Brutalidade e vazio ainda vivos em “O peso do pássaro morto”

Por Vinícius de Silva e Souza



 
Cinco anos depois, reli o romance de estreia de Aline Bei. A primeira leitura, feita quando ainda era mero calouro do curso de letras, foi impactante e cheia de floreios. Já hoje, tanto tempo depois, profissional formado e pesquisador na área de literatura, retomei o livro simplesmente por me ver na pior posição que um leitor pode se encontrar: terminar a leitura de um livro no Kindle, no meio de um trajeto, e não ter mais nada para ler depois. Entre os tantos títulos no aparelho, escolhi reler esse.
 
E o que primeiro chamou atenção foi a estrutura em versos: na primeira leitura, pareceu um artifício sensacional e inovador. Já agora, em alguns momentos, me foi muito funcional, quando a autora traz palavras precisas e construções originais, dignas da brincadeira linguística que apenas a poesia consegue realizar, enquanto em outros, a sensação de que uma prosa tradicional seria mais adequada veio com força. Pareceu que a autora apenas bateu a tecla enter por simples e mera vontade, e não por uma intenção estrutural dos versos.
 
Versos esses que, por vezes, afastam a noção de romance e de narrativa do livro, fazendo-o parecer mais um poema com história do que história em forma de poema. Na busca por delimitar elementos que enfatizassem a segunda opção, que, creio eu, seja a opção defendida pela autora, alguns foram localizados: as cenas que servem de ponto de partida para entender o que houve na vida da protagonista no espaço que não vimos é um deles. Como os saltos temporais são muitos e são longos, o momento em que dirige para visitar o filho em Minas Gerais, por exemplo, é um bom exemplo da narrativa em ação. A protagonista discorre sobre como anda a relação e com o filho foi parar lá noutro estado, o que aconteceu, porque está indo, tudo isso antes do fio narrativo voltar-se para o momento presente e discorrer o que está acontecendo.
 
Chama a atenção o quão curto e impactante é o capítulo do nascimento desse filho, talvez o mais curto do livro. O choque no leitor foi agora o mesmo da primeira leitura: o assalto do fôlego de quem lê que aquilo está acontecendo. O mesmo pode-se dizer do horror da cena do estupro, pouco depois de tão precisas e bem construídas cenas retratando a vida adolescente da protagonista. Aline foi capaz de captar, de maneira muito hábil, todo o frescor (e os horrores) da adolescência em pouquíssimas linhas.
 
No entanto, se a autora peca em algo, é no uso das repetições. A personagem, imóvel perante a vida, parece combinar a imobilidade do romance. Não vemos grandes transformações em sua vida, mesmo a acompanhando dos 8 aos 50 anos de idade. Nem sequer transformações psicológicas ou existenciais: tudo parece transpassá-la, o tempo não por ela, e sim, ela por ele. Podemos achar justificativa no trauma, na timidez, em angústias internas que impossibilitam o caminhar com as próprias pernas e a tomada de rédeas das situações. Mas alguma construção, com mais tijolos, talvez fosse o suficiente para preencher lacunas tão grandes. A repetição de elementos ao longo de toda sua vida às vezes funciona, às vezes não.
 
E, ao pensar no principal tema desta narrativa, trauma é o que vem primeiro à mente de todo leitor, mas talvez morte seja a verdadeira questão aqui. A morte e suas marcas. O que fica explicito na conclusão, magistral, e que fornece grandes pontos para o romance. A mudança da personagem para a casa em Perdizes, a adoção do cão Vento, todos os momentos que perpassam esse novo cenário dão outro empurrão para a narrativa.
 
A morte do cão explicita a exaustão da protagonista, enquanto a casa serve de representação, mesmo antes, de seu interior. Seu fim não poderia ser diferente, e aqui o romance se aproxima de Meu pai, filme de 2020, em que o protagonista vivido por Anthony Hopkins conclui seu último diálogo oferecendo uma explícita alegoria às arvores — e o filme se fecha no movimento das folhas. 

Aline Bei segue o mesmo interesse ao trazer a morte para a protagonista, mas a persistência de viver da casa, mesmo com o passar dos anos. Os anos não passam pela casa: é ela que passa por eles. A mudança de narração com a morte da protagonista fornece novo teor à prosa, principalmente em “Póstumo”, capítulo final que deixa uma última interrogação antes do livro se concluir.
 
Poucas estreias conseguem ser tão impactantes quanto a de Aline Bei. O que as centenas de leitores deste livro podem se perguntar (e provavelmente se perguntam) ao chegarem no fim da narrativa é: o quão profundo e forte pode ser um livro tão curto? Apenas poesia é capaz de fazer e dizer tanto com tão pouco.


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O peso do pássaro morto
Aline Bei
Editora Nós, 2017
168 p.

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