Por Wesley Sousa
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Ghassan Kanafani. Foto: Bruno Barbey |
O filósofo alemão Theodor Adorno
certa vez escreveu que depois do episódio de Auschwitz não era mais possível
escrever poesia. Claro que muitos não levaram a afirmativa de forma literal e
continuamos a escrever poesia sabedores que uma humanidade catastrófica foi
instituída.
Hoje em dia, alguém poderia dizer
que o romance não suportaria a
Nakba (“catástrofe”) palestina, porém,
muitas pessoas seguirão a escrever romances. Agora televisionados e
instagramáveis,
os acontecimentos e suas consequências incalculáveis passam a olho nu. Ante
tamanha barbárie que atravessa mais de sete décadas o povo palestino, não mais
a poesia, mas o romance, agora, está
inviabilizado...
Na mais atual ofensiva israelense —
o braço armado estadunidense no oriente médio — contra os palestinos (e agora
os libaneses, sírios e os iranianos), a chamada “literatura de resistência” não
poderia deixar de passar pela Palestina, nem deixar de nos fazer enfatizar o
humanismo que está na alma literária.
Para comentar o primeiro romance do autor palestino Ghassan Kanafani
(1936-1972) — vítima da polícia israelense —, é central recapitular que sua
literatura foi um gesto singular diante de tudo que viveu e viu acontecer com
seus semelhantes. Kanafani é considerado o pioneiro da literatura de
resistência palestina. Ele influenciou muitos escritores árabes de sua época e segue
como um dos grandes escritores palestinos. Além de militante político e figura
central na construção da resistência palestina à ocupação israelense e ao
projeto sionista, Kanafani manteve proximidade com o marxismo e o
internacionalismo proletário; um escritor que explorou seu talento literário e
conferiu à sua obra um caráter universal.
***
No aspecto mais amplo, a obra foi
publicada originalmente em árabe em 1963. A história aqui versa sobre homens de
três gerações distintas, mas com um mesmo objetivo: buscando algum refúgio em
terras vizinhas ou em países que alcancem o mínimo de paz e a possibilidade de
um futuro de ajuda aos que ficaram. Ambientado em um contexto de quando
centenas de milhares de palestinos foram mortos ou expropriados de suas terras,
seus hábitos, suas tradições e as suas organizações comunitárias, eles agora
foram obrigados a buscar refúgio em terras dentro da Palestina histórica e,
sobretudo, fora dela. Kanafani, no ofício de escritor, narra a saga destes três
homens ao sol — o deserto escaldante e longínquo de suas terras de
origem.
1
O romance que está intitulado
Homens
ao sol conta a história de três homens palestinos que sofreram a Nakba de
1948
2 e dividido em sete breves e intensos capítulos, nos quais os
três primeiros são justamente os da entrada das personagens na trama: O
primeiro é “Abu Qais”, o segundo é “Asaad”, e o terceiro é “Marwan”. O quarto
capítulo se trata de “O acordo”; o quinto é “O caminho”; o sexto é “Sol e
sombra”. Por fim, “O túmulo”. Como se percebe pelos títulos, a história
desemboca num enlace dramático, cujo conteúdo não haveria de ser outro. Ao
longo da narrativa, desde a aparição das personagens, suas particularidades, o
que as unem, e também no destino ao qual estão confinadas, é desenvolvida com
uma atitude poética que prende o leitor e o faz ter a dimensão subjetiva das
suas angústias, desde o acordo para o contrabando rumo ao Kuwait, a longevidade
e insalubridade do caminho (deserto, calor, fome, sede etc.).
É na angústia que cada um traz
consigo que emerge a coragem para tomar um rumo sem ao menos saber se o alcançarão.
Num trecho da obra, lemos:
“Sentiu que o interior de sua
cabeça estava cheio de lágrimas. Deu meia-volta e saiu da loja. Na rua, tudo
ficou embaraçado atrás de um véu de lágrimas contidas... O rio se fundiu com o
céu lá no horizonte. Ao redor, tudo era uma claridade sem fim. Mais uma vez,
deitou-se de bruços sobre a terra molhada que pulsava sob seu peito. O cheiro
da terra fluía por suas narinas e se derramava nas veias, feito torrente”
(Kanafani, 2023, p. 20-21).
Em sua narrativa comovente e bem
arquitetada, Kanafani revela um talento que não se reduz a um manifesto de
denúncia. É uma literatura rica que, em alguns momentos, chega a nos lembrar —
sem forçar a mão —
Vidas secas, de Graciliano Ramos. Diferente da
cachorrinha Baleia, que foi sacrificada pelo dono, os homens ao sol vivem suas
vidas sacrificadas por um passado que ressoa, um futuro tão incerto que os faz
acreditarem que ser contrabandeados é o único meio de sobrevivência — como
sub-humanos.
As personagens convergem num mesmo
lugar com uma intenção similar: buscar uma vida melhor longe da terra ocupada. As
três estão tentando atravessar o Iraque e chegar ao Kuwait, na esperança de
encontrar trabalho, para então poderem enviar dinheiro para a família, ou mesmo
inventar uma nova vida, ainda que o passado as atormente.
“Varapau [seu apelido no Iraque]
era um excelente motorista. Serviu no Exército britânico por mais de cinco anos
antes de 1948. Quando deixou o Exército e se juntou aos combatentes palestinos,
tinha a reputação de ser o melhor motorista de caminhão que se poderia
encontrar. Foi por isso que o comando dos combatentes de Altireh o solicitou
para dirigir um velho carro blindado que a aldeia havia capturado depois de um
ataque judaico” (Kanafani, 2023, p. 54).
Até que ponto o ser humano pode
aguentar a aflição que o acomete? Seja esse limite alcançado de forma física,
seja mental,
Homens ao sol se passa no pós-Nakba, e nas entrelinhas há o
contexto da invasão de Israel na Palestina acompanhando os primeiros homens que
saem em busca de refúgio e melhores condições de vida em outras terras. Eles
são três homens de distintas gerações, sem o dinheiro necessário, mas com um
objetivo em comum, que os fazem unidos: buscam atravessar a fronteira do Iraque
para o Kuwait. Após tentarem negociar com contrabandistas que cobravam muito
mais do que eles poderiam pagar, os homens acabam fechando negócios com
Abul-Khayzuran, um motorista de caminhão que se propõe a levá-los ao destino desejado:
“Eu comparo estes cento e
cinquenta quilômetros à senda prometida por Deus às criaturas, que a
percorreriam antes de serem direcionadas ao paraíso ou ao inferno. Se alguém
cair, vai para o inferno, e, se atravessar com segurança, chega ao paraíso”
(Kanafani, 2023, p. 63).
Nesse trecho, a obra ganha um tom
angustiante ainda maior na sequência em que se desdobram os fatos. Em “O caminho”
narra até que ponto a situação dos palestinos chegou para levar a população a
tomar decisões tão drásticas: a ponto de serem refugiados numa imensa incerteza
da sobrevivência. E é assim que
Homens ao sol avança, com primor, acompanhando
como seus protagonistas sobrevivem e resistem em meio aos resquícios de um
passado sem retorno e que insiste ressoar incessantemente. Por isso, as
personagens carregam consigo não apenas a coragem diante do medo, mas o
comprometimento com a história, no mesmo sentido que escancaram a desesperança
no momento histórico que os acometeram.
“O enorme caminhão carregava seus
sonhos, suas famílias, suas esperanças e ambições, seu desespero e miséria, sua
força e fraqueza, seu passado e futuro... como se empurrasse um imenso portão
de um novo e desconhecido destino. Todos os olhos estavam fixos na superfície
do portão como se estivessem amarrados a ele por fios invisíveis” (Kanafani,
2023, p. 81).
A condução narrativa nos leva ao
clima dramático. Um dia de sol escaldante no deserto que liga o Iraque ao
Kuwait é uma eternidade para quem passa alguns minutos nas paradas de caminhão
em postos de pedágio confinados dentro de caminhões-pipa, sufocando-se no calor
e pela falta de ar, até que, tempo depois, o hábil motorista possa parar o
veículo e os recolocar nas cabines (que mais parecem saunas nas tardes em
deserto).
A última parte do romance,
realmente, prende o leitor e o faz questionar o valor da vida que outrora foi
retirada de seus recintos. Um corpo desterritorializado é um corpo cuja alma
perece sob a contingência de um universo indiferente à tragédia alheia. E isso
vai se intensificando até um desfecho arrebatador.
Por essa narrativa envolvente, a
obra de Kanafani segue viva. Agora disponível ao leitor brasileiro, a
literatura de resistência palestina tem aqui não apenas um público, mas aqueles
que se identificando com angústia das personagens, recoloca na arte literária
as intempéries de um povo vivendo no inferno a céu aberto na luta por sua
dignidade mais básica: seu território.
Homens ao sol (como título e como
condição) que, fora de sua terra, sequer agora, terão direito ao túmulo.
***
A publicação da editora Tabla pode
ser considerada, além de um romance de certo modo pioneiro, um tributo ao
autor. Mostra aqui um espelho de seu tempo e da luta palestina na atualidade. Kanafani
foi cofundador da Frente Popular para a Libertação da Palestina e sua luta
entra na literatura como forma de expressar sentimentos, sonhos e esperanças.
Essas informações não são dispersas, pois elas servem como meio de compreensão
do contexto da sua narrativa e as premissas que dela derivam.
A literatura cumprirá bem seu
papel de “autoconsciência da humanidade”, como diria o filósofo húngaro György
Lukács, quando ela elevar o espírito leitor às determinações de onde surgiu. Se
se ainda escreveu poesia depois de Auschwitz; os romances, apesar de tudo,
também continuam a ser escritos: a literatura de Kanafani (e, claro, de toda
resistência palestina) revela o que há de mais desumano no imperialismo: a face
da destruição dos povos subjugados por ele.
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Homens ao sol
Ghassan Kanafani
Tabla, 2023
Safa Jubran (Trad.)
104p.
Você pode comprar o livro aqui
Notas
1 Kanafani, Ghassan.
Homens ao
sol. Tradução Safa Jubran. Rio de Janeiro: Tabla, 2023.
2 Para ler sobre a história e o
desenvolvimento deste fato, vale conferir a seminal obra do historiador
israelense: PAPPÉ, Ilan.
A limpeza étnica da Palestina em 1948. Tradução
Luiz Gustavo Soares. São Paulo: Sundermann, 2016.
* Wesley Sousa é doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Membro da Associação Brasileira de Estética (ABRE) e do
grupo Crítica & Dialética (UFMG/CNPq).
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