As reações desencadeadas por
Megalópolis
(2024), de Francis Ford Coppola, têm sido tão desiguais que antes de se ver o
filme alguém espera uma coisa inédita e até disforme: há mesmo quem zombe
comparando-o ao videoclipe de “In the End”, em que os integrantes do Linkin
Park cantam sua música diante de um pôr do sol apocalíptico, alheios à hera que
brota do solo erodido e se desintegra diante de suas rimas. Do outro lado do
espectro, há quem o compare com o trabalho de revolucionários clássicos como
Michael Powell, Orson Welles e até mesmo Sergei Eisenstein. Há algo de
verdadeiro nos dois extremos, mas
Megalópolis não me parece tão
kitsch
— especialmente considerando que Coppola já usou esse tom antes — nem tão subversivo:
ele também fez coisas mais originais.
Há alguns anos, o diretor estadunidense
planeja um filme transmitido ao vivo sob o título
Distant Vision, que
contaria a história da relação de uma família com a televisão ao longo de
várias épocas.
Caminhos mal traçados (1969), um de seus primeiros longas,
combinou planos muito abertos com uma história de libertação feminina que às
vezes parecia sob a influência de Michelangelo Antonioni, e seus filmes depois
de
O poderoso chefão II (1974 ) incluem musicais e explorações da
linguagem cinematográfica que, aliás, o arruinaram financeiramente.
Megalópolis,
então, não é um gesto coppoliano nunca visto, nem é o futuro da imagem: para o
bem e para o mal, nos leva ao passado (o do cineasta e o do cinema).
O novo filme de Coppola, que
poderia muito bem ser um lançamento de 1927 — e de certa forma é — começa a
mostrar sua extravagância nostálgica no comportamento, nas vozes e nos
movimentos dos personagens: alguns, envolvidos em uma disputa pelo poder;
outros, lutando pela utopia. O protagonista, Cesar Catilina (Adam Driver), é um
arquiteto que ganhou o Prêmio Nobel (de Química, da Paz, de Literatura?) graças
à descoberta de um material miraculoso conhecido como
megalon. Ele vive
em uma Nova York do futuro, chamada intermitentemente de Nova Roma, e imagina o
futuro da cidade, de sua nação e da espécie como um paraíso alcançado por meio
do desenho urbano. O prefeito Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito) e outros
poderes se opõem, no entanto, à visão de Cesar de um futuro compartilhado e
sustentável que Cesar poderia construir à base do
megalon.
A intriga implícita nesta sinopse
vai e vem da atenção de Coppola, mas durante grande parte do filme permanece um
tom de comédia shakespeariana. A certa altura, a filha do prefeito da oposição,
Julia (Nathalie Emmanuel), começa a trabalhar com Cesar e a se apaixonar por ele.
Durante o primeiro encontro, a câmera dança com eles enquanto se movimentam
pelo escritório, brigando sem fúria ou raiva; desafiando um ao outro a se
gostarem. Coppola funde a antiguidade romana que o inspira — daí os nomes
baseados na conspiração de Lucio Catilina contra Cicero — com a modernidade de
um mundo auxiliado pela tecnologia e cria assim uma imagem retrofuturista; ou
seja, a
Megalópolis se parece com o que no passado imaginavam que seria
o presente. O tom shakespeariano ajuda a construir uma fantasia nesse ambiente
improvável, não por falta de jeito, mas por vontade. Coppola não é Stanley
Kubrick prevendo o futuro sob assessoria científica, mas sim um sonhador que
cria uma fábula sobre a política contemporânea.
A antiguidade da
Megalópolis
— ou pelo menos do imaginário por trás dela — aparece mais claramente nas
sombras, nas cores e nos espaços. A romântica luz amarela de outro filme de
Coppola sobre um visionário industrial,
Tucker: um homem e seu sonho
(1988), retorna junto com as nuvens aceleradas e os ruídos persistentes
produzidos por objetos em
O selvagem da motocicleta (1983); o excesso de
estilo é de
Drácula de Bram Stoker (1992).
Observo o que foi dito acima sem me
queixar de um todo. Para o seu primeiro filme de ficção científica, Coppola
recolhe os aspectos que antes aproximaram a sua filmografia do expressionismo
alemão —
Metrópolis (1927) incluído, claro —, mas cai num paradoxo: o
cinema mudo ainda é considerado futurista pela sua expressão de imagens puras —
embora haja enredo, a sofisticação concentra-se no visível; no entanto, recriar
fielmente seu estilo é um retrocesso. Isto não ignora a poesia de certas
imagens de
Megalópolis, como aquela em que uma nuvem com dedos rouba a
lua, ou as estátuas moribundas que expressam a decadência às margens da Nova
Roma. Mas por mais inspirados que estes planos possam ser, não pertencem ao
nosso tempo.
A última década, mais ou menos,
embarcou num caminho de espetáculo e de banalização da imagem. Na televisão, na
rua, nos telefones, vemos uma abundância não de objetos, mas de imagens sobre
eles. Jean-Luc Godard previu isso graças à sua obsessão pelo simbólico, e ele
morreu representando o mundo sem personagens e sem enredo; suas montagens
captaram a tempestade de significantes que nos conduz — ou não — a uma
infinidade de significados. Desde a década de 1980, o cinema de Godard —
produzido e distribuído algumas vezes por Coppola — foi relevante para o nosso
tempo, que ele apenas começava a conhecer.
Megalópolis aspira a algo
semelhante, mas não entende o presente como Godard ou os cineastas mais jovens,
embora Coppola não pareça alheio às suas preocupações. Em entrevistas, o antigo
diretor já disse que as formas do videogame poderiam apontar para o futuro do cinema
mas, na verdade,
Megalópolis volta ao passado. Uma cena em que Cesar
conversa com um personagem fora da tela interpretado por um ator é de pouca
utilidade; a provocação remete mais ao teatro do que à interatividade do
Playstation 5.
É possível argumentar de modo
semelhante contra a nostalgia expressionista de
O selvagem da motocicleta,
mas o filme deslumbra por algo mais do que o seu lugar de origem (o cinema de
Hollywood) e a sua época de lançamento (os anos oitenta, quando o cinema
industrial começou a detestar o risco).
Megalópolis coincide nesses
aspectos, mas sua produção é mais incoerente, antiquada e, sobretudo, ingênua (até
imita o cinema mudo).
Metrópolis, de Fritz Lang, era uma parábola cristã
sobre o mundo moderno e pecaminoso; Megalópolis é outra ao propor uma política
que sirva ao povo como solução para o populismo neofascista e sua manipulação
das massas. Não é que Coppola esteja equivocado num plano ideal; só que a
receita dele, mais romântica do que nunca, é baseada no amor. Hoje, quando as
intermináveis
imagens das
atrocidades em Gaza ou no L
íbano acabam por revelar a impot
ência das imagens para deter o massacre; quando o amor dos ativistas
de todo o mundo enfrenta cotidianamente a derrota, j
á n
ão podemos acreditar que a bondade seja suficiente para parar o
horror. É preciso algo mais, desde a tática até uma certa dureza.
Apesar de tudo, Coppola insiste
numa metáfora encantada: Cesar, um artista, pode parar o tempo; quando seu
poder começa a falhar, o amor de Julia o restaura. É claro que
Megalópolis
nos fala de visionários, artistas e da sua capacidade de moldar a História, mas
o capitalismo tardio resiste à imaginação e ao afeto: explora-nos (e teremos de
o explorar). Coppola já não existe para esses tempos, mas isso não significa
que deva ser ignorado. Seus conselhos abrigam prudência e, embora suas formas
não contribuam para o futuro, a estreia de
Megalópolis é um
acontecimento. Ninguém hoje paga 120 milhões de dólares para partilhar a sua
utopia com públicos de todo o mundo. A própria existência do filme é um ato
amoroso de insurgência que encontra no capital uma oportunidade de ir além das
convenções da indústria: o cinema pode e talvez deva perder dinheiro porque não
é uma arte para os tíbios, mas para revolucionários.
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