Antonin Artaud e o “Bluff surrealista”

Por Ricardo Echávarri


Antonin Artaud. Foto: Man Ray.


Quando for reescrita a história do Surrealismo — a vanguarda mais ousada e transcendente do século XX —, na sua parábola, deverão ser apontados os seus Hileg ou pontos axiais, de que falava Paracelso: aquelas adesões entusiásticas ou despedidas abruptas ao único ismo (herdeiro do “sol negro” do Romantismo) que se postulou como algo além do mero campo artístico, e levantou a bandeira da poesia, do amor e da liberdade, quase como uma nova concepção de vida.
 
Antonin Artaud ingressou no Círculo Surrealista em 1924, tendo acabado de publicar seu livro de poemas Tric Trac du Ciel. Dirigiu a Oficina de Pesquisa Surrealista e criou o Teatro Alfred Jarry, em homenagem ao inventor da Patafísica (ou “ciência das soluções imaginárias”) e grande inovador cênico. A passagem de Artaud pelo Círculo, apesar de brilhante, foi suficiente para delinear uma era civilizacional baseada no surrealismo: uma nova ordem passional que recuperaria para o homem as suas faculdades poéticas perdidas. “A poesia deve ser feita por todos e não por um”, dissera o jovem Cisne de Montevidéu.
 
Artaud escreve uma série de cartas ao Papa, ao Dalai Lama etc. que dão o tom antiburguês aos tratados do grupo surrealista. No México, ele ficou conhecido por sua Viagem ao País dos Tarahumaras, onde relata seu contato com os rarámuris e sua experiência mítico-espiritual com o peiote, o cacto sagrado do norte do México. Esta viagem ao coração da Sierra Madre, “em busca de um princípio racial, original, não contaminado pelo Ocidente” seria fundamental na sua última etapa criativa. A avaliação da contribuição de Antonin Artaud para o surrealismo ainda se encontra por fazer, mas ninguém como ele abraçou a poesia como forma de conhecimento e de iluminada busca interior.
 
Ele também estrelaria a primeira (e mais telúrica) despedida do surrealismo. A causa e o sentido desta despedida são temas do seu opúsculo Em plena noite ou o bluff surrealista (publicado, em edição de autor, em 1927), resposta a Au grand jour (1926), onde André Breton e Paul Éluard se apoiam no sentido de vincular a revolução poética com a revolução social e aderir ao Partido Comunista francês. O tom da polêmica é mais intenso. As palavras mais duras são ditas sobre Artaud: a sua concepção da revolução como uma “metamorfose das condições internas da alma” fez dele um simples niilista, um diletante. Breton decreta a expulsão do poeta e ator de Marselha: “Hoje”, diz ele sem rodeios, “vomitamos este canalha”.
 
A resposta de Artaud, no Bluff, não é menos intensa: ele escreve uma série de frases que se repetirão, ciclicamente, até hoje: “O surrealismo está morto” — diz — ao abraçar a realidade e “esquecer o desejo”. Com isso, perdeu o seu próprio “centro” — a “transfiguração do possível” —, o que o tornara “um novo tipo de magia”. Artaud julga estéril a ação do próprio grupo: “Pela falta de influência dos surrealistas nos costumes e ideias da época”. O surrealismo caiu no “sentido utilitário e prático”, esquecendo que a revolução é, em essência, espiritual, interior. Para Artaud, estes novos “convertidos” à fé do marxismo são simples “revolucionários que não revolucionam nada”.
 
Talvez reconstruir o contexto desta controvérsia, que coloca frente a frente Artaud e Breton, nos dê uma imagem mais clara da questão. Em 1925, eclodiu uma revolta anticolonial no Rif, Marrocos. Clarté, de filiação comunista, e os surrealistas levantam-se, contra a corrente do fervor chauvinista — encorajado na Espanha por Primo de Rivera e na França por Doumergue —, a favor dos rebeldes. É então que André Breton e o seu círculo íntimo (Eluard, Péret, Aragon e Unik) consideram dar um passo prático: aderir ao Partido Comunista e assim ligar as três modernidades mais significativas do século XX: o surrealismo, a psicanálise e o marxismo. Breton, como todo homem libertário, saudou a Revolução de Outubro e em “Defesa Legítima” (A Revolução Surrealista, nº 8, 1926) declarou-se a favor de jogar o cartão vermelho. Apesar desta adesão, recusou o convite de Henri Barbusse, diretor do Hummanité, para colaborar num jornal cuja má qualidade julgava estar longe de ser um verdadeiro órgão de instrução do proletariado. Breton, apesar desse primeiro ato de fé, não cede: “Considerei inútil inscrever-me no Partido Comunista”. Ele também sentiu o dever de defender o grupo das acusações de serem “artistas burgueses” ou “diletantes esnobes”.
 
A controvérsia entre Artaud e Breton atingiu o seu ponto mais alto de tensão em 1927. Dois pensadores extraordinários, dois poetas iluminados, lançam os seus melhores raios um contra o outro, debatendo o significado do abraço da poesia e da revolução. Os argumentos de Artaud em Bluff surrealista são soberbos: a revolução é essencialmente interna, uma mudança espiritual, uma alquimia verbal e vital, como Rimbaud havia esclarecido. A outra coisa seria colocar a poesia em risco e deixar latente o perigo de subordiná-la ao poder. Com Artaud, quase todos os “experimentalistas” da Oficina dizem adeus ao surrealismo… Soupault, Vitrac, Carrive, Deltei, Gérard, Limbour, Masson. Qualquer outro ismo teria desabado como um castelo de cartas com tal deserção, mas não o surrealismo.
 
A contrarréplica de André Breton não é menos soberba: a revolução deve ser abrangente. Breton também menciona Rimbaud, o poeta clarividente moderno. Relembra os tempos do jovem poeta na Comuna de Paris: “Um menino com orelhas de rato e olhos de pervinca que, após seis dias de caminhada, de sua terra natal, Charleville, a Paris, aparece no quartel da Babilônia, diante dos bravos rebeldes”. Os passos do poeta entre as barricadas, naqueles tempos do "primeiro assalto ao céu", foram narrados pelo Coronel Godchot: Rimbaud compõe um hino, escreve uma Constituição, saúda os revoltosos... Seguindo esses passos, André Breton responde que não é apenas uma questão política (ou ética) abraçar a práxis revolucionária.
 
Revela, segundo o argumento de Artaud, a aporia dualista que envolve ver apenas um lado do espelho: resolve a discussão sobre se a revolução é “interna” ou “externa”, “utópica” ou “de fatos”, “espiritual” ou "material", postulando a busca (quase budista ou típica do Zen) de um "ponto" onde essa dualidade se dissolva: “Tudo leva a acreditar que existe um certo ponto do espírito onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente” (Segundo Manifesto Surrealista, 1930). A atividade surrealista “não teria outro motivo” senão a esperança de “determinar” esse ponto. O homem é um com o seu eu interior e as suas circunstâncias, o homem de ação é o mesmo que sonha. Nessa linha, Breton encontra o lugar e a fórmula para sentenciar:
 
Marx disse: mudar o mundo,
Rimbaud disse: mudar a vida.
Para nós ambos os slogans
são um só.
 
A complexa história do socialismo e da arte de vanguarda durante o século XX, se forem considerados alguns fatos isolados relevantes, por vezes, parece dar razão a um ou a outro. A relação do surrealismo com o marxismo (especialmente na sua versão ortodoxa) não passou, em última análise, de um fracasso total.
 
Em 1933, o PC expulsou os surrealistas, que encontraram pouco espaço no Congresso Internacional para a Defesa da Cultura (Paris, 1935) e na AEAR, dominada por comissários culturais alinhados ao Kremlin. O próprio André Breton, por volta de 1936, acabou desencantado com a Rússia, especialmente quando Stálin intensificou seus expurgos, seus criminosos “Julgamentos de Moscou” que terminou, no mais puro estilo da Tcheka, com o sequestro e assassinato de Andreu Nïn, líder do POUM.
 
Por outro lado, a rejeição de André Breton à arte estatal, oficial, de slogans (que a outro nível poderia ser considerada um reconhecimento tácito de que, apesar de tudo, Artaud estava certo), condensada no “realismo socialista” — ideal artístico do “marxismo” soviético — foi captado no manifesto “Por uma arte revolucionária e independente” (1938), que escreveu, junto com Trótski, em Coyoacán, México: nesse país e na revista Clé, Breton reitera a necessidade do poeta escrever sem o imperativo de ortodoxias de qualquer espécie: “Toda liberdade na arte”.
 
A luta permanente do surrealismo pela liberdade artística tem, nesta primeira polêmica, protagonizada por dois dos maiores poetas do século XX, Antonin Artaud e André Breton, a sua primeira queda. 


* Este texto é a tradução livre de “Antonin Artaud y el Bluff surrealista”, publicado aqui, em Confabulario.

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