A palavra rompe o gelo

Por Javier Aparicio Maydeu


Jón Kalman Stefánsson. Foto: Leonardo Cendamo


 
É possível que não seja outra coisa senão a complexidade, a gama de nuances, mesmo quando não emergem ou oscilam em elipses, que transforma uma história em literatura. O que George Steiner chamou o eco fértil, a evocação inevitável, germina na prosa de Jón Kalman Stefánsson.
 
A tristeza dos anjos parece um díptico. Uma primeira parte corresponde a um interior islandês em que uma epopeia da vida cotidiana se sobressai acima da vida doméstica, dos hábitos simples e cativantes de uma xícara de café quente — mais de uma cena relembra a pintura íntima de portas, mulheres, leitura e silêncio do dinamarquês Vilhelm Hammershøi transferida para o meio rural —, a casa de salga de bacalhau ou um velho rabugento. 

A marca de Selma Lagerlöf parece evidente nestas páginas em que a intensidade psicológica enriquece as relações humanas que ocupam uma existência terrena dissolvida no líquido ambíguo do sonho. A prosa lírica de Virginia Woolf de Passeio ao farol na transferência de emoções, na conivência do narrador e na precisão do espaço e na permeabilidade entre sensações e acontecimentos também se revelam aqui. 

Uma segunda parte lança-se para o exterior a fim de narrar as aventuras do homem confrontando sua natureza inconstante com a descomunal força da natureza. Na verdade, são sempre avatares espirituais que movimentam a trama. A neve e o vento, mas a honestidade e o medo. O espírito de Jack London confundindo-se ao de Charles Dickens.
 
O leitor desfrutará de passagens em que a ação adquire corte cinematográfico como a em que o carteiro Jens e o menino anônimo que se esforça para ler Hamlet, o motivo do senex puer que atravessa o romance desde a ficção medieval, viajam pelos fiordes, e na virada de um parágrafo chega-se a acreditar que se está lendo um livro de meditação porque os protagonistas parecem compartilhar apólogos divididos com frases doutrinárias.
 
E muitas vezes a linguagem proverbial (“A vida é bem simples, mas as pessoas não”, “é preciso ser eternamente cuidadoso com as palavras: pelo menos uma delas transporta a morte.”) leva à ideia de que mesmo o menor detalhe se apresenta transcendido. Não há tempestade maior do que aquela que acontece no interior do ser humano, e ainda assim o romance persiste em descrever uma paisagem de picos tempestuosos “que nos arrebatam um bom pedaço de céu dos mortais” e um mar entendido como limite. A ilha da Islândia converte-se numa alegoria e os acontecimentos decorrem num lugar chamado Lugar, a meio caminho entre o onírico e o realista, uma metáfora indiscutível do mundo da condição humana, como são Yoknapatawpha ou Macondo.




A tristeza dos anjos garante passatempo, mas sobretudo acutila o discernimento. Coloca as perguntas essenciais da existência sem se comprazer na consciência de as colocar. Sim, é possível que os introitos em itálico sejam supérfluos, demasiado puxados, exercícios de virtuosismo de estilo que põem à prova a tradução, usados ao mesmo tempo pelo autor para exaltar a beleza de uma baleia encalhada na praia, para descrever um vestido azul celeste (“um dos deuses arrancou um pedaço do céu, embrulhou-o à volta dela, e o céu se mantém apertado contra seu corpo acima da cintura, mas afasta-se ligeiramente abaixo dela.”), para que o leitor sorria pensando na micção masculina (“Dois homens urinando, lado a lado, às vezes sentem-se unidos; por um momento ou dois, têm algo em comum e talvez digam alguma coisa que, de outro modo, nunca diriam em voz alta.”) ou que a sua literatura brilhe como uma joia, vernácula apenas na aparência e sempre sutil: 

“O álcool tende a mudar nossas ideias sobre a importância das coisas: o canto dos pássaros torna-se mais importante do que as notícias mundiais, um rapaz com olhos frágeis fica mais precioso do que ouro e uma menina com covinhas nas bochechas mais influente do que toda a Marinha britânica”;

“O céu tem uma quantidade infinita de neve. Aí vêm as lágrimas dos anjos, dizem os índios no norte do Canadá quando a neve cai. Neva uma boa quantidade aqui e a tristeza dos céus é magnífica, é uma capa que protege a terra do gelo, trazendo luz a um inverno duro, mas também pode ser fria e impiedosa.”
 
O seu romance Paraíso e inferno, com o qual aquele que agora nos preocupa partilha as tradições ancestrais, a adolescência ou o prazer de ler, foi suficiente para garantir a certeza de que Stefánsson é um narrador que gosta de trabalhar com as palavras, de brincar com a écfrase, a antinomia, a anáfora ou a polida imagem poética (“A luz da manhã desce sobre o abismo escuro para ir buscá-lo.”). Age como quem caricia sua matéria-prima. 

Por isso, convoca com muita frequência a linguagem em suas páginas. “Que outro uso tem a poesia a não ser ter o poder de mudar o destino?”; “algumas palavras parecem tolerar o poder destrutivo do tempo”; “leia até parar de distinguir o texto de você mesmo”, “muitas vezes as palavras são apenas pedras sem vida ou roupa rasgada e despedaçada” mas “Alguém que segure caneta e papel tem a possibilidade de mudar o mundo.”¹
 
Além do que se pode observar à primeira vista, talvez seja a linguagem entendida como um inevitável clarão de luz na escuridão sinistra do mundo o que marca este romance. O amparo da voz diante das trevas. A entronização da palavra.


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A tristeza dos anjos
Jón Kalman Stefánsson
João Reis (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
312p.


Notas da tradução

1 Todos os excertos de A tristeza dos anjos citados neste texto são da tradução de João Reis (Companhia das Letras, 2023)


* Este texto é a tradução de “La palavra rompe el hielo”, publicado aqui, em El país.

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