Marginália para Maria Gabriela Llansol

Por Eduardo Galeno
 
 
“‘Vinde ler’ – diz Ana aos objectos…”
M. G. Llansol, Um beijo dado mais tarde
 
“Idade Média: quando ler um texto era comentá-lo…”
M. G. Llansol, Herbais, 26 de julho, 1981


Llansol em Herbais, Bélgica


 
 
Em Llansol, a poesia está em constante conversa com a prosa. Mas não chega a ser hibridismo. Não sei do que se trata propriamente, mas existe. A poesia como derramamento generalizado, não misto. Não forma, mas pureza. Os gêneros se fundem dentro do que ela coloca no estilo (no que ele conduz de completamente sinestésico, mas (i)limitado pela geometria, por um pensamento de corpo lógico).
 
Spinoza diz, na parte XXXII das definições das afecções de sua Ética, sobre o desejo: enquanto desiderium:
 
“O desejo frustrado é o desejo ou apetite de possuir uma coisa, desejo que é mantido pela recordação dessa coisa e, ao mesmo tempo, entravado pela recordação de outras coisas que excluem a existência da coisa desejada.”
 
Nessas palavras, se o que tem de significativo reside em perfazer um caminho matemático para a rememoração, elas poderão adquirir concretude apenas se forem deixadas ao espaçamento do poema. Do poema: oração que uma poeta transmite. Um poema, no entanto, que move o mundo quando a imagem é intensa, pesada e linear. A imagem é seu princípio para que ele próprio a transgrida. É por esse fato que Llansol não os deixa — a imagem, o poema — sozinhos: a literatura precisa rasgar sua casca para fugir e ressurgir num outro lugar. A literatura llansoliana fica sendo, assim, uma lei leve: busca incessante para libertar o seu desejo enquanto pastora da palavra.
 
Mas sejamos justos. A interpretação acerca de Spinoza que ela carregava durante a vida, afinal, não é descodificação. Ela não quer destrinchar Spinoza, mas fazer algo à parte, fragmentar. Há um espécime de Spinoza em constante reconfiguração no jogar dos dados da literatura de Llansol. No momento em que plaina, não se refere. É turvo. Isso se torna diálogo, comunidade, voz plural.
 
O momento da escrita é o momento da coragem frente a catástrofe. A realidade perdura, bem dizem, e tem duração. Mas logo logo é desautorizada e se torna fulgor. Daí incorpora, comove, remove, enfim, sabe que nada a detém. Esse é o poder da literatura.
 
Lembremos da estética luminar em Rimbaud, da ebriedade, do desregramento sensorial; da chama heraclitiana, “quem se esquivará do fogo que não se apaga?”, que abala os muros da língua grega. Façamos um movimento de repetição da memória para encontrarmos o hálito de Llansol. Um hábito, um costume: a instabilidade que espreita a fala sincrônica de todos os tempos em Maria Gabriela.
 
A razão do geômetra e a da poeta se encontram. Ai de nós que não compreendemos suas sutilezas.
 
1.
 
“... a casa era-lhe estranha, havia divisões onde não se sentira bem…”
 
Esse trecho aparece no começo do ensaio sobre Um beijo dado mais tarde, que saiu pelo livro O Senhor de Herbais. Possivelmente, há um domínio triangular na chave de leitura do romance. Llansol predica a casa de qualidades que um animal tem: ela a anima. A casa é o verdadeiro sujeito da história. Lembro, quando o li, que Um beijo dado mais tarde trazia a ideia de descontinuidade narrativa. Como se eu estivesse aprendendo a ler novamente o português.
 
2.
 
“... o imaginário repusera a função em que a realidade fora falha.”
 
Ela, ao querer bifurcar imagem e real (ou acelerar sua bifurcação), traz para si dinamismo. Mas a dinâmica nos ensina a aparatar, desviando do ciclo do instrumento e refazendo a partir da textualidade: “por que necessita da intrepidez da rapariga que temia a impostura da língua?”. A literatura é o espaço que nem sempre cabe sentido, complemento, extensão. Mas a literatura não existe; o mundo e as técnicas de exposição dele, sim.
 
3.
 
“Eusébia tornou-se naturalmente o meu interlocutor realista.”
 
E aqui ela traduz o que o eco do realismo pôde dar. Eusébia, destinatário da carta de Llansol, é a partição, ou seja, figura na qual a autora apresenta o meio da escrita por uma contraparte. Porém, há inversão: ela própria [Eusébia] é escrita.
 
4.
 
“Mais uma vez, lamentei a ausência de Magritte. Só ele teria sido capaz de pintar uns frescos nas paredes do tribunal com leitões e vacas leiteiras, com a auspiciosa legenda ‘ceci est une rose’.”
 
Observem que ela procura o índice do invisível, provavelmente querendo partir, dar crash à previsibilidade e subsumir, efetivar o cálculo geometral:
 
“O quadro, certamente, está em meu olho. Mas eu, eu estou no quadro”, dizia Lacan no seminário 11. A resposta de Llansol:
 
“Compreendi que a Nuvem Pairando que me assiste ‘era a única cúpula do inverno’.”
 
Convertida à esfera do anteparo, a Coisa não toca no olho, mas carrega tensão. Os objetos em Llansol estão condicionados na postura da linguagem, isto é, sofrem ‘amplificação’ pelo trompe-l'oeil. Ela tem a necessidade de voltar e fazer diferente: não representando (narrando, objetivamente, temas; maximizando uma sintaxe), mas avançando, liberando seu impulso rumo ao silêncio, que é a única ponte encontrada para a sentença da teoria do conhecimento kantiana: 
 
“A maior parte dos movimentos internos de uma palavra são silenciosos.”
 
e
 
“E, aí, eu vi meu irmão pendurado, palavra indizível que eu não podia sequer olhar, e muito menos pronunciar durante o crepúsculo.”
 
De modo que: a casa se equiparou ao nível dos sonhos: ela desmorona se percebida à revelia da vigília. O onirismo dos fulgores é a chancela para Llansol demonstrar o hiper-real. A intransigência contra o realismo desrealiza.
 
5.
 
Ranger, c’est justement ça, diz-me ele na sua língua. Ce n’est justement pas ça, respondo-lhe eu na minha. Na dele, era arrumar, colocar no seu lugar, pôr em ordem, arranjar, dispor, ordenar. Na minha, era fazer barulho, distrair, criar fricção, incomodar, desordenar.”
 
Eu quero dizer que a língua se derrete, porém é envolvida num pano em que a mimetização é submetida à força descontrolada. Isso poderá supor que a razão de ser da própria língua — e aqui pulamos qualquer função política dela, como a nacionalista —, é deslizar para sua própria indagação.
 
Exempli gratia: retornemos ao sublime. Longino induziu a epiphaneia (aparição), motivo que atua como phantasia, na fabricação de imagens. Minha visão é que Llansol lança mão da mimesis (aristotélica) como tal e a transforma num gesto de exagero. Nesses termos, a poética llansoliana é mais mítica que linguística, embora não haja profunda separação entre as duas facetas.
 
6.
 
“A casa de Herbais não lhe estava a ensinar o que me havia ensinado.”
 
A parte do apoio da casa tem a ver com intimidade ou estranheza. A casa para x é Heimische (familiar), enquanto para y segue Unheimlich (estranho). Notamos ou a distância de Eusébia ou o pertencimento de Llansol.
 
7.
 
“O mundo é puramente estético. Mas raramente é santo.”
 
No auge do ensaio, ela acaba travando uma batalha. Disse uma vez, nos seus diários, que as montagens das figuras funcionam pelos arquétipos a-históricos, balançando o que é puramente pessoal para dar protagonismo aos nós construtivos (módulos, contornos e delineamentos). A santidade — perfeitamente alinhada ao caso da travessia do amor beguino de Hadewijch —, de maneira instantânea, abre e engata o verbo na alma, conectando o tropo do convento ao prolongamento do montão das ‘formas impulsivas’ que rastejam pela escrita poética dessa mulher. A santa Hadewijch pode ser uma frase, uma sensação, um pensamento, enfim, a unidade do Ser. Ou melhor: a santidade em Hadewijch.
 
“Porque a literatura não mata, envenena.”
 
“São desenhos das figuras da natureza, seu traçado por escrita desenhada.”
 
/// [+++]
 
Écfrase
 
Aossê, anagrama, está a sete passos de Llansol. Esconde, no interior do chapéu, dois exemplares da Poesia. Seu olhar geminiano encontra a máquina de escrever da conterrânea e ele, como descendente de dom Sebastião, quebrou a expectativa vendo que se transformara num hermafrodita.
 
O deleite da imagem é uma voz inaudita recitando “‘sperai!’ enquanto Aossê suspende o céu para que as nuvens não caiam na cabeça dos habitantes de Herbais.

  

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