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Marx Ernst, 1934. Foto: Man Ray |
Quando Max Ernst (Brühl, 1891 –
Paris, 1976) era um menino de cachos loiros e olhos celestiais, seu pai —
professor de uma escola para surdos e pintor por hobby — fez um retrato dele em
tons melosos de azul, rosa e dourado, e intitulou de
O menino Jesus,
doce carpinteiro... ou algo parecido. Max pode ter ficado tocado por
aquele tipo de pintura kitsch à qual anos mais tarde prestaria irônicas homenagens
em algumas de suas obras (por exemplo, a pintura a óleo que mostra a Virgem
Maria dando umas palmadas no menino Jesus), mas detestava aquele retrato
pintado por o pai, em quem se via como um monstrinho de doçura, ou seja, um
exemplo perfeito do que Freud teria rotulado de pervertido polimorfo. E assim
que terminou os estudos básicos, em 1918, deixou o retrato acumular poeira em
algum sótão escuro e se dedicou a estudar filosofia na Universidade de Bonn, a
exercitar sua insônia lendo Nietzsche ou Baudelaire e a imitar as pinceladas
vertiginosas de Van Gogh ou as já cubistas
Les demoiselles d'Avignon de
Pablo Picasso.
Depois de ter servido quatro anos
como atirador na Primeira Guerra Mundial e de ter visitado Paris e admirado as
obras dos pintores cubistas ou expressionistas, em Colônia, por volta de 1919,
publicou com Hans Arp uma revista ligada ao movimento culturalmente subversivo
que Tristan Tzara havia iniciado em Zurique e que entusiasmava ou irritava os
intelectuais europeus: o dadaísmo.
Em 1920 realizou duas exposições
sucessivas em Colônia. A segunda, instalada no pátio envidraçado de uma
cervejaria e entretida por uma jovem vestida de freira recitando poemas
licenciosos, causou o tão esperado primeiro escândalo “dadaísta” na carreira artística
do jovem Max: janelas quebradas pela indignada clientela do local, irrupção da
polícia e breve permanência na prisão dos jovens terroristas culturais. Nesse
mesmo ano e em Paris conheceu os artistas Picasso e Francis Picabia, e fez
amizade com os poetas André Breton, Paul Éluard e Louis Aragon, que já estavam
em processo de invenção do surrealismo.
Daí até à sua morte, Max
pertencerá à história do movimento surrealista e transcenderá a história da
arte mundial com uma vasta e variada obra sempre aberta a uma simbologia
fantástica e onírica tornada visível com uma técnica que imita o “automatismo
psíquico”. Suas pinturas, desenhos, gravuras e colagens são sonhos e pesadelos
deliberados “encenados”, ou seja: na tela ou na página.
As pinturas a óleo de Ernst (o freudiano
Oedipus Rex, a espetacular e trágica
Europa após a chuva, o
chocante
O olho do silêncio etc.) são delírios premeditados. Não nascem
do subconsciente, mas sim o tornam visível, colocam-no na pintura como no palco
de um teatro ou na tela de um cinema, mas não costumam revolucionar a técnica
pictórica. As inovações técnicas de Ernst encontram-se na sua obra gráfica: a
frottage,
que deriva daquilo que Gaston Bachelard, ou Roland Barthes, ou Roger Caillois
talvez chamariam de “a imaginação da matéria” e são traçados em papéis
esfregados nas texturas de diversas superfícies; e, sobretudo, as “histórias
gráficas” conseguidas através da colagem: uma “ars combinatoria” e uma
narrativa que utiliza —recombinando-os — elementos retirados de ilustrações de
folhetins, romances populares e revistas do final do século XIX.
Rimbaud escrevera: “Acostumava-me
à mera alucinação: via uma mesquita em vez de uma fábrica, uma escola de
tambores tocados por anjos, carreteis nas rotas do céu, um salão no fundo de um
lago; um título de vaudeville erguia seus espantos diante de mim.” Esta ideia
de “arbitrário”
colocada em relação de elementos visuais muito
diferentes, previamente não relacionados mas ordenados num novo sentido visual,
sustenta grande parte das obras literárias dos surrealistas que já faziam
colagens literárias segundo a proposta do poeta Paul Reverdy: que a imagem
verbal fosse uma criação não nascida de uma comparação, mas do encontro de duas
imagens muito distantes e até opostas.
Enquanto os papéis ou objetos
colados por Georges Braque e Picasso nas suas pinturas (que, claro, terão
influenciado Ernst) eram acrescentados com uma função plástica primordial, a
colagem de Ernst é uma composição de fragmentos de gravuras reunidos e colados
numa nova “cena” para produzir uma
imagem inusitada no sentido surrealista,
ou seja: um encontro insólito que provoca um efeito emocional em quem o vê, uma
“visão” onírica.
A técnica da colagem teve boa
sorte antes e depois de Ernst em outras artes e até na literatura: em algumas
obras musicais de Ives, em alguns poemas de Blaise Cendrars e Guillaume Apollinaire,
nos romances de John Dos Passos, em
Ulysses (romance?) de Joyce, no
cinema de Buñuel... E diríamos que a realidade heteróclita que todos vivemos cotidianamente
na ordem/caos das cidades é uma imensa colagem viva, uma folhetinesca HQ, uma sonho
e às vezes pesadelo que, à maneira de Max Ernst, combinam horror com ironia, ou
vice-versa.
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