A palavra rompe o gelo
Por Javier Aparicio Maydeu
Jón Kalman Stefánsson. Foto: Leonardo Cendamo |
A marca de Selma Lagerlöf parece evidente nestas páginas em
que a intensidade psicológica enriquece as relações humanas que ocupam uma
existência terrena dissolvida no líquido ambíguo do sonho. A prosa lírica de Virginia Woolf de
Passeio ao farol na transferência de emoções, na conivência do narrador
e na precisão do espaço e na permeabilidade entre sensações e acontecimentos
também se revelam aqui.
Uma segunda parte lança-se para o exterior a fim de
narrar as aventuras do homem confrontando sua natureza inconstante com a descomunal
força da natureza. Na verdade, são sempre avatares espirituais que movimentam a
trama. A neve e o vento, mas a honestidade e o medo. O espírito de Jack London confundindo-se
ao de Charles Dickens.
O leitor desfrutará de passagens em que a ação adquire corte cinematográfico como a em que o carteiro Jens e o menino anônimo que se
esforça para ler Hamlet, o motivo do senex puer que atravessa o
romance desde a ficção medieval, viajam pelos fiordes, e na virada de um
parágrafo chega-se a acreditar que se está lendo um livro de meditação porque
os protagonistas parecem compartilhar apólogos divididos com frases
doutrinárias.
E muitas vezes a linguagem proverbial
(“A vida é bem simples, mas as pessoas não”, “é preciso ser eternamente
cuidadoso com as palavras: pelo menos uma delas transporta a morte.”) leva à
ideia de que mesmo o menor detalhe se apresenta transcendido. Não há tempestade
maior do que aquela que acontece no interior do ser humano, e ainda assim o
romance persiste em descrever uma paisagem de picos tempestuosos “que nos arrebatam
um bom pedaço de céu dos mortais” e um mar entendido como limite. A ilha da
Islândia converte-se numa alegoria e os acontecimentos decorrem num lugar
chamado Lugar, a meio caminho entre o onírico e o realista, uma metáfora
indiscutível do mundo da condição humana, como são Yoknapatawpha ou Macondo.
“O álcool tende a mudar nossas ideias sobre a importância das coisas: o canto
dos pássaros torna-se mais importante do que as notícias mundiais, um rapaz com
olhos frágeis fica mais precioso do que ouro e uma menina com covinhas nas
bochechas mais influente do que toda a Marinha britânica”;
“O céu tem uma
quantidade infinita de neve. Aí vêm as lágrimas dos anjos, dizem os índios no
norte do Canadá quando a neve cai. Neva uma boa quantidade aqui e a tristeza
dos céus é magnífica, é uma capa que protege a terra do gelo, trazendo luz a um
inverno duro, mas também pode ser fria e impiedosa.”
O seu romance Paraíso e inferno,
com o qual aquele que agora nos preocupa partilha as tradições ancestrais, a
adolescência ou o prazer de ler, foi suficiente para garantir a certeza de que Stefánsson é
um narrador que gosta de trabalhar com as palavras, de brincar com a écfrase, a
antinomia, a anáfora ou a polida imagem poética (“A luz da manhã desce sobre o
abismo escuro para ir buscá-lo.”). Age como quem caricia sua matéria-prima.
Por isso,
convoca com muita frequência a linguagem em suas páginas. “Que outro uso tem a
poesia a não ser ter o poder de mudar o destino?”; “algumas palavras parecem
tolerar o poder destrutivo do tempo”; “leia até parar de distinguir o texto de
você mesmo”, “muitas vezes as palavras são apenas pedras sem vida ou roupa
rasgada e despedaçada” mas “Alguém que segure caneta e papel tem a
possibilidade de mudar o mundo.”¹
Além do que se pode observar à
primeira vista, talvez seja a linguagem entendida como um inevitável clarão
de luz na escuridão sinistra do mundo o que marca este romance. O amparo da voz
diante das trevas. A entronização da palavra.
______
A tristeza dos anjos
Jón Kalman Stefánsson
João Reis (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
Companhia das Letras, 2023
312p.
1 Todos os excertos de A
tristeza dos anjos citados neste texto são da tradução de João Reis
(Companhia das Letras, 2023)
* Este texto é a tradução de “La
palavra rompe el hielo”, publicado aqui, em El país.
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