Em Llansol, a poesia está em constante conversa com a prosa.
Mas não chega a ser hibridismo. Não sei do que se trata propriamente, mas
existe. A poesia como derramamento generalizado, não misto. Não forma, mas
pureza. Os gêneros se fundem dentro do que ela coloca no estilo (no que ele
conduz de completamente sinestésico, mas (i)limitado pela geometria, por um
pensamento de
corpo lógico).
Spinoza diz, na parte XXXII das definições das afecções de
sua
Ética, sobre o desejo: enquanto
desiderium:
“O
desejo frustrado é o desejo ou apetite de possuir
uma coisa, desejo que é mantido pela recordação dessa coisa e, ao mesmo tempo,
entravado pela recordação de outras coisas que excluem a existência da coisa
desejada.”
Nessas palavras, se o que tem de significativo reside em
perfazer um caminho matemático para a rememoração, elas poderão adquirir
concretude apenas se forem deixadas ao espaçamento do poema. Do
poema:
oração que uma poeta transmite. Um poema, no entanto, que move o mundo quando a
imagem é intensa, pesada e linear. A imagem é seu princípio para que ele
próprio a transgrida. É por esse fato que Llansol não os deixa — a imagem, o
poema — sozinhos: a literatura precisa rasgar sua casca para fugir e ressurgir
num outro lugar. A literatura llansoliana fica sendo, assim, uma lei leve:
busca incessante para libertar o seu desejo enquanto pastora da palavra.
Mas sejamos justos. A interpretação acerca de Spinoza que
ela carregava durante a vida, afinal, não é descodificação. Ela não quer
destrinchar Spinoza, mas fazer algo à parte, fragmentar. Há um espécime de
Spinoza em constante reconfiguração no jogar dos dados da literatura de
Llansol. No momento em que plaina, não se
refere. É turvo. Isso se torna
diálogo,
comunidade, voz plural.
O momento da escrita é o momento da coragem frente a
catástrofe. A realidade perdura, bem dizem, e tem duração. Mas logo logo é
desautorizada e se torna fulgor. Daí incorpora, comove, remove, enfim, sabe que
nada a detém. Esse é o poder da literatura.
Lembremos da estética luminar em Rimbaud, da ebriedade, do
desregramento sensorial; da chama heraclitiana, “quem se esquivará do fogo que
não se apaga?”, que abala os muros da língua grega. Façamos um movimento de
repetição da memória para encontrarmos o hálito de Llansol. Um hábito, um
costume: a instabilidade que espreita a fala sincrônica de todos os tempos em
Maria Gabriela.
A razão do geômetra e a da poeta se encontram. Ai de nós que
não compreendemos suas sutilezas.
1.
“... a casa era-lhe estranha, havia divisões onde não se
sentira bem…”
Esse trecho aparece no começo do ensaio sobre
Um beijo
dado mais tarde, que saiu pelo livro
O Senhor de Herbais.
Possivelmente, há um domínio triangular na chave de leitura do romance. Llansol
predica a casa de qualidades que um animal tem: ela a
anima. A casa é o
verdadeiro sujeito da história. Lembro, quando o li, que
Um beijo dado mais
tarde trazia a ideia de descontinuidade narrativa. Como se eu estivesse
aprendendo a ler novamente o português.
2.
“... o imaginário repusera a função em que a realidade fora
falha.”
Ela, ao querer bifurcar imagem e real (ou acelerar sua
bifurcação), traz para si dinamismo. Mas a dinâmica nos ensina a aparatar,
desviando do ciclo do instrumento e refazendo a partir da textualidade: “por
que necessita da intrepidez da rapariga que temia a impostura da língua?”. A
literatura é o espaço que nem sempre cabe sentido, complemento, extensão. Mas a
literatura não existe; o mundo e as técnicas de exposição dele, sim.
3.
“Eusébia tornou-se
naturalmente o meu interlocutor
realista.”
E aqui ela traduz o que o eco do realismo pôde dar. Eusébia,
destinatário da carta de Llansol, é a
partição, ou seja, figura na qual
a autora apresenta o meio da escrita por uma contraparte. Porém, há inversão:
ela própria [Eusébia] é
escrita.
4.
“Mais uma vez, lamentei a ausência de Magritte. Só ele teria
sido capaz de pintar uns frescos nas paredes do tribunal com leitões e vacas
leiteiras, com a auspiciosa legenda ‘
ceci est une rose’.”
Observem que ela procura o índice do invisível,
provavelmente querendo partir, dar
crash à previsibilidade e subsumir,
efetivar o cálculo geometral:
“O quadro, certamente, está em meu olho. Mas eu, eu estou no
quadro”, dizia Lacan no seminário 11. A resposta de Llansol:
“Compreendi que a Nuvem Pairando que me assiste ‘era a única
cúpula do inverno’.”
Convertida à esfera do anteparo, a
Coisa não toca no
olho, mas carrega tensão. Os objetos em Llansol estão condicionados na postura
da linguagem, isto é, sofrem ‘amplificação’ pelo
trompe-l'oeil. Ela tem
a necessidade de voltar e fazer diferente: não representando (narrando,
objetivamente, temas; maximizando uma sintaxe), mas
avançando, liberando
seu impulso rumo ao silêncio, que é a única ponte encontrada para a sentença da
teoria do conhecimento kantiana:
“A maior parte dos movimentos internos de uma palavra são
silenciosos.”
e
“E, aí, eu vi meu irmão pendurado, palavra indizível que eu
não podia sequer olhar, e muito menos pronunciar durante o crepúsculo.”
De modo que: a casa se equiparou ao nível dos sonhos: ela
desmorona se percebida à revelia da vigília. O onirismo dos fulgores é a
chancela para Llansol demonstrar o hiper-real. A intransigência contra o
realismo desrealiza.
5.
“
Ranger, c’est justement ça, diz-me ele na sua
língua.
Ce n’est justement pas ça, respondo-lhe eu na minha. Na dele,
era arrumar, colocar no seu lugar, pôr em ordem, arranjar, dispor, ordenar. Na
minha, era fazer barulho, distrair, criar fricção, incomodar, desordenar.”
Eu quero dizer que a língua se derrete, porém é envolvida
num pano em que a mimetização é submetida à força descontrolada. Isso poderá
supor que a razão de ser da própria língua — e aqui pulamos qualquer função
política dela, como a nacionalista —, é deslizar para sua própria indagação.
Exempli gratia: retornemos ao sublime. Longino
induziu a
epiphaneia (aparição), motivo que atua como
phantasia,
na fabricação de imagens. Minha visão é que Llansol lança mão da
mimesis
(aristotélica) como tal e a transforma num gesto de exagero. Nesses termos, a
poética llansoliana é mais mítica que linguística, embora não haja profunda
separação entre as duas facetas.
6.
“A casa de Herbais não lhe estava a ensinar o que me havia
ensinado.”
A parte do apoio da casa tem a ver com intimidade ou
estranheza. A casa para x é
Heimische (familiar), enquanto para y segue
Unheimlich
(estranho). Notamos ou a distância de Eusébia ou o pertencimento de Llansol.
7.
“O mundo é puramente estético. Mas raramente é santo.”
No auge do ensaio, ela acaba travando uma batalha. Disse uma
vez, nos seus diários, que as montagens das figuras funcionam pelos arquétipos
a-históricos, balançando o que é puramente pessoal para dar protagonismo aos
nós construtivos (módulos, contornos e delineamentos). A santidade —
perfeitamente alinhada ao caso da travessia do amor beguino de Hadewijch —, de
maneira instantânea, abre e engata o verbo na alma, conectando o tropo do
convento ao prolongamento do montão das ‘formas impulsivas’ que rastejam pela
escrita poética dessa mulher. A santa Hadewijch pode ser uma frase, uma
sensação, um pensamento, enfim, a unidade do Ser. Ou melhor: a santidade em
Hadewijch.
“Porque a literatura não mata, envenena.”
“São desenhos das figuras da natureza, seu traçado por
escrita desenhada.”
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Écfrase
Aossê, anagrama, está a sete passos de Llansol. Esconde, no
interior do chapéu, dois exemplares da Poesia. Seu olhar geminiano encontra a
máquina de escrever da conterrânea e ele, como descendente de dom Sebastião,
quebrou a expectativa vendo que se transformara num hermafrodita.
O deleite da imagem é uma voz inaudita recitando “‘
sperai!’
enquanto Aossê suspende o céu para que as nuvens não caiam na cabeça dos
habitantes de Herbais.
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