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Mostrando postagens de novembro, 2024

O centauro no jardim, de Moacyr Scliar

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Por Sérgio Linard Moacyr Scliar. Foto: Roberto Scliar   A vida sem a ficção seria insuportável; isso caso cogitar uma vida sem resquícios mínimos de elocubração fosse uma atividade possível ao homem. Em sonhos, em devaneios ou em ideações, temos, todos nós, à nossa medida, alguma forma de ficcionalizar a realidade. Uma maneira de viver. Com base nessa necessidade humana, Moacyr Scliar, em O centauro no Jardim , apresenta um romance que é a exata definição sobre como seria intragável a passagem humana na existência sem que essa fabulação em potencial, além do círculo comum repetitivo das coisas e dos meios, fosse não só uma possibilidade, mas uma maneira intrínseca de se ser no mundo . Para atingir esse objetivo, o autor coloca-se como crítico da própria história que escreveu, mostrando que o que a faz ser especial é somente a presença daquilo que pode ser dito como “inútil” ou “dispensável”, dada a não objetividade material esperada para os elementos e os acontecimentos da vida moderna

O passado que ressoa: a Palestina na literatura – resenha de “Homens ao sol”, de Ghassan Kanafani

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Por Wesley Sousa Ghassan Kanafani. Foto: Bruno Barbey O filósofo alemão Theodor Adorno certa vez escreveu que depois do episódio de Auschwitz não era mais possível escrever poesia. Claro que muitos não levaram a afirmativa de forma literal e continuamos a escrever poesia sabedores que uma humanidade catastrófica foi instituída.   Hoje em dia, alguém poderia dizer que o romance não suportaria a Nakba (“catástrofe”) palestina, porém, muitas pessoas seguirão a escrever romances. Agora televisionados e instagramáveis , os acontecimentos e suas consequências incalculáveis passam a olho nu. Ante tamanha barbárie que atravessa mais de sete décadas o povo palestino, não mais a poesia, mas o romance, agora, está inviabilizado ...   Na mais atual ofensiva israelense — o braço armado estadunidense no oriente médio — contra os palestinos (e agora os libaneses, sírios e os iranianos), a chamada “literatura de resistência” não poderia deixar de passar pela Palestina, nem deixar de nos fazer enfati

Boletim Letras 360º #609

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Mário Cesariny. Foto: Eduardo Tomé   LANÇAMENTOS   Anunciada em 2020, sai agora, enfim, a primeira antologia brasileira com a poesia de Mário Cesariny .   Nascido em 1923, em Lisboa, Mário Cesariny é o grande nome do Surrealismo em Portugal. Desenvolveu uma obra múltipla na qual se cruzam práticas diversas, tais como pintura, colagem, poesia, escrita, ensaio, teatro e crítica de arte. Sua produção, que recusa dogmas de movimento, é um grito pela liberdade, pela imaginação e pela poesia. O navio de espelhos reúne um conjunto significativo de sua arte poética, selecionado e apresentado por Maria Prado Lessa, professora da USP e especialista em sua obra, que também assina um ensaio sobre o autor. São cerca de 80 poemas feitos ao longo de cinco décadas de atividade que buscam formar um panorama da poesia escrita de Cesariny. O livro entrega a Coleção Atlântica, dedicada à poesia portuguesa e coordenada por Sofia Sousa Silva. Você pode comprar o livro aqui .   A HarperCollins Brasil oferec

Brutalidade e vazio ainda vivos em “O peso do pássaro morto”

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Por Vinícius de Silva e Souza   Cinco anos depois, reli o romance de estreia de Aline Bei. A primeira leitura, feita quando ainda era mero calouro do curso de letras, foi impactante e cheia de floreios. Já hoje, tanto tempo depois, profissional formado e pesquisador na área de literatura, retomei o livro simplesmente por me ver na pior posição que um leitor pode se encontrar: terminar a leitura de um livro no Kindle, no meio de um trajeto, e não ter mais nada para ler depois. Entre os tantos títulos no aparelho, escolhi reler esse.   E o que primeiro chamou atenção foi a estrutura em versos: na primeira leitura, pareceu um artifício sensacional e inovador. Já agora, em alguns momentos, me foi muito funcional, quando a autora traz palavras precisas e construções originais, dignas da brincadeira linguística que apenas a poesia consegue realizar, enquanto em outros, a sensação de que uma prosa tradicional seria mais adequada veio com força. Pareceu que a autora apenas bateu a tecla enter

A ópera da Terra ou a linguagem de Gaia: Krakatoa, de Veronica Stigger

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Por Thiago Roney Veronica Stigger. Foto: Eduardo Sterzi   Krakatoa , o novo livro de Veronica Stigger, conta a história do Fim , partindo do último frame do filme Teorema , de Pier Paolo Pasolini, a partir de dentro e de fora dos vulcões, após o grito desesperado do pai de família nu, atordoado, caminhando sobre o vulcão Stromboli, para, com isso, contar a história de outros fins . Melhor dizendo, Krakatoa conta a história, a partir de dentro e de fora dos vulcões, da coisa viva vista e ouvida que culminou em O grito pelo artista norueguês Edvard Munch, para, assim, contar a história do “grande grito da natureza”. Quer dizer, Krakatoa conta a história do grito inebriante e catastrófico do vulcão Krakatoa durante sua erupção em 1883, que deu origem ao “filho” do vulcão, o Anak Krakatoa, em 1927, na Indonésia, para, dessa maneira, contar a história do “feto infernal gestado pela Terra”. Isso significa que, como afirma um certo Eduardo no próprio livro, Krakatoa “não é um romance”, ma

Uma versão fiel de Pedro Páramo

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Por Ernesto Diezmartínez   Minha afirmação vale como garantia: Pedro Páramo (México, 2024), estreia na direção do multipremiado diretor de fotografia mexicano Rodrigo Prieto, é a melhor versão cinematográfica já feita do romance de mesmo nome de Juan Rulfo, publicado pela FCE em 1955.   Para começo de conversa, esta é uma boa notícia, porque seria preciso dizer que, em geral, a obra de Rulfo não tem tido muita sorte com a sétima arte, embora, até o momento, existam pouco mais de trinta roteiros, enredos e adaptações cinematográficas baseadas ou inspiradas em obras rulfianas, sem contar duas séries de televisão: La caponera (2000) e a recente El gallo de oro (2023). Há duas exceções distantes a esta lamentável regra: o enredo quase borgesiano escrito por Rulfo para o curta-metragem El despojo (1960), dirigido por Antonio Reynoso com fotografia hierática em preto e branco de Rafael Corkidi, e o memorável texto escrito a posteriori para o irrepetível clássico poético-experimental de

Max Ernst, poeta da colagem

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Por José de la Colina Max Ernst, 1934. Foto: Man Ray   Quando Max Ernst (Brühl, 1891 – Paris, 1976) era um menino de cachos loiros e olhos celestiais, seu pai — professor de uma escola para surdos e pintor por hobby — fez um retrato dele em tons melosos de azul, rosa e dourado, e intitulou de O menino Jesus , doce carpinteiro ... ou algo parecido. Max pode ter ficado tocado por aquele tipo de pintura kitsch à qual anos mais tarde prestaria irônicas homenagens em algumas de suas obras (por exemplo, a pintura a óleo que mostra a Virgem Maria dando umas palmadas no menino Jesus), mas detestava aquele retrato pintado por o pai, em quem se via como um monstrinho de doçura, ou seja, um exemplo perfeito do que Freud teria rotulado de pervertido polimorfo. E assim que terminou os estudos básicos, em 1918, deixou o retrato acumular poeira em algum sótão escuro e se dedicou a estudar filosofia na Universidade de Bonn, a exercitar sua insônia lendo Nietzsche ou Baudelaire e a imitar as pincelad