com o estado mental de quem caminha.
Collin Ellard, autor de
Places
of the Heart: the Psychogeography of Everyday Life, aplicou duas vertentes
do conhecimento, a neurociência e o desenho arquitetônico, para fornecer uma
explicação de como o entorno nos afeta. Nesta obra, ele oferece muitas
apreciações sobre as influências da arquitetura na mente humana. Por exemplo,
aponta o fato de que somos mais atraídos pelas formas curvas do que pelas
linhas retas ou pela forte impulsão de busca de informações. Ou seja, tendo que
escolher entre dois caminhos, um em que antecipamos que obteremos pouca
informação nova e outro em que pensamos que extrairemos muito, estaremos mais
inclinados para o segundo.
O livro também utiliza várias
referências de
Designing Casinos to Dominate the Competition, de Bill
Friedman. Este famoso arquiteto de cassinos e ex-viciado em jogos de azar expõe
vários dos truques de arquitetura e design de interiores que são aplicados para
incitar as pessoas a uma determinada ação, neste caso o jogo, e passar o máximo
de tempo possível dentro do edifício.
Tudo isso se aplica à cidade da
mesma forma. Ellard realizou inúmeras experiências, reunindo grupos de
caminhantes e convidando-os a escrever as sensações que experimentam ao longo
de um determinado percurso. Assim, chegou a conclusões como a de que a arquitetura
mais sofisticada de outros tempos provoca maior excitação, interesse e até
felicidade do que os blocos angulares minimalistas que, pelo contrário, geram
tédio, cansaço e até nervosismo.
Existem todos os tipos de estudos
sobre as interações dos pedestres com o ambiente urbano, como as observações do
urbanista Jan Gehl, que detectou que andamos mais rápido diante de fachadas
monótonas, que a modificação dos três metros inferiores das fachadas é decisiva
e que para uma rua ser “ótima”, o caminhante deve detectar um lugar
interessante a cada cinco segundos.
Seja como for, para além de como
todos estes elementos nos afetam e assumindo o caráter lúdico da deriva de Guy
Debord, o que o filósofo colocava sobre a mesa é uma forte crítica à perversão
do espaço urbano, à sua mercantilização e transformação em instrumento para o
capital. Essa ideia, que Benjamin também destacaria, foi desenvolvida também
por Henri Lefebvre em 1967 em seu
livro O direito à cidade, em que
propõe que o cidadão volte a ser protagonista de uma cidade que perdeu sua
essência em detrimento do mercado e da indústria. Segundo sua visão, foram
geradas cidades desconectadas, com áreas isoladas e uma espécie de segregação
da população, que divide as classes abastadas das mais humildes e as coloca
estrategicamente em regiões bem diferenciadas — com abordagem semelhante à
proposta de Burgess em sua teoria dos círculos concêntricos.
Assim, se a cidade é desenhada
segundo um plano que nos convida a percorrer mais alguns espaços do que outros,
conduzindo-nos geralmente à região comercial — mais iluminada, pedonal,
decorada e segura — num certo sentido, passear é um ato de revolta. Especialmente
numa época em que o entretenimento, repleto de telas, ocorre principalmente
dentro das casas. É preciso perguntar-se como usar a cidade e fazer uma leitura
crítica sobre se realmente ela se torna sua ou se, como a estudante de Lauwe, mal
se move num restrito triângulo. Sair à rua, caminhar, deixar-se levar pela
cidade e pelos seus elementos, é um direito e também um dever. Porque tudo que
não é aproveitado se perde.
Caminhar, como entendiam
Baudelaire ou Debord, é essencialmente humano. É uma consciência, uma
reivindicação de si mesmo e uma oportunidade de expandir nosso universo mental.
Explorar a cidade com plena consciência, aproveitando as zonas cinzentas e prestando
atenção às fendas, portais, decorações ou à mudança de luz com o passar das
estações, é um jogo que nunca acaba, só fica mais interessante. A caminhada
traz lucidez, mesmo quando não é intencional. É uma aventura e um luxo, um
espaço para si ou para se encontrar outras pessoas. É uma incursão no real, que
é a rua, e que nos afasta das ficções do lar para finalmente nos colocar num
contexto: o social. Confronta-nos com o frio, o calor, o barulho, o belo e o
horrendo. Oferece-nos controle e nos despoja dele. Nos faz donos da cidade e
fiadores de uma inquietude que é infinita.
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