Cinco poemas de Delmore Schwartz

Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)

Delmore Schwartz. Foto: Jane Lougee


 
 
NESTE MOMENTO
 
As pessoas incertas compelem-me. Elas temem
O Às de Espadas. Elas temem
O amor espontâneo, voltam costas à cornija,
Encantadoramente decididas. E não confiam
No fogo-de-artifício junto ao lago, primeiro o aparato,
Depois as luzes coloridas, subindo no céu.
Cautelosas, hesitantes, cheias de dúvida, cobiçosas
Consomem o César à proa, no seu regresso,
Preso à pedra do seu acto e da sua função. 
Enquanto a charanga rebenta cintilante sobre a água,
Elas permanecem na multidão, delineando a margem,
Cientes da água a Seus pés. Elas sabem. Os seus olhos
São assombrados pela água.
 
Elas perturbam-me, compelem-me. Não é verdade
Que “nenhum homem é feliz”, mas não é esse
O sentido que te guia. Se somos
Inacabados (e somos, a não ser que a esperança seja um sonho mau),
Tu és preciso. Puxas a minha manga
Antes de eu falar, com uma amizade de sombra,
E lembro-me que nós, os que se movem,
Somos movidos pelas nuvens que enegrecem a meia-noite. 
 
 
UMA CRIANÇA E SUA MÃE GRÁVIDA
 
Aos quatro anos a Natureza é imensa,
Misteriosa e submarina. Mesmo
 
Uma criança da cidade sabe isto, escutando o rumor
Do metro debaixo do solo. Entre a grelha de ventilação,
 
Deixando cair um penny, ela aprende todas as perdas,
O irrecuperável centavo do destino,
 
E agora o mais recente dos mistérios
Confronta o seu olhar inocente e indagador —
 
A mãe volumosa e absorta,
Fixada no vazio além do seu rosto, deste filho esquecida,
 
De suas birras, seu encanto, a sua hora de dormir, o seu leite quente,
Tão breve quanto a noite será demasiado escura, a primavera
 
Demasiado tarde, o desejo um estranho, e o tempo tão veloz;
Esta primeira estranheza é coisa gradual
 
(Sua mãe outrora tão esbelta, agora indisposta, estranha!
O pai, imponente figura, foi o causador: que façanha!),
 
Explicada cautelosamente, o medo a custo calado,
O ser dum outro ser, tornando-se próximo e amado:
 
Todos os homens são inimigos: os irmãos também
Uns aos outros fazem-se separar de sua mãe! 
 
Não há melhor exemplo que este irmão por nascer
Para que sobre o seu exílio materno possa aprender,
 
Medido pela distância entre si e o céu,
Falado em duas vogais,
                                               Eu sou Eu.1
 
 
O BALÉ DO QUINTO ANO
 
Onde as gaivotas dormitam ou costumam voar
É um lugar de diferente trânsito. Embora considere
A baía de pesca (onde as vejo mergulhar, voltear
E planar puramente) um lugar que enfraquece a vontade,
Levando meus olhos a cerrarem-se, devendo estar abertos,
(Ardendo como lampiões, tranquilamente, a noite inteira,
Assim o que estivesse presente poderia ser conhecido),
As gaivotas, todavia, e o imaginar
Donde elas dormitam, formulado
Em rigorosa cor e sombra, a partir do balanço
Lento de suas asas, e subitamente ajuntando-se,
Para cima, para baixo, o arabesco da descida,
É um antigo gesto promulgado, o meu fabuloso intento
Quando patinava, receando a polícia, aos cinco anos de idade,
Num pôr-do-sol invernoso, triste e enregelado,
Pouco ciente de pensamentos, mas com idade suficiente para saber
Que graça tamanha, tão contida, era a melhor fuga possível. 
 
 
TRANQUILAMENTE CAMINHAMOS NESTE DIA DE ABRIL
 
Tranquilamente caminhamos neste dia de abril,
Poesia urbana um pouco por toda a parte,
No parque sentam-se indigentes e os que vivem de rendimentos,
Crianças aos gritos, o automóvel
Fugindo de nós, correndo para longe,
Entre o operário e o milionário
Os números providenciam todas as distâncias,
É agora mil novecentos e trinta e sete,
Muitos dos que amamos já foram levados,
O que será de nós os dois
(Esta é a escola em que nos instruímos…)
 Além da fotografia e da memória?
(… que o tempo é o incêndio onde nos consumimos.)
 
(Esta é a escola em que nos instruímos …)
O que é o eu no seio desta chama?
O que sou hoje que era ontem,
Que tenha de sofrer e de novo interpretar,
A teodiceia que escrevi nos tempos de liceu
Repôs a vida inteira desde a infância,
As crianças berrando tão cintilantes enquanto correm
(Esta é a escola em que nos instruímos …)
Arrebatadas por inteiro nos seus jogos efémeros!
(… que o tempo é o incêndio onde nos consumimos.)
 
Ávida, a urgência dessa chama vacilante!
Onde está meu pai e Eleanor?
Não onde estão agora, estão mortos há sete anos,
Mas aquilo que então eram?
                                                               Não mais? Não mais?
De mil novecentos e quatorze ao dia de hoje,
Bert Spira e Rhoda consumindo-se, consumindo-se,
Não onde estão agora (onde estão eles agora?)  
Mas aquilo que eram então, belos, ambos;
Cada minuto estoira na sala em chamas,
O grande globo à volta do fogo solar,
Afastando o trivial e o singular.
(Como todas as coisas palpitam! Como todas as coisas fulguram!)
O que hoje sou que era então?
Possa a memória restaurar uma e outra vez
A mais breve cor do mais breve dia:
O tempo é a escola em que nos instruímos,
O tempo é o incêndio onde nos consumimos.  
 
 
SOU UM LIVRO QUE NÃO ESCREVI, SEQUER LI
 
Sou um livro que não escrevi, sequer li,
Uma peça trágico-cómica onde máscaras novas,
Deslumbrantes como armas, estalam como raides,
Em cada vez renovadas, sempre que alguém se prepara
Para o ataque, subitamente desanimado e temeroso,
Como nos sonhos que fazem o medo de dormir
O terror do amor, a profundeza impossível de ultrapassar.
 
Como passaram as falsas verdades dos anos de juventude!
Em alta velocidade, como comboios que nunca pararam
Onde eu estava, esperando, de parca ciência,
Quão pouco sabia, ou qual deles era aquele a que devia subir
E cavalgá-lo até à esperança, ou onde a verdadeira esperança chega.
 
Não escrevi mais do que li esse livro que é
O ser que sou, meio oculto daquele e de todos
Os que vêem dentro dum beijo
A repousante escuridão informe dum abismo.
 
Como pude pensar que os breves anos seriam suficientes
Para provar a realidade do amor sem fim?
 
 
 
______
 
 
Delmore Schwartz, um poeta tão abandonado nos dias que correm, nasceu em Brooklyn, Nova Iorque, a 8 de dezembro de 1913. Filho de judeus, em casa onde se falava mais Yiddish que inglês, teve uma infância (como o seu irmão, mais novo que este) marcada por diversos distúrbios domésticos. Os incidentes, sem grande espanto, culminariam no divórcio dos pais, por volta do seu nono ano de vida. A ruptura teria um impacto profundo no pequeno Delmore, refugiando-se na leitura e adoptando uma personalidade cada vez mais obsessiva. Seria uma marca que o tempo não apagaria, estando na origem, anos depois, de uma das suas mais célebres composições: In Dreams Begin Responsabilities.
 
Vive ainda a adolescência quando o pai falece. Inicia-se então uma longa luta pela totalidade da sua parte da herança, defasada, entre outras peripécias, pelos actos pouco abonatórios dum certo agente que mediara diversos negócios do pai no ramo do imobiliário. Nunca será verdadeiramente bem-sucedido, apesar de ter prolongado por décadas a esperança em receber o que era seu por direito.
 
Tendo já realizado algumas experiências na área da escrita, decidiu seguir caminho pelo ramal artístico. Os primeiros poemas, aliás, surgem numa antologia criada no seio escolar. Frequenta as universidades de Columbia e Wisconsin até, por fim, conseguir o seu bacharelato em Artes na universidade de Nova Iorque, em 1935. Posteriormente, muda-se para Harvard, onde realiza algumas incursões académicas na área da Filosofia, mas cedo decide regressar sem concluir qualquer curso.
 
Em 1937 contrai matrimónio com uma mulher que trabalhava em crítica literária na Partisan Review, uma publicação que se revelaria importante na sua carreira. O dito texto antes referido, inspirado no casamento desastroso dos seus pais, publicou-se pela primeira vez nesse espaço. No ano seguinte, juntamente com outros textos e poemas, será compilado no seu primeiro livro, que como título terá o mesmo que o do célebre texto. Tinha apenas vinte e cinco anos, e o sucesso da primeira obra será estrondoso. Um doce néctar agora experimentado, que mais tarde revelar-se-á um veneno fatal. Lá chegaremos.
               
O primeiro livro foi suficiente para merecer a melhor consideração e estima dos altos círculos de intelectuais de Nova Iorque. O trabalho foi até elogiado por figuras tão proeminentes como T. S. Eliot, Allen Tate ou Ezra Pound. Não sobrariam muitas dúvidas, à época, que estaríamos perante um dos jovens mais talentosos e originais da sua geração.
 
Em 1940 regressa a Harvard para assumir um cargo de professor. Figura charmosa e carismática, obsessiva e ansiosa, não dura muito na nova posição. O motivo que sempre indicou para a sua desistência foi um constante sentimento de rejeição por parte do departamento de Inglês pelo facto de possuir descendência judaica. A carreira no ensino, porém, continuaria noutras paragens.
 
Nos anos seguintes, elevado pelo sucesso precoce, Schwartz continuaria a produção de poemas e textos breves, alargando a sua experimentação aos campos do ensaio e do teatro. Neste último, destacaríamos Shenandoah and Other Verse Plays, de 1941. Paralelamente, torna-se, a partir de 1943, editor da revista antes referida, cargo que desempenhará por mais de uma década, e também da conceituada The New Republic, esta uma experiência de menor duração. Nesse mesmo ano, de certa forma fatídico, o seu casamento termina em divórcio. Ademais, um trabalho poético que havia merecido toda a atenção e empenho é finalmente publicado. Para grande desilusão sua, esse poema épico, denominado Genesis, origina diversas apreciações negativas. Schwartz nutria secretas esperanças de conseguir um trabalho que permanecesse cintilante e ínclito no imenso firmamento da Literatura Universal, uma obra capaz de se imortalizar — como The Waste Land, de Eliot. As suas ambições, porém, saíram amplamente frustradas.
 
Em 1948 volta a contrair matrimónio, desta vez com a romancista Elizabeth Pollet. Porém, o desfecho seria idêntico ao do casamento anterior. Edita, entretanto, The World Is a Wedding, uma colecção de textos que se distingue pelo tom satírico.
  
A produção criativa mantinha-se de modo algo regular e o respeito dos seus pares permanecia intacto. Delmore vai expandindo os seus dotes de bom conversador, tornando memoráveis os encontros com amigos mais chegados, donde nasciam conversas pautadas pela mais fina inteligência, sarcasmo e humor, mantidas num café emblemático de Nova Iorque, baluarte da boémia da época. Em 1950 edita um novo livro de poesia: Vaudeville for a Princess and Other Poems.
 
Cerca de nove anos depois, com a edição de Summer Knowledge, outro dos seus mais emblemáticos trabalhos, o reconhecimento do genioso talento adquire uma nova página: o prémio Bollingen, galardão que premeia autores pelo conjunto da sua obra. Tornou-se, assim, o mais jovem de sempre a receber tamanha honraria.  
 
Os problemas de saúde e os excessos começaram a cobrar uma factura algo pesada no autor, nomeadamente um alcoolismo ameaçando tornar-se crónico e uma doença do foro mental. Em 1961 ainda edita Successful Love and Other Stories, mas a sua trajectória estava efectivamente numa linha descendente. Os desequilíbrios de saúde e de adição tornam-se mais frequentes, e o autor vive os seus últimos anos numa reclusão cada vez maior. A escrita havia-se tornado mais vaga, mais abstrata, e os sucessos de outrora não voltaram a repetir-se, não obstante a boa reputação que ainda mantinha no meio, bem como o respeito pelo trabalho produzido. Em parte por culpa do seu declínio cognitivo, vários rumores circulavam sobre acessos de fúria motivados pela inveja que lhe fermentava ao verificar o sucesso de outros autores.
 
Com uma vida pública já nula, este outrora grande conversador e homem das Letras morre com apenas cinquenta e dois anos de idade, vítima de ataque cardíaco. Decorria o verão de 1966. Devido ao corte que efectuara com todos os relacionamentos, o seu corpo, que tombara inerte no quarto do famoso Chelsea Hotel, em Nova Iorque, permaneceu dois dias na morgue sem que ninguém chegasse a identificá-lo.
 
Apesar da atribulação dos últimos anos, a notícia da morte de Delmore Schwartz desencadeou diversas reacções respeitosas. Nos tempos próximos, a sua memória e o seu trabalho seriam alvo de variadas homenagens por parte de outros artistas, tanto da literatura como da música. As mais célebres, decerto, terão sido elaboradas por Lou Reed, seu aluno na universidade de Syracuse, e Saul Bellow, no romance que lhe valeu um Pulitzer (Humboldt's Gift).
 
Schwartz não foi autor de obra vasta, tendo sido editados, postumamente, quase tantos títulos quanto aqueles que em vida publicou. Porém, a sua voz criou impacto logo no primeiro momento em que se fez ouvir. Autor de cariz modernista, trouxe frescura ao género ao explorar temas ainda algo obscuros de modo inovador, numa escrita segura e sustentada. Para tal, valeu-se do seu próprio meio, um judeu americano de classe média, cujas matizes invulgares soube pintar de modo claro e também audaz. Delmore apresentava-se como a primeira geração de judeus já nascidos em território americano, nova-iorquino por direito nativo, mas com toda uma herança milenar atrás de si, plena de preceitos e rituais muito próprios. A sua voz foi a de uma geração inteira, atravessada pelos turbulentos anos da Grande Depressão, que assistiu na primeira fila à decadência do sonho americano, a ilusão que tanto havia alimentado as esperanças dos seus pais.
 
A fase inicial da sua obra é, assim, marcada por textos e poemas de cariz mais autobiográfico, com um perfume levemente confessional. Já se denotava outras características que mais tarde iriam maturar em pleno, como um pendor meditativo e filosófico bastante apurado. Chama também à sua produção as peripécias da vida boémia, exposta numa sátira dissimulada.
 
Um percurso de lembrança, ou exercício de memória, que matura numa poesia de observação profunda de Homem, Mundo e Tempo, o que inevitavelmente leva-nos ao campo da reflexão. O aspecto filosófico de certas criações é, sem dúvida, o elemento mais importante a ter em conta no conjunto da obra, atravessada pela passagem do tempo e a consequente certeza da perda. Em adição, verifica-se o recorrer a figuras históricas e mitológicas. Seguindo o curso evolutivo, como atrás permitimos antever, a sua poesia foi-se manifestando mais abstrata, o que para algumas apreciações poderá significar um princípio de surrealismo.
 
Poeta culto e, sublinhamos, original, meditativo e amiúde melancólico, inteligente e satírico, Delmore Schwartz marcou décadas do seu tempo, antes do declínio mental e criativo abater-se sobre si. Cremos, porém, que laborou o suficiente para legar um conjunto relevante e merecedor de conhecimento ou dum sempre agradável revisitar. Aqui lhe deixamos o seu convite, estimado leitor.
 
Notas
 
* Seleção e versões a partir de Selected Poems, Summer Knowledge (New Directions paperbook, 1967, 14ª reimpressão)
 
1 No original, “I am I” — o que esclarece o exposto no verso anterior e a referência às duas vogais.

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