NESTE MOMENTO
As pessoas incertas compelem-me.
Elas temem
O Às de Espadas. Elas temem
O amor espontâneo, voltam costas à
cornija,
Encantadoramente decididas. E não
confiam
No fogo-de-artifício junto ao
lago, primeiro o aparato,
Depois as luzes coloridas, subindo
no céu.
Cautelosas, hesitantes, cheias de
dúvida, cobiçosas
Consomem o César à proa, no seu
regresso,
Preso à pedra do seu acto e da sua
função.
Enquanto a charanga rebenta
cintilante sobre a água,
Elas permanecem na multidão,
delineando a margem,
Cientes da água a Seus pés. Elas
sabem. Os seus olhos
São assombrados pela água.
Elas perturbam-me, compelem-me.
Não é verdade
Que “nenhum homem é feliz”, mas
não é esse
O sentido que te guia. Se somos
Inacabados (e somos, a não ser que
a esperança seja um sonho mau),
Tu és preciso. Puxas a minha manga
Antes de eu falar, com uma amizade
de sombra,
E lembro-me que nós, os que se
movem,
Somos movidos pelas nuvens que
enegrecem a meia-noite.
UMA CRIANÇA E SUA MÃE GRÁVIDA
Aos quatro anos a Natureza é
imensa,
Misteriosa e submarina. Mesmo
Uma criança da cidade sabe isto,
escutando o rumor
Do metro debaixo do solo. Entre a
grelha de ventilação,
Deixando cair um
penny, ela
aprende todas as perdas,
O irrecuperável centavo do
destino,
E agora o mais recente dos
mistérios
Confronta o seu olhar inocente e
indagador —
A mãe volumosa e absorta,
Fixada no vazio além do seu rosto,
deste filho esquecida,
De suas birras, seu encanto, a sua
hora de dormir, o seu leite quente,
Tão breve quanto a noite será
demasiado escura, a primavera
Demasiado tarde, o desejo um
estranho, e o tempo tão veloz;
Esta primeira estranheza é coisa
gradual
(Sua mãe outrora tão esbelta,
agora indisposta, estranha!
O pai, imponente figura, foi o
causador: que façanha!),
Explicada cautelosamente, o medo a
custo calado,
O ser dum outro ser, tornando-se
próximo e amado:
Todos os homens são inimigos: os
irmãos também
Uns aos outros fazem-se separar de
sua mãe!
Não há melhor exemplo que este
irmão por nascer
Para que sobre o seu exílio
materno possa aprender,
Medido pela distância entre si e o
céu,
Falado em duas vogais,
Eu
sou Eu.
1
O BALÉ DO QUINTO ANO
Onde as gaivotas dormitam ou costumam
voar
É um lugar de diferente trânsito.
Embora considere
A baía de pesca (onde as vejo
mergulhar, voltear
E planar puramente) um lugar que
enfraquece a vontade,
Levando meus olhos a cerrarem-se,
devendo estar abertos,
(Ardendo como lampiões,
tranquilamente, a noite inteira,
Assim o que estivesse presente poderia
ser conhecido),
As gaivotas, todavia, e o imaginar
Donde elas dormitam, formulado
Em rigorosa cor e sombra, a partir
do balanço
Lento de suas asas, e subitamente ajuntando-se,
Para cima, para baixo, o arabesco
da descida,
É um antigo gesto promulgado, o
meu fabuloso intento
Quando patinava, receando a
polícia, aos cinco anos de idade,
Num pôr-do-sol invernoso, triste e
enregelado,
Pouco ciente de pensamentos, mas
com idade suficiente para saber
Que graça tamanha, tão contida,
era a melhor fuga possível.
TRANQUILAMENTE CAMINHAMOS NESTE
DIA DE ABRIL
Tranquilamente caminhamos neste
dia de abril,
Poesia urbana um pouco por toda a
parte,
No parque sentam-se indigentes e
os que vivem de rendimentos,
Crianças aos gritos, o automóvel
Fugindo de nós, correndo para
longe,
Entre o operário e o milionário
Os números providenciam todas as
distâncias,
É agora mil novecentos e trinta e
sete,
Muitos dos que amamos já foram levados,
O que será de nós os dois
(Esta é a escola em que nos
instruímos…)
Além da fotografia e da memória?
(… que o tempo é o incêndio onde
nos consumimos.)
(Esta é a escola em que nos
instruímos …)
O que é o eu no seio desta chama?
O que sou hoje que era ontem,
Que tenha de sofrer e de novo
interpretar,
A teodiceia que escrevi nos tempos
de liceu
Repôs a vida inteira desde a
infância,
As crianças berrando tão
cintilantes enquanto correm
(Esta é a escola em que nos
instruímos …)
Arrebatadas por inteiro nos seus
jogos efémeros!
(… que o tempo é o incêndio onde
nos consumimos.)
Ávida, a urgência dessa chama
vacilante!
Onde está meu pai e Eleanor?
Não onde estão agora, estão mortos
há sete anos,
Mas aquilo que então eram?
Não
mais? Não mais?
De mil novecentos e quatorze ao
dia de hoje,
Bert Spira e Rhoda consumindo-se,
consumindo-se,
Não onde estão agora (onde estão
eles agora?)
Mas aquilo que eram então, belos,
ambos;
Cada minuto estoira na sala em
chamas,
O grande globo à volta do fogo
solar,
Afastando o trivial e o singular.
(Como todas as coisas palpitam!
Como todas as coisas fulguram!)
O que hoje sou que era então?
Possa a memória restaurar uma e
outra vez
A mais breve cor do mais breve
dia:
O tempo é a escola em que nos
instruímos,
O tempo é o incêndio onde nos
consumimos.
SOU UM LIVRO QUE NÃO ESCREVI,
SEQUER LI
Sou um livro que não escrevi,
sequer li,
Uma peça trágico-cómica onde
máscaras novas,
Deslumbrantes como armas, estalam
como raides,
Em cada vez renovadas, sempre que
alguém se prepara
Para o ataque, subitamente
desanimado e temeroso,
Como nos sonhos que fazem o medo
de dormir
O terror do amor, a profundeza impossível
de ultrapassar.
Como passaram as falsas verdades
dos anos de juventude!
Em alta velocidade, como comboios
que nunca pararam
Onde eu estava, esperando, de
parca ciência,
Quão pouco sabia, ou qual deles era
aquele a que devia subir
E cavalgá-lo até à esperança, ou
onde a verdadeira esperança chega.
Não escrevi mais do que li esse
livro que é
O ser que sou, meio oculto daquele
e de todos
Os que vêem dentro dum beijo
A repousante escuridão informe dum
abismo.
Como pude pensar que os breves
anos seriam suficientes
Para provar a realidade do amor
sem fim?
______
Delmore Schwartz, um poeta tão
abandonado nos dias que correm, nasceu em Brooklyn, Nova Iorque, a 8 de
dezembro de 1913. Filho de judeus, em casa onde se falava mais Yiddish que
inglês, teve uma infância (como o seu irmão, mais novo que este) marcada por
diversos distúrbios domésticos. Os incidentes, sem grande espanto, culminariam
no divórcio dos pais, por volta do seu nono ano de vida. A ruptura teria um
impacto profundo no pequeno Delmore, refugiando-se na leitura e adoptando uma
personalidade cada vez mais obsessiva. Seria uma marca que o tempo não apagaria,
estando na origem, anos depois, de uma das suas mais célebres composições:
In
Dreams Begin Responsabilities.
Vive ainda a adolescência quando o
pai falece. Inicia-se então uma longa luta pela totalidade da sua parte da herança,
defasada, entre outras peripécias, pelos actos pouco abonatórios dum certo
agente que mediara diversos negócios do pai no ramo do imobiliário. Nunca será verdadeiramente
bem-sucedido, apesar de ter prolongado por décadas a esperança em receber o que
era seu por direito.
Tendo já realizado algumas
experiências na área da escrita, decidiu seguir caminho pelo ramal artístico. Os
primeiros poemas, aliás, surgem numa antologia criada no seio escolar. Frequenta
as universidades de Columbia e Wisconsin até, por fim, conseguir o seu
bacharelato em Artes na universidade de Nova Iorque, em 1935. Posteriormente,
muda-se para Harvard, onde realiza algumas incursões académicas na área da
Filosofia, mas cedo decide regressar sem concluir qualquer curso.
Em 1937 contrai matrimónio com uma
mulher que trabalhava em crítica literária na
Partisan Review, uma
publicação que se revelaria importante na sua carreira. O dito texto antes
referido, inspirado no casamento desastroso dos seus pais, publicou-se pela
primeira vez nesse espaço. No ano seguinte, juntamente com outros textos e
poemas, será compilado no seu primeiro livro, que como título terá o mesmo que
o do célebre texto. Tinha apenas vinte e cinco anos, e o sucesso da primeira
obra será estrondoso. Um doce néctar agora experimentado, que mais tarde
revelar-se-á um veneno fatal. Lá chegaremos.
O primeiro livro foi suficiente
para merecer a melhor consideração e estima dos altos círculos de intelectuais
de Nova Iorque. O trabalho foi até elogiado por figuras tão proeminentes como
T. S. Eliot, Allen Tate ou Ezra Pound. Não sobrariam muitas dúvidas, à época,
que estaríamos perante um dos jovens mais talentosos e originais da sua
geração.
Em 1940 regressa a Harvard para
assumir um cargo de professor. Figura charmosa e carismática, obsessiva e
ansiosa, não dura muito na nova posição. O motivo que sempre indicou para a sua
desistência foi um constante sentimento de rejeição por parte do departamento
de Inglês pelo facto de possuir descendência judaica. A carreira no ensino,
porém, continuaria noutras paragens.
Nos anos seguintes, elevado pelo sucesso
precoce, Schwartz continuaria a produção de poemas e textos breves, alargando a
sua experimentação aos campos do ensaio e do teatro. Neste último,
destacaríamos
Shenandoah and Other Verse Plays, de 1941. Paralelamente, torna-se, a
partir de 1943, editor da revista antes referida, cargo que desempenhará por
mais de uma década, e também da conceituada
The New Republic, esta uma
experiência de menor duração. Nesse mesmo ano, de certa forma fatídico, o seu
casamento termina em divórcio. Ademais, um trabalho poético que havia merecido
toda a atenção e empenho é finalmente publicado. Para grande desilusão sua,
esse poema épico, denominado Genesis, origina diversas apreciações negativas.
Schwartz nutria secretas esperanças de conseguir um trabalho que permanecesse
cintilante e ínclito no imenso firmamento da Literatura Universal, uma obra
capaz de se imortalizar — como
The Waste Land, de Eliot. As suas
ambições, porém, saíram amplamente frustradas.
Em 1948 volta a contrair
matrimónio, desta vez com a romancista Elizabeth Pollet. Porém, o desfecho
seria idêntico ao do casamento anterior. Edita, entretanto,
The World Is a
Wedding, uma colecção de textos que se distingue pelo tom satírico.
A produção criativa mantinha-se de
modo algo regular e o respeito dos seus pares permanecia intacto. Delmore vai
expandindo os seus dotes de bom conversador, tornando memoráveis os encontros
com amigos mais chegados, donde nasciam conversas pautadas pela mais fina inteligência,
sarcasmo e humor, mantidas num café emblemático de Nova Iorque, baluarte da
boémia da época. Em 1950 edita um novo livro de poesia:
Vaudeville for a
Princess and Other Poems.
Cerca de nove anos depois, com a
edição de Summer Knowledge, outro dos seus mais emblemáticos trabalhos, o
reconhecimento do genioso talento adquire uma nova página: o prémio Bollingen,
galardão que premeia autores pelo conjunto da sua obra. Tornou-se, assim, o
mais jovem de sempre a receber tamanha honraria.
Os problemas de saúde e os
excessos começaram a cobrar uma factura algo pesada no autor, nomeadamente um
alcoolismo ameaçando tornar-se crónico e uma doença do foro mental. Em 1961
ainda edita
Successful Love and Other Stories, mas a sua trajectória
estava efectivamente numa linha descendente. Os desequilíbrios de saúde e de adição
tornam-se mais frequentes, e o autor vive os seus últimos anos numa reclusão
cada vez maior. A escrita havia-se tornado mais vaga, mais abstrata, e os
sucessos de outrora não voltaram a repetir-se, não obstante a boa reputação que
ainda mantinha no meio, bem como o respeito pelo trabalho produzido. Em parte
por culpa do seu declínio cognitivo, vários rumores circulavam sobre acessos de
fúria motivados pela inveja que lhe fermentava ao verificar o sucesso de outros
autores.
Com uma vida pública já nula, este
outrora grande conversador e homem das Letras morre com apenas cinquenta e dois
anos de idade, vítima de ataque cardíaco. Decorria o verão de 1966. Devido ao
corte que efectuara com todos os relacionamentos, o seu corpo, que tombara
inerte no quarto do famoso Chelsea Hotel, em Nova Iorque, permaneceu dois dias
na morgue sem que ninguém chegasse a identificá-lo.
Apesar da atribulação dos últimos
anos, a notícia da morte de Delmore Schwartz desencadeou diversas reacções
respeitosas. Nos tempos próximos, a sua memória e o seu trabalho seriam alvo de
variadas homenagens por parte de outros artistas, tanto da literatura como da
música. As mais célebres, decerto, terão sido elaboradas por Lou Reed, seu
aluno na universidade de Syracuse, e Saul Bellow, no romance que lhe valeu um
Pulitzer (
Humboldt's Gift).
Schwartz não foi autor de obra
vasta, tendo sido editados, postumamente, quase tantos títulos quanto aqueles
que em vida publicou. Porém, a sua voz criou impacto logo no primeiro momento
em que se fez ouvir. Autor de cariz modernista, trouxe frescura ao género ao
explorar temas ainda algo obscuros de modo inovador, numa escrita segura e
sustentada. Para tal, valeu-se do seu próprio meio, um judeu americano de
classe média, cujas matizes invulgares soube pintar de modo claro e também
audaz. Delmore apresentava-se como a primeira geração de judeus já nascidos em
território americano, nova-iorquino por direito nativo, mas com toda uma
herança milenar atrás de si, plena de preceitos e rituais muito próprios. A sua
voz foi a de uma geração inteira, atravessada pelos turbulentos anos da Grande
Depressão, que assistiu na primeira fila à decadência do sonho americano, a
ilusão que tanto havia alimentado as esperanças dos seus pais.
A fase inicial da sua obra é,
assim, marcada por textos e poemas de cariz mais autobiográfico, com um perfume
levemente confessional. Já se denotava outras características que mais tarde
iriam maturar em pleno, como um pendor meditativo e filosófico bastante
apurado. Chama também à sua produção as peripécias da vida boémia, exposta numa
sátira dissimulada.
Um percurso de lembrança, ou
exercício de memória, que matura numa poesia de observação profunda de Homem,
Mundo e Tempo, o que inevitavelmente leva-nos ao campo da reflexão. O aspecto
filosófico de certas criações é, sem dúvida, o elemento mais importante a ter
em conta no conjunto da obra, atravessada pela passagem do tempo e a
consequente certeza da perda. Em adição, verifica-se o recorrer a figuras
históricas e mitológicas. Seguindo o curso evolutivo, como atrás permitimos
antever, a sua poesia foi-se manifestando mais abstrata, o que para algumas
apreciações poderá significar um princípio de surrealismo.
Poeta culto e, sublinhamos,
original, meditativo e amiúde melancólico, inteligente e satírico, Delmore
Schwartz marcou décadas do seu tempo, antes do declínio mental e criativo abater-se
sobre si. Cremos, porém, que laborou o suficiente para legar um conjunto
relevante e merecedor de conhecimento ou dum sempre agradável revisitar. Aqui
lhe deixamos o seu convite, estimado leitor.
Notas
* Seleção e versões a partir de Selected Poems, Summer Knowledge
(New Directions paperbook, 1967, 14ª reimpressão)
1 No original, “I am I” — o que
esclarece o exposto no verso anterior e a referência às duas vogais.
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