A extensa sombra de um clássico

Por Rodolfo Biscia




Entre o pleno ser e o puro nada, que tipo de entidade é uma sombra? A essa pergunta platônica, Adelbert von Chamisso respondeu com uma fábula de moral imprecisa. Mercadoria intangível, quanto vale a sombra? Muito pouco, uma nulidade? Uma coisa parece clara: seu preço aumenta quando começamos a sentir a sua falta. Suplemento à nossa identidade, revela-se como predicado essencial assim que desaparece. Logo percebemos que a metafísica não era estranha a este escritor franco-alemão. Isto é demonstrado pelo pequeno romance magistral que publicou em 1814 e é confirmado pelos versos que o precedem.
 
Desde o primeiro capítulo, a história de Peter Schlemihl combina realismo burguês e uma imprevisibilidade fantástica. Chegando não se sabe de onde, o personagem desembarca em Hamburgo. Participa de uma reunião da abastada sociedade. Ali, um velho vestido de cinza, pouco demoníaco e bastante cortês, fornece magicamente os objetos de que essas figuras venais precisam. Do bolso da sobrecasaca tira uma luneta e um unguento para tratar um ferimento de senhora, mas também um tapete turco, uma tenda e três grandes cavalos arreados e selados. Os beneficiários recebem os presentes com naturalidade. Cegos pela satisfação imediata de seus desejos, parecem não perceber os meios fantasmagóricos do provedor. E tudo acontece sem que a impossibilidade física dessas ações suspenda a lógica impecável da trama.
 
Este demônio mundano segue Peter e pede sua sombra, que o viajante lança a seus pés, não sem nobre indolência. Do catálogo multicultural da literatura fantástica, Mefisto oferece-lhe em troca vários objetos mágicos. Peter escolhe a bolsa da sorte de Fortunato, de onde flui muito dinheiro. O velho recolhe a sombra de Schlemihl, enrola e guarda. O fantástico irrompeu novamente, destruindo a vida de Peter, mas não a coerência de uma história atenta a combinar os lampejos da imaginação com as limitações da verossimilhança. A partir daí, o personagem transita no mundo da incompreensão social. A intenção de esconder a sua falta só promove confusão e suspeita. Um pintor recusa-se a desenhar para ele uma sombra em movimento, o que implicaria uma espécie de incansável performance.
 
Numa pequena cidade, os habitantes confundem-no com o rei da Prússia, que viaja incógnito. Atribuem sua riqueza a uma posição aristocrática: passam a chamá-lo de Conde Peter. Fugindo da sociedade, se apaixona por Mina, filha do guarda-florestal, que por sua vez suspeita amar um príncipe exilado. (Em uma ocasião, acredita perseguir a sua própria sombra fugitiva. Mas o borrão em movimento pertence a outro homem, equipado com um prodigioso ninho de pássaro que esconde o corpo do portador, mas não a sombra que projeta. Milagre reverso!)
 
Enquanto isso, o falso conde esvanece. Tem problemas financeiros; até procura trabalho. Mas a fantasia volta a irromper assim que compra um par de botas, que de repente o transporta por paisagens maravilhosas. Ocorre uma mudança de escala. Agora caminha entre vulcões em chamas e picos congelados. Coleta algas dos mares e líquens das florestas. Basta um passo para passar do dia à noite, da selva à tundra, do verão de um hemisfério ao inverno do outro.
 
As botas de sete léguas, a bolsa de Fortunato, o bolso sem fundo do Diabo ou o ninho que torna invisível o homem que projeta a sua sombra fugitiva responde à mesma lógica. Objetos mágicos são descritos ou descobertos a posteriori, uma vez que seus efeitos metamorfosearam a realidade e surpreenderam o leitor com a narração de insólitas aventuras.
 
O relato apressado das viagens de Schlemihl coincide com o desenvolvimento tardio de uma vocação científica. Peter se torna geógrafo, botânico, zoólogo, geólogo. Seu campo de estudo é a Terra. Sem perceber, ele fez um pacto com o Diabo, mas a intercessão de poderes superiores não é necessária para escapar da condenação: basta uma vida nômade dedicada à pesquisa. Nessa fuga perpétua, o contratante torna-se um viajante global e ao mesmo tempo um naturalista: “Percorri o globo em todos os sentidos, medindo aqui montanhas, ali a temperatura das águas e do ar, estudando aqui os animais e ali as plantas; corri do equador para o polo, de um continente para outro continente, comparando as minhas com outras experiências”. No entanto, se vê forçado a evitar a sociedade; é um humanista contrariado, misantropo malgré lui. Um von Humboldt, com uma pitada de Timão de Atenas e um pouco do último Rousseau.



 
Hesitante entre o romance curto (a bem alemã Novelle) e o conto de fadas (na tradição do Märchen), a narrativa pisca para o romance de aprendizagem. Mas, ao contrário de um Bildungsroman, o herói (um homem na sua maturidade) desliga-se da sociedade à qual teria sido chamado a aderir. Mesmo assim, triunfa melancolicamente o espírito do Iluminismo. Peter aprende a lidar com o erro fundamental que arruinou sua vida. Ele perdeu sua sombra, mas manteve conservada a sua alma. Ao aceitar o determinismo, passou a abraçar a contingência, uma forma comovedora de amor fati.
 
Fugitivo da guilhotina aos nove anos, o francês Louis Charles Adélaïde de Chamissot, de Boncourt, conseguiu se tornar um poeta essencial da poesia alemã. Para que este paradoxo não passasse despercebido, ao longo da vida continuou a contar histórias na sua língua materna. Foi oficial do exército prussiano e também navegador e botânico.
 
Cuidou de um cachorro chamado Fígaro, assim como o animal de estimação com o qual Schlemihl passou seus últimos dias. Se Peter manifesta a vontade de doar os seus escritos à Universidade de Berlim, foi aí que o seu criador acabou por legar a sua biblioteca e as suas coleções. Enquanto as viagens de seu personagem se tornaram famosas, ele viajou ao redor do mundo em um período de três anos (1815-1818), escreveu seu diário e daí derivou uma série de valiosos ensaios científicos.
 
No texto que escreveu em 1910 sobre o livro, Thomas Mann enfatizou essas ressonâncias autobiográficas e destacou em Chamisso a arte sutil de transformar o fantástico em plausível. Ao mesmo tempo, desencorajou qualquer interpretação alegórica. A sombra evoca, sem se fixar em ninguém, os sentidos de pátria, de honra, de identidade nacional, de pertencimento à respeitável sociedade burguesa.
 
A sua falta pode equivaler a um exílio, externo ou interno, mas sobretudo a um desenraizamento metafísico. Daí a “flutuante irrealidade” da existência do protagonista, não menos que a do seu criador. Mas um homem sem sombra não é apenas um pária: é também alguém lúcido, um informado da condição elusiva da sua presença no cosmos. Um precursor do Wakefield de Hawthorne, o homem pacífico que, ao virar a esquina de sua casa, se transforma ao longo dos anos em um pária do universo?
 
Peter, de fato, acaba por ficar num asilo construído em sua homenagem — o Schlemihlium — e financiado com o dinheiro obtido de forma ilícita. Ele não revela sua identidade nem ao seu fiel criado nem à sua ex-noiva, agora a ainda bela viúva de seu outro inescrupuloso criado. Continuará usando a kurtka, aquele longo casaco de pele com acabamento militar e de origem russo-polonesa. Mas agora pode prescindir de um nome e um falso título nobiliárquico: o número Doze é suficiente para identificá-lo. Não é por acaso que, por causa de sua longa barba, é confundido com um judeu. Esta “história maravilhosa” também se baseia na figura de Schlemiel, o inocente trapalhão cujos contratempos são explorados com humor na literatura iídiche.
 
Heinrich Heine nos fornece algumas chaves para a relação entre esse folclore e sua reelaboração romântica. Já nos seus Reisebilder, o escritor uniu seus lamentos ao coro de “nós, pobres alemães, verdadeiro Peter Schlemihl”. Mas o essencial deve ser encontrado em alguns engenhosos neologismos. No seu romance Jehuda ben Halevy, que Hannah Arendt glosaria brilhantemente, Heine reuniu os judeus extraterritoriais e a irmandade dos poetas sob o signo da “schlemihlidade”. E numa passagem de uma de suas cartas evoca uma entrevista fracassada com Chamisso em Göttingen. O que os teria impedido de se encontrarem foi a condição que ambos — hebreu e gentio — partilhavam: numa palavra, a inescapável “Schlemielitude”. 


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A história maravilhosa de Peter Schlemihl
Adelbert von Chamisso
Marcus Vinícius Mazzari (Trad.)
Estação Liberdade, 2003
136p.

* Este texto é a tradução livre de “La larga sombra de un clásico”, publicado aqui, na Revista Ñ.

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