Por Violeta Leiva
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Sebastian Stoskopff. |
Até que ponto a nossa ocupação
determina a forma como morremos? Deixando de lado os acidentes de trabalho, é
mais provável que um vendedor de enciclopédia se engasgue com um camarão do que
um toureiro? É sabido que há uma multiplicidade de fatores condicionados pelo
trabalho — exposição a substâncias tóxicas, stress, esgotamento físico,
sedentarismo, hábitos alimentares etc. — que acabam por ter uma influência mais
ou menos direta, para bem ou para mal, da maneira como terminaremos nossos
dias.
Poderíamos pensar que as ocupações
intelectuais, por não implicarem à primeira vista um risco físico
significativo, têm pouca influência nos fins daqueles que as realizam. Talvez a
corroboração de uma estatística que não possuo não seja necessária para
confirmar que o trabalho intelectual é, no entanto, uma atividade de alto
risco. As dificuldades e resistências enfrentadas por quem se esforça para
preencher páginas e páginas — seja o resultado um grande trabalho ou a tradução
de um prospecto médico — levam muitas vezes ao vício em álcool e outros
entorpecentes e, na maioria dos casos, à compulsão pelo cigarro. Seriam
necessárias muitas mãos para contar as mortes de intelectuais causadas
diretamente por esses vícios. Malcolm Lowry, Jack Kerouac, Jean-Paul Sartre e
Antonio Machado são apenas alguns deles.
Outro perigo que persegue
filósofos e escritores de todos os tipos com especial intensidade é a
melancolia. Pensar demais talvez não seja a melhor maneira de nos conectarmos
com o nosso eu mais vital e despojado. A vida a nível intelectual não tem
sentido, e muitos pagaram caro pela sua dedicação em mergulhar na falta de
sentido do racionalismo humano. Para citar apenas alguns: Virginia Woolf,
Ernest Hemingway, Gilles Deleuze, Paul Celan, Stefan Zweig, David Foster
Wallace…
Mas não são a estas mortes, que
embora prematuras e trágicas se podiam ver vindas de longe, que me refiro aqui.
Há coincidências, absurdas e fatídicas, que ligam os fins dos seus
protagonistas de uma forma invulgarmente irônica e precisa com a obra a que
dedicaram as suas vidas.
Albert Camus voltava da Provença,
onde celebrara o ano novo de 1960 com a família. Os Gallimard, Michel, Janine e
sua filha Anne, também compareceram à celebração. Camus comprara recentemente
uma casa antiga em Lourmarin, com a promessa ao antigo proprietário de cuidar
das árvores do jardim. Certa ocasião disse que finalmente havia encontrado o lugar
ideal para ser enterrado. Não sendo muito interessado em direção, Camus planejara
retornar a Paris no dia 3 de janeiro de trem com sua esposa e os gêmeos, Jean e
Catherine. Comprou as passagens antes de sua partida. Mesmo assim, decidiu de
última hora viajar no carro dos Gallimard, talvez com a ideia de discutir algo
com seu editor.
A viagem era longa e o melhor era
não ter pressa. Passaram a noite em Thoissey e comemoraram os dezoito anos de
Anne recentemente completados. Já no último dia de viagem, a apenas cem quilômetros
de Paris, o carro conduzido por Michel Gallimard, um Facel-Vega novinho em
folha de linhas requintadas e suntuosas, percorria a alta velocidade pela Nacional
5 num percurso sem curvas. Uma densa fileira de árvores acompanhava o percurso
da estrada, como é comum em estradas que atravessam campos planos. O carro, por
motivos que nunca se esclareceram de forma satisfatória, desviou da reta,
perdeu controle e colidiu contra uma árvore.
Albert Camus, que viajava no
assento do copiloto, morreu instantaneamente. Seu corpo ficou tão preso na
carroceria danificada que as autoridades levaram várias horas para resgatá-lo.
Em um dos bolsos ainda carregava a passagem de trem que não utilizou para fazer
o mesmo trajeto. O escritor do absurdo, o mesmo que poucos dias antes declarara
que nada lhe parecia mais fútil do que morrer num acidente de automóvel,
despediu-se com uma demonstração final do niilismo com o qual caracterizara a
sua obra.
No romance da sua juventude que só
foi publicado postumamente intitulado A morte feliz, Camus põe na boca
do seu protagonista, Mersault, antecessor do protagonista de O estrangeiro,
as seguintes palavras: “As pessoas não são mais ou menos tempo felizes. São felizes
ou não, só isso. E a morte não impede nada, é um acidente da felicidade, nesse
caso.”1 No dia do acidente, Camus tinha 46 anos, havia recebido o
Prêmio Nobel de Literatura há três anos e afirmava que sua obra estava apenas
começando. O manuscrito do último romance que escreveu também viajava no
Facel-Vega naquele fatídico dia de janeiro.
Embora a morte de Walter Benjamin
tenha sido comumente relatada como suicídio, novos estudos apontam para
inconsistências entre as evidências disponíveis e o relato das principais
testemunhas, e vige a hipótese de assassinato como a causa plausível da morte
precoce do pensador alemão.
Em 1933, Benjamin fugia da sua
cidade natal, Berlim, iniciando uma viagem que o levaria a Ibiza, Nice,
Svendborg e San Remo, para se estabelecer, finalmente, em Paris. Marxista
singular e ao mesmo tempo místico judeu, ele gozava de certa impopularidade, se
não de total hostilidade, por parte dos comunistas leais ao regime e, claro,
dos nazistas. O escasso êxito de suas publicações também não era um alívio.
Entrincheirado na Bibliothèque Nationale, trabalhou em seu projeto Arkaden
e nos artigos que publicou em uma revista acadêmica dirigida por Max
Horkheimer, incluindo o ensaio — o mais tarde famoso — A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica.
Na primavera de 1940, com a
entrada dos nazistas na França, sua vida estava por um fio. Ele conseguiu
escapar num trem para o sul em 13 de junho, um dia antes de as tropas alemãs
entrarem na capital. Semanas depois, no porto de Marselha, tentava embarcar num
cargueiro com destino ao Sri Lanka, passando-se por marinheiro, mas foi
descoberto. Com um visto oficial para entrar nos Estados Unidos fornecido por
Max Horkheimer, mas incapaz de deixar a França legalmente, Benjamin juntou-se a
outros refugiados para tentar a sorte cruzando os Pirenéus a pé.
Partiram de Port-Vendres na
madrugada de 25 de setembro. Lissa Fittko, esposa de um amigo de Benjamin, os
guiava. Os outros dois viajantes eram Henny Gurland, uma fotógrafa alemã, e seu
filho Joseph. Benjamin, que aos 48 anos não gozava de boa saúde e tinha um
coração fraco, fazia paradas regulares a cada poucos minutos para evitar a
exaustão. Carregava laboriosamente uma mala pesada que, segundo ele, continha
documentos mais importantes que sua vida e que de forma alguma poderia se extraviar.
De acordo com a história de Henny
Gurland, certa vez ele até precisou beber de um charco para saciar a insuportável
sede. Apesar da provação que o dia de montanhismo lhes deve ter causado, e dado
que não tiveram outra opção senão continuar em frente, conseguiram chegar a
Portbou ao final da tarde. A recepção foi uma decepção inesperada. A guarda
civil, na sequência de uma decisão recente, proibiu-os de entrar em território
espanhol, frustrando assim os seus planos de atravessar até Portugal e de lá
embarcar para os Estados Unidos. Na manhã seguinte seriam deportados de volta
para França, o que significaria morte na certa. Essa noite em Portbou,
hospedado no albergue França, seria a última para Benjamin.
De acordo com Gurland, na manhã
seguinte Benjamin mandou chamá-la para dizer que havia ingerido uma grande
quantidade de morfina na noite anterior e entregar-lhe uma nota de suicídio, para
em pouco tempo mais tarde perder imediatamente a consciência. A certidão de
óbito é datada de 26 de setembro às 22h, e causa da morte: hemorragia cerebral.
Segundo o laudo médico, não há vestígios da droga no corpo do falecido. Gurland
afirmou ter destruído a carta que Benjamin lhe deu e mais tarde a reconstruiu
da seguinte forma:
“Numa situação sem saída, não
tenho escolha a não ser acabar com ela. É numa pequena cidade situada nos
Pirenéus, onde ninguém me conhece, onde a minha vida vai acabar. Peço-lhe que
transmita o que penso ao meu amigo Adorno e explique para ele a situação a que
fui levado. Não tenho tempo suficiente para escrever todas as cartas que
gostaria de ter escrito.”
É possível que no desespero em que
Benjamin se encontrava, tenha decidido encerrar abruptamente sua fuga
frustrada. Ironicamente, seus companheiros de viagem foram autorizados no dia
seguinte a continuar a rota e chegaram algumas semanas depois, sãos e salvos,
aos Estados Unidos. Em parte, esta mudança por parte das autoridades que
inicialmente lhes negaram a passagem poderia ter sido uma consequência do
choque produzido pela morte de Benjamin. Por outro lado, o relato de Gurland
está repleto de inconsistências e os documentos preservados se contradizem
quanto à data e causa da morte. Sabe-se que a Gestapo tinha agentes em Port
Bou. Benjamin também poderia ter caído numa armadilha armada pelo serviço
secreto stalinista, como salienta S. Schwarz. Em 1940, o pacto entre Hitler e
Stalin ainda estava em vigor. Se pensarmos nos dois serviços secretos mais
obscuros e poderosos do mundo trabalhando juntos, temos uma ideia do campo
minado por onde Walter Benjamin se moveu e das forças que poderiam ter posto
fim à sua vida. A mala com os documentos misteriosos que ele guardava foi
perdida e nunca mais recuperada.
A primeira morte que me atraiu a
ideia de escrever este artigo, aquela que despertou este interesse mórbido, foi
a de Roland Barthes. Semiólogo, observador e classificador incansável da
realidade que nos rodeia, Barthes publicou em 1980, poucas semanas antes de sua
morte, um dos escritos mais influentes sobre fotografia até hoje. Talvez deva a
sua relevância ao fato de negar uma possível classificação para este meio. Para
Barthes, a fotografia é a subjetividade das suas memórias e do seu luto. No
final de 1977, morria Henriette Barthes, mãe do autor, com quem viveu grande
parte da vida. Essa perda permeia sua análise da fotografia:
“Com a Fotografia, entramos na Morte
chã. […] O horror é isto: nada a dizer da morte de quem eu mais amo, nada a
dizer de sua foto, que contemplo sem jamais poder aprofundá-la, transformá-la.
O único ‘pensamento’ que posso ter é o de que no extremo dessa primeira morte
está escrita minha própria morte; entre as duas, mais nada, a não ser esperar […].”2
Com o humor taciturno e a tristeza
que ainda não havia passado, no dia 25 de fevereiro de 1980, Roland Barthes
saiu de uma refeição com François Mitterrand, então candidato à presidência.
Embora relutasse em participar desse tipo de encontro, sua dificuldade em dizer
não também era conhecida. Caminhando pela Rue des Écoles, ao atravessar a rua,
alguns carros em fila dupla o impedem de ver a van da lavanderia que iria
atropelá-lo. Com o rosto inchado e deformado pelo impacto, e sem qualquer documentação
com ele, ninguém o reconhece apesar de estar a poucos metros do Collège de
France, onde ministrava seus seminários.
Levam-no para o hospital
Pitié-Salpêtrière e permanece várias horas na sala comum sem ser identificado.
O acidente não é fatal, mas ele apresenta diversas fraturas, no crânio e nas
costelas. Durante o mês de convalescença, seu estado piora. Ele não consegue
falar e parece ter perdido a vontade de viver. Morreu em 26 de março, em
decorrência de complicações pulmonares. Tinha sessenta e quatro anos. Com a
maior discrição, foi sepultado no cemitério de Urt ao lado de sua mãe. Italo
Calvino, presente entre os poucos convidados ao cortejo fúnebre, escreveu:
“Para nós que estávamos ali por
causa de Barthes, esperando imóveis e mudos no pátio, como seguindo a senha
implícita de reduzir ao mínimo os sinais do cerimonial funerário, tudo o que se
apresentava naquele pátio agigantava sua função de signo; eu sentia fixar-se,
em cada detalhe daquele pobre quadro, a acuidade do olhar que se exercitara em
descobrir frestas reveladoras nas fotografias de A câmara clara.”3
Para Calvino, a morte do autor
está indissociavelmente ligada a este último livro. A fotografia segundo
Barthes, esse choque instantâneo que nos tira do nosso ser e nos transforma em
máscaras, mera referência a um passado que existiu, é a morte antecipada.
Notas da tradução
1 A citação é da tradução de
Valerie Rumjanek (Record, 2017).
2 A citação é de
A câmara
clara: nota sobre fotografia, na tradução de Júlio Castañon Guimarães (Nova
Fronteira, 1984).
3 O obituário escrito por Italo
Calvino intitula-se “Em memória de Roland Barthes” e foi integrado ao livro
Coleção
de areia. A citação é da tradução de Maurício Santana Dias (Companhia das
Letras, 2010).
* Este texto é a tradução livre de
“Muertes de intelectual”, publicado aqui, em Jot Down.
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