O centauro no jardim, de Moacyr Scliar

Por Sérgio Linard

Moacyr Scliar. Foto: Roberto Scliar


 
A vida sem a ficção seria insuportável; isso caso cogitar uma vida sem resquícios mínimos de elocubração fosse uma atividade possível ao homem. Em sonhos, em devaneios ou em ideações, temos, todos nós, à nossa medida, alguma forma de ficcionalizar a realidade. Uma maneira de viver. Com base nessa necessidade humana, Moacyr Scliar, em O centauro no Jardim, apresenta um romance que é a exata definição sobre como seria intragável a passagem humana na existência sem que essa fabulação em potencial, além do círculo comum repetitivo das coisas e dos meios, fosse não só uma possibilidade, mas uma maneira intrínseca de se ser no mundo. Para atingir esse objetivo, o autor coloca-se como crítico da própria história que escreveu, mostrando que o que a faz ser especial é somente a presença daquilo que pode ser dito como “inútil” ou “dispensável”, dada a não objetividade material esperada para os elementos e os acontecimentos da vida moderna.
 
O romance lido coloca-se no perigoso espaço de apresentar outra versão de sua forma, mas atinge elogiável êxito por conseguir realizar-se sem o expediente comum do didatismo ou das simples declarações. O risco que se optou por correr na forma que o conteúdo deste romance foi arquitetado é muito bem compensado com o estabelecimento, por meio de interessante repetição, de que o homem precisa criar seus próprios Centauros nos seus jardins.
 
Os primeiro e último capítulos deste romance do autor brasileiro Moacyr Scliar, republicado em 2023, começam e terminam nos mesmos dia, mês, ano e local. Entre essas duas extremidades, o leitor é convidado a acompanhar a história de Guedali, desde seu nascimento, em 1935, até a data final da narrativa, no ano de 1973. Esse círculo (ou seria uma espiral?) da vida do protagonista é narrado em primeira pessoa, dentro de uma estética realista de escrita, sempre com demarcações capitulares do período e do lugar onde tudo acontece. De modo, em uma primeira visada, linear, lemos sobre como uma família de judeus, no Rio Grande do Sul, precisa encarar o fato de que o filho mais novo da prole nasceu com metade do corpo de ser humano e a outra metade com a anatomia de um cavalo. Não bastasse a perseguição que aquelas pessoas já recebiam historicamente, ainda precisariam lidar com a vergonha de terem dado vida a uma — nas palavras do romance — aberração. É, dessa feita, o nascimento desse personagem principal o ponto de desequilíbrio da narrativa que lemos.
 
Sabemos, certamente de forma bastante nítida, que esse enredo é ficcional e tem atrelado a si, de pronto, uma já conhecida recorrência aos arquétipos que sustentam alguns conceitos e preconceitos relacionados aos personagens envolvidos na trama. Contudo, é exatamente o convite à percepção dessas informações, para além da realidade, que o livro proporciona reflexões ou, em alguns casos, a simples fruição, colocando-se na posição de julgador e de julgado ao mesmo tempo. O autor arrisca-se, assim, a mostrar a grande simplicidade de sua história, e, com essa escolha, firma-se como alguém que domina o material literário que tem em mãos, algo com parcas chances de ser encontrado em nível similar na literatura contemporânea.
 
“Estou deitado sobre a mesa. Um bebê robusto, corado; choramingando, agitando as mãozinhas — uma criança normal, da cintura para cima. Da cintura para baixo: o pelo de cavalo. As patas de cavalo. A cauda, ainda ensopada de líquido amniótico, de cavalo. Da cintura para baixo, sou um cavalo. Sou — meu pai nem sabe da existência desta entidade — um centauro. Centauro.”
 
A cena acima é o primeiro contato que o leitor tem com a realidade anunciada no título: da presença de um centauro na história. Aqui, o discurso entrecortado por pausas para, praticamente, cada uma das orações, foi uma estratégia adotada para dosar o impacto dessa informação e de todo o drama que ela contempla. Essa mesma estratégia é utilizada em toda a narrativa nos momentos em que a informação a ser lida gera impactos para os personagens e, em potencial, para o leitor. Usa-se uma suspensão, por meio da pausa, obrigando um processamento mais lento e, ainda que a pausa, em uma apressada leitura, não seja respeitada, tem-se a repetição vocabular para reafirmar o que acabou de ser dito. Nesse caso, o material literário está sendo trabalhado a um nível de esgotamento dos recursos coesivos com o foco em demarcar a presença dos vários elementos fantásticos, colocando-os como se estivessem imbuídos da naturalidade do real; Scliar decide “martelar” a ideia para reforçá-la e fazer com que se esqueça um mundo no qual o conteúdo lido seria impossível de se realizar. Isso fica claro, mais ainda, quando se constata que a obra, em determinado momento, se encaminha para uma narrativa em que tudo o que já foi lido até então é apresentado com total ausência de qualquer elemento não natural à vida humana.



 
Desse modo, uma vez envolto dentro da história de Guedali — cabe lembrar que se trata de um narrador em primeira pessoa —, o que choca o leitor é a realidade como ela é e não a extrema fuga dela. Aquilo que poderia ser inesperado, no princípio do romance, é naturalizado, paulatinamente, à medida que a história é contada. Como que um guia ao levar o visitante de um novo espaço, o narrador conta sua história — marcada por mais tristezas do que felicidades — e não apenas cria o imaginário do seu misticismo, mas também internaliza todos os detalhes.
 
“E eu rezo muito, penso em Deus antes de adormecer. Mas a figura que me aparece em sonhos não é Jeová; é o soturno cavalo alado.”
 
 Nuances mais sórdidas, como as dimensões do órgão sexual daquele ser mitológico, até a características existenciais, sobre como seria a imagem de um deus, são apresentadas com reais aprofundamentos. É dentro dessa construção em que os grandes momentos são introduzidos por curtíssimos períodos e/ou orações que acompanhamos o adoecimento mental de Guedali diante da realidade imposta desde seu nascimento. Incapacitado de conviver com outras pessoas que não as de sua família, é constante o registro de sua vontade de dar um termo à própria vida. À medida que o centauro cresce, o jardim no qual tem seus momentos de lazer torna-se menor e a ele resta o destino dos insatisfeitos com a moradia que têm: a fuga.
 
Recorre-se, então, a um universo circense em que ele, sorrateiramente, conseguiria esconder sua natureza alegando tratar-se de uma fantasia para o trabalho naquele espaço. O personagem desenvolve-se fisicamente e demonstra que o tempo preso em casa e em sua prisão gerada pela dor mental fizeram-no pouco conhecer das malícias e mazelas do mundo real, em que a exploração é sempre palavra de ordem. A libertação parecia estar, então, dentro da morte, já que se desconhecia procedimento capaz de desmembrar a parte equina de seu corpo.
 
Uma vez que é dado prosseguimento à narrativa, descobre-se um médico marroquino que estaria disposto a fazer o procedimento cirúrgico para a resolução daquele problema. Neste ponto, depois de realizados os procedimentos, O centauro no jardim recai em um espaço esperado desde o primeiro momento, o personagem sente falta de ser o que era e pede, encarecidamente, para que aquela mudança seja revertida. Na impossibilidade disso, precisa reconhecer que “já não era a metade anterior de um centauro, eu era um ser humano completo.”
 
O passado é o espaço para o qual não se volta de modo algum. Por meio da lembrança e da rememoração, é possível, de certo modo, revisitá-lo, mas sem nunca efetivamente ali estar. Essa é a fatídica realidade que a fantasia do centauro que deixa de ser centauro tenta proporcionar, clarificando mais ainda a constatação do adoecimento em que aquele ser está envolvido. Nesse ínterim, bons e divertidos momentos são vividos, mas a exclusiva focalização no apego à dor impede a real conservação do momento ele mesmo de gozo. Tudo parece configurar-se em prol de uma vivência destinada à infelicidade, a incompletude, ao descompasso e à desconexão.
 
Neste romance, Scliar dedica-se a demonstrar os exatos detalhes por meio dos quais a vida humana, apartada ou frustrada de suas subjetividades, tende a envolver-se em profunda melancolia. A passagem do tempo, registrada a cada capítulo, não é suficiente para gerar alguma melhoria, porque do homem foi retirada, inclusive, essa noção temporal; mas não porque não se vejam os dias e as horas passarem, mas sim porque tem-se a leitura de dias e de horas que passam sempre fundados em medo, receio e angústia. Um círculo adoecedor.
 
Este círculo, por seu turno, é o que dá estrutura ao romance ele mesmo —cabe lembrar que o livro começa e termina narrando a mesma data e o mesmo lugar — e assinala a obra como uma ode à necessidade de se ter na vida humana a exploração de suas capacidades inventivas sob pena de a existência tornar-se um eterno retorno em que somente a utilidade pode ser a busca. Para isso, e aqui cabe deferência à escrita de Scliar, o narrador conta, por meio de discurso indireto livre da voz de sua esposa — também nascida com parte do corpo de equino — a mesma história lida, mas retirando todos os elementos ficcionais: não há centauros, cirurgias para deixar de sê-lo etc.
 
Desse modo, a história e a vida de Guedali são resumidas em pouco mais de dez páginas. Sem o espaço para que o ser humano exerça e explore o seu potencial de criação, conquista-se de forma mais fácil a alienação e aquele que poderia realizar-se como alguém complexo e altivo e tido como um ser menor, um projeto de humano que até pode fazer parte de uma sociedade, mas será sempre somente uma parte. Uma microparte socialmente convencida de que ser assim é o caminho ideal.  Ou, nas palavras de Moacyr Scliar:
 
“[...] É uma história tão engenhosamente montada quanto uma novela de TV. Com um único objetivo: me convencer de que eu nunca fui um centauro. O que estão conseguindo. Em parte, pelo menos. Ainda me vejo como um centauro, mas um centauro cada vez menor, um centauro miniatura, um microcentauro.”


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O centauro no jardim
Moacyr Scliar
Companhia das Letras, 2024
240p.
 
 
 

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