Baumgartner, de Paul Auster

Por Henrique Ruy S. Santos


Paul Auster. Foto: Kate Orne


 
O jovem György Lukács, num dos mais belos ensaios de A alma e as formas, afirma que “o gesto é o salto por meio do qual a alma avança de um para o outro, trocando os fatos sempre relativos da realidade pela eterna certeza das formas. O gesto, para dizer numa palavra, é aquele único salto por meio do qual o absoluto se faz possível na vida” (Lukács, 2017, p. 66).
 
Pode-se dizer que Baumgartner, último romance de Paul Auster — que faleceu em 30 de abril de 2024 —, publicado no Brasil pela Companhia das Letras com tradução de Jorio Dauster, é a história do esboço de um gesto ou talvez o esboço da história de um gesto. É a história de uma tentativa de criar as formas necessárias para se chegar a uma compreensão do outro e a uma compreensão de si mesmo sem o outro. Nesse contexto, os principais defeitos do livro — sua falta de coesão estrutural, sua insossa errância narrativa, sua indecisão quanto ao que fazer dos temas com que lida — podem até compor um painel narrativo em que fazem sentido, mas ainda assim não são de todo desculpáveis. Mas me adianto. Façamos um recuo.
 
O romance tem início com Baumgartner em seu escritório de trabalho, onde está escrevendo uma monografia sobre os pseudônimos de Kierkegaard, quando se lembra que um dos livros que precisa consultar está na sala de visitas do andar inferior. Ao descer, Baumgartner lembra que precisa ligar para a irmã, Naomi, a fim de acordá-la, por isso vai à cozinha antes de ir pegar o livro. Ao chegar à cozinha, queima a mão em uma panela que esquecera no fogão. Logo em seguida o telefone toca. É um funcionário da companhia elétrica se desculpando pelo atraso e confirmando para dali a pouco uma visita previamente agendada, da qual, todavia, Baumgartner não se lembra. Em seguida, é a vez de a campainha tocar, anunciando a chegada de Molly, entregadora de livros que Baumgartner encomenda apenas para que possa passar um minuto ou dois na presença da mulher de trinta e poucos anos que os leva até sua casa. Passada a breve visita de Molly, Baumgartner relembra o compromisso de acordar a irmã, mas o telefone toca mais uma vez. Quem fala é Rosita, a filha da sra. Flores, mulher que presta serviços de limpeza na casa do velho professor. A menina avisa, em meio a soluços, que seu pai decepara dois dedos da mão direita enquanto serrava algumas tábuas, motivo pelo qual sua mãe faltará ao trabalho. Baumgartner acalma a garota ao telefone, após o que a campainha toca novamente. Quem chega é Ed Papadopoulos, jovem funcionário da companhia elétrica que veio verificar o registro da casa. Baumgartner, ao guiar o rapaz pelo porão, sofre um acidente e precisa ser socorrido por Ed.
 
Peço perdão pelo longo e algo confuso parágrafo, mas busco mostrar a maneira como o romance trabalha, neste início, com uma sobreposição de estímulos que a todo tempo desviam a atenção do leitor e do personagem principal a novos acontecimentos. São ninharias cotidianas que não permitem, de início, paradas para contemplação. Com um ponto de vista narrativo que prioriza a externalidade, apenas indiciando o mundo interior de Baumgartner, as cenas iniciais do romance são marcadas principalmente pelo esquecimento que acomete o personagem de diversas formas. Baumgartner esquece o livro, esquece a panela no fogo, esquece o compromisso assumido com a companhia elétrica etc., e é apenas após a sucessão de esquecimentos e distrações, que levam ao acidente sofrido no porão de sua casa, que Baumgartner, agora imobilizado fisicamente, estanca e embarca em uma viagem pela própria memória:
 
“Porém, continuando a olhar para a panela de alumínio enegrecida do outro lado da cozinha, seus pensamentos lentamente se distanciaram das trapalhadas matinais rumo ao passado, o passado remoto, tremeluzindo nas fronteiras da memória. E tudo voltou em fragmentos diminutos, o mundo perdido do ‘era uma vez’: lá estava ele e seu corpo recentemente formado, um estudante pobretão no primeiro ano do mestrado caminhando à tarde no noroeste de Manhattan em busca de algumas coisas para o primeiro apartamento em que viveria a sós.” (Auster, 2024, p. 25)
 
Embora nitidamente motivada pela sucessão de acontecimentos da manhã e pela visão da panela queimada (um utensílio doméstico comprado há muitos anos), o que exatamente precipitou a viagem ao passado que Baumgartner realiza não é de todo evidente, provavelmente nem para ele mesmo. Talvez o abalo da dor física a despertá-lo de uma certa letargia; talvez o inesperado cuidado de uma pessoa estranha, o funcionário da companhia elétrica, a lembrá-lo do apaziguamento das dores que o outro pode trazer. O acúmulo de pequenos acidentes domésticos e acontecimentos triviais com que a narrativa dá o pontapé inicial faz soar o crescente alarme de uma represa emocional mal remendada prestes a arrebentar. O conteúdo das águas represadas é-nos revelado a partir dos capítulos seguintes.
 
Ficamos sabendo, então, que Seymour Baumgartner é um professor universitário de 70 anos quase aposentado e que perdeu a esposa, Anna Blume, em um trágico acidente no mar há quase 10 anos. Vive uma vida solitária, dedicada, em grande parte, à escrita de seus livros e à revisita a antigos manuscritos da esposa, que era tradutora e escritora.




O romance, ao contrário de seu protagonista, inicia com passos firmes e com domínio do que quer abordar. Ao estabelecer a memória, a morte e o luto como coordenadas temáticas, o romance o faz com sensibilidade e, o que é o principal, sem sentimentalismo. A rememoração dos primeiros meses após a morte de Anna revela um Baumgartner certamente devassado pela dor, sem, entretanto, abandonar uma certa distância analítica em relação aos próprios sentimentos e à situação. Na única conversa que teve com uma terapeuta após a tragédia, Baumgartner explora alguns desses sentimentos:
 
“O que me aborrece é que ela insistiu em voltar para a água uma última vez, embora, a essa altura, o vento estivesse mais forte e o mar agitado [...].
Você se culpa, disse a terapeuta, é o que está me falando.
Não, não me culpo. Teria sido inútil insistir. Ela não era alguém que fazia o que lhe fosse dito, que aceitasse ordens. Era uma mulher adulta, não uma criança, e sua decisão de adulta era que ia cair na água de novo. Eu não podia impedi-la, não tinha esse direito. [...]
Sim, ela ainda estaria viva se não tivesse voltado para a água, mas também não teríamos durado juntos mais de trinta anos se eu tivesse tentado fazer coisas do tipo impedir que voltasse a cair na água quando quisesse.” (Auster, 2024, p. 30-31)
 
O romance mostra com sensibilidade notável como a morte de alguém com quem se compartilhou muitos anos da vida leva ao desaparecimento de todo um leque de gestos e até mesmo de uma paisagem sonora que dá forma à vida pela repetição do cotidiano. Por muito tempo, Baumgartner passaria horas usando a antiga máquina de escrever da esposa apenas para ouvir os sons das teclas, que costumavam acordá-lo pela manhã, quando Anna já estava trabalhando em seu escritório. Esse catálogo de ausências, demarcado cotidianamente pelos esquecimentos e pelas distrações, é comparado pelo personagem-título à chamada síndrome do membro fantasma, condição neurofisiológica em que uma pessoa continua a ter sensações em um membro amputado. Para Baumgartner, a perda de Anna representou a amputação de seus membros, tornando-o “um toco de homem” (Auster, 2024, p. 28), mas a dor ainda era por demais perceptível, como se eles ainda estivessem lá.
 
É nessa leitura que se revela, para retomar Lukács, a tentativa de Baumgartner de dar o salto em direção ao outro, em direção a Anna. Permito-me citar mais uma vez o pensador húngaro, dessa vez em outro ensaio:
 
“Na morte — na morte do outro — manifesta-se talvez do modo mais crasso, com uma intensidade que nem a força dos sonhos consegue deter, o grande problema da convivência humana: o que um ser humano pode significar na vida de outro.” (Lukács, 2017, p. 167)
 
Esse questionamento anima o que há de melhor neste derradeiro livro de Paul Auster. À medida que Baumgartner mergulha no passado e nos manuscritos deixados por Anna (poemas, extratos autobiográficos, entre outros), a morte da companheira se imiscui indelevelmente à sua própria decrepitude particular. A morte do outro como algo que pertence a si: o luto, mas também a proximidade da própria morte. Lembro de um clichê proverbial, desses que circulam por aí ora com uma, ora com outra origem, que diz que quando um velho morre, uma biblioteca é queimada. No caso de Baumgartner, a proximidade da própria morte o leva não só a folhear o acervo de sua própria memória, nem tão somente a lamentar o que do amor da sua vida são hoje apenas cinzas, mas também a averiguar o que escapou ao fogo, que vozes, gestos e registros permanecem.
 
Assim, na mais ou menos primeira metade do romance, por mais que se aventure em outras paragens, em outros acontecimentos e pessoas da vida de Baumgartner, a narrativa invariavelmente retorna a Anna. A impressão que se tem é que a personagem será o centro gravitacional do romance, a figura em torno da qual Baumgartner-personagem e Baumgartner-obra orbitarão. Mas é apenas impressão. Embora a personagem seja, de fato, peça fundamental da obra e o romance nunca a perca totalmente de vista, a certo ponto ele envereda por outros caminhos, à medida que mergulha no passado de Baumgartner. Assim, em termos de enredo, a obra lida ainda com uma outra tentativa de casamento entre Baumgartner e uma amiga anos mais nova; com uma breve história dos familiares e antepassados do personagem; com um relato sobre uma visita que o escritor fez à Ucrânia; e ainda com a iminente visita de uma jovem pós-graduanda, com interesse na obra de Anna Blume, à casa do protagonista. Junto a tudo isso, há, ainda, as inserções de alguns manuscritos de Anna e do próprio Baumgartner, que, por mais que contenham momentos verdadeiramente belos (a história de Anna sobre um amor de adolescência vem à mente), conferem um inchaço visível à obra.
 
Em meio à condução oscilante da narração, Auster se esforça por manter os temas da morte e da memória como fios condutores do romance, e a pendularidade entre o que Baumgartner tem a lembrar dos outros e o que tem a lembrar de si até certo ponto conduz o leitor em caminhos bem pavimentados. A relação entre morte e memória/esquecimento, glosada pelo tema do definhamento físico provocado pelo avanço da idade de Baumgartner, parece ser o ponto nevrálgico da narrativa, mas o ponto que a obra infelizmente deixa pelo caminho. Uma leitura um pouco forçada e conciliadora poderia enxergar no não desenvolvimento satisfatório do texto a mimetização do estado mental do próprio personagem, sempre às voltas com lapsos de memória de variável frequência. A estrutura inconclusiva e o abandono de linhas narrativas estariam, assim, adequados à retratação do estado deteriorado das faculdades mentais de Baumgartner. Entretanto, o romance em momento algum traduz isso enquanto forma de maneira convincente. Pelo contrário, o tom distanciado e sóbrio da narrativa em terceira pessoa não concorda com a assimilação do fragmentário e do lacunar a que essa leitura conciliadora aponta. Dessa forma, essas características, quando despontam no romance, destacam-se como defeitos de fatura e revelam antes uma certa precarização do acabamento formal. Por isso o livro, infelizmente, não faz por merecer sua conclusão em aberto.
 
Impõe-se a percepção de um romance desigual, cujo empenho em abarcar uma vasta miríade de linhas narrativas começadas e muitas vezes largadas pelo caminho nem sempre se sustenta sobre a base de um tema persistente, seja o da memória ou o da morte. Em um romance que lida de forma tão próxima e sensível com a perda e a incerteza da vida, não esperamos respostas aos questionamentos realizados, mas ficamos com o sentimento de que seria importante maturar um pouco mais algumas das perguntas fundamentais feitas aqui.


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Baumgartner
Paul Auster
Jorio Dauster (Trad.)
Companhia das Letras, 2024
176p.
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Bibliografia
Auster, Paul. Baumgartner. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.
Lukács, György. A alma e as formas: ensaios. Tradução de Rainer Patriota. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
 

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