Um romance russo, de Emmanuel Carrère

Por Gabriella Kelmer


Emmanuel Carrère. Foto: Franck Ferville


 
A autobiografia não ocupa tão comumente minhas reflexões sobre a literatura. Talvez a evitação seja por um apego à ficção no seu sentido mais restrito, ou ainda um desejo de evitar o confronto com a escorregadia classificação do que é literário; fato é que, se há romances e novelas autobiográficas que li com prazer, há ainda um caminho considerável para que eu possa discutir as questões teóricas ensejadas pela autobiografia com qualquer propriedade.
 
Essa lacuna, o interesse em remediá-la ligeiramente que seja, foi o primeiro ponto que trouxe às minhas mãos Um romance russo, de Emmanuel Carrère, autor cujo nome, e até então apenas isto, não me era estranho. O fator segundo consistiu em um desejo de ler algo novo, de um escritor com o qual não tinha familiaridade, sendo enfim essa novidade um dos traços mais atrativos para mim na produção dessas resenhas.
 
A versão da Alfaguara, que ocupa agora um espaço na estante na minha minguada, mas orgulhosa coleção de obras francesas, foi lançada em sua segunda edição neste ano de 2024. A primeira publicação do romance de Carrère foi em 2007. A tradução brasileira, executada por André Telles, é ainda mais distante dos eventos narrados, que se situam durante um período aproximado de dois anos, entre 2000 e 2002.
 
É apenas pelo recorte temporal dado, dentro do qual se flagra o autor em busca de uma solução para traumas hereditários e para um desconforto com a própria personalidade, que é ao mesmo tempo brutalmente admoestada e apresentada com certa indolência, que se vinculam os temas de que trata a obra. A Rússia, presente desde o título (Un Roman Russe, no francês), é o destino a que chegam pela primeira vez Carrère e sua equipe de televisão, ocupados com a produção de um documentário sobre um prisioneiro de guerra húngaro1. Após viver quarenta anos em um hospital psiquiátrico em Kotelnitch, pequeno município portuário nos confins da Rússia, András Toma retorna ao seu país de origem, a Hungria, tendo perdido durante os anos de confinamento qualquer inteligibilidade na produção do seu idioma de origem, sem também nunca ter aprendido russo.
 
Por uma atração que deriva da segunda matéria fundamental ao romance, o autor, depois de encerrada a primeira ida à Rússia, retorna a Kotelnitch outras vezes2. Busca, na produção de um filme sobre o local, alguma descoberta sobre si mesmo que encerre uma história familiar dolorosa, espécie de fardo carregado através de gerações: o avô materno, colaboracionista do regime nazista, desaparece na Paris de 1944. Esse avô, introduzido em cartas como um homem que se sente injustiçado e repelido pelo mundo, corresponde à parte georgiana da árvore genealógica do autor, sendo a origem daquilo que se reconhece como uma trágica herança emocional, idiomática e psíquica pela qual Carrère — que ocupa simultaneamente o papel de autor, narrador e personagem central da obra — justifica sua obsessão pelas temáticas da loucura e do enclausuramento, assim como pela língua russa.
 
Em cada uma dessas aventuras, o narrador deixa para trás sua companheira, Sophie, com quem começa a viver depois de sua viagem à Rússia (e de lá à Hungria). É essa a terceira matéria da obra: a história desse amor volátil, lacerado de lado a lado não apenas por um elitismo constantemente renovado da parte de Carrère, mas também por seu narcisismo, que resulta, em certo ponto, em um ciúme doentio, atormentado, menos ocasionado pela relação adúltera flagrada (que ele mesmo afirma ensejar crise, mas não o fim do relacionamento) do que pela possibilidade de se ver suplantado, ridicularizado: “Mas há a decepção, e mais do que a decepção, o amor-próprio ferido, a humilhação, o triunfo frustrado que descamba para o ridículo (...)” (Carrère, 2024, p. 180). São as escolhas afetivas do narrador, ele mesmo participante de um caso extraconjugal, a parte mais exasperante do romance, a seara em que sua autocrítica ora tropeça em uma frieza orgulhosa de si e abrasivamente cruel, ora numa impotência desmedida, inconsolável, que o mantém oscilante perante uma mulher com quem já não pode mais estar, mas de quem não se desvencilha, insurgindo mais e mais em um comportamento ora irascível, ora inconsolável.
 
“Sophie tem razão. Sou adulto, tenho quarenta e três anos e, apesar disso, ainda vivo como se não tivesse saído da barriga da minha mãe. Me contraio, me encolho, me refugio no sono, na prostração, no calor, na imobilidade. Bem-aventurado e horrorizado. É isso a minha vida. E, de repente, não consigo mais suportá-la. Simplesmente não consigo mais. Penso: está na hora de sair. Como o paralítico do Evangelho que passou a vida deitado, lamentando-se em vão, e eis que lhe dizem: levanta-te e anda, e ele se levanta e anda.” (Carrère, 2024, p. 69)
 
Ainda no que diz respeito a essa relação, há um certo momento do romance que permite compreender o que considero ser o elemento mais fascinante e vexatório no narrador. Antes de uma nova viagem a Kotelnitch, depois de receber o financiamento para produzir um filme experimental, a ser montado conforme os acontecimentos e as experiências da equipe durante as filmagens, Carrère decide fazer uma surpresa para Sophie, cuja aparição ocasional na narrativa será a posteriori compreendida como indício de um cada vez mais distinguível distanciamento. Envolvido nos próprios projetos, Emmanuel, já então um amante distintamente negligente, escreve um texto para o Le Monde no qual se declara, a seu modo, para Sophie. “A seu modo” significa que a declaração amorosa toma forma como uma novela3 que exibe a todo o público francês uma dinâmica da vida íntima do casal, buscando o autor convencer a companheira a se masturbar — performando assim o que ele escreve — em um trem no qual ingressaria para encontrá-lo.



Muito houve o que se dizer sobre o texto. O próprio romance lida com aspectos da polêmica literária ensejada pela publicação. A novela, transcrita na íntegra, é produzida a partir de uma perspectiva insensível a qualquer ruído externo, da parte de um homem que credita como certa — de uma forma que ele mesmo considera precipitada depois de os eventos tomarem forma — a obtenção de resposta esfuziante, não apenas como amante, mas também como autor e filho. Ocorre, nesses termos, um autoconvencimento que demonstra uma personalidade na qual o próprio desejo e o senso de autoimportância podem ocasionalmente nublar as consequências das ações. Inscrevem-se na publicação do jornal, ademais, expectativas a respeito do desejo feminino que são bastante presunçosas, para não dizer constrangedoras, não ficando evidente, ao longo do romance, se a interlocutora real da novela teria apresentado a mesma reação da destinatária ideal, a Sophie dos sonhos do autor, que vai ao seu encontro tomada de voracidade sexual. A razão para que não haja essa confirmação é devida a um fato bastante simples: Sophie nunca ingressa no trem, nem sequer lê a novela, já então enredada nas complicações de uma gravidez indesejada de um homem que não é Emmanuel Carrère.
 
“Descubro na lista o telefone de Arnaud, que disco na esperança de que ele não esteja em casa numa hora dessas. Ouço o recado da secretária. Ele tem a voz de um homem bem jovem, uma voz mal impostada mas sem pose, a voz de alguém que não tenta se passar por outro. Não há nessa voz nenhuma ironia, nenhum distanciamento de si nem do seu papel, nenhuma suspeita de que se possa desempenhar um papel na sociedade, mas uma espécie de imediatismo ingênuo, entusiasta. É a voz de um rapaz que não se mira infindavelmente num espelho, que alimenta projetos realizáveis, que deposita confiança nos outros e lhes inspira confiança: o oposto do que eu era na idade dele e do que ainda hoje sou.” (Carrère, 2024, p. 198)
 
O autor que decide integrar a novela ao romance não é o mesmo que a escreveu, evidentemente. Ele já recebeu os louros e as pedras por sua ousadia e conheceu o fim da sua história com Sophie. A traição da companheira retira dele a glória que imaginara, a resposta idealizada, e é nessa medida que a quebra de confiança opera em um nível profundo, por atingir diretamente o ego, as expectativas daquele que se sabe grande escritor. Tudo isso é descoberto porque Carrère o expõe, e é este o ponto que retoma o que considero central na obra, o que a torna simultaneamente atraente e incômoda: parece haver honestidade no que é escrito. Soa genuíno o movimento do autor de demonstrar as alturas incompreensíveis a que chega a segurança no sucesso da empreitada jornalística a que se lança. A transcrição da novela no romance é apego à fidelidade dos eventos, mas também parece resultar de um orgulho ainda intocado pela quebra de expectativa. Mesmo quando são humilhantes os acontecimentos, revela que nenhuma reação ambicionada se tornou verdadeira, que seu mundo privado ruiu justamente no rescaldo de uma vaidade risível. A decepção, também ela autorreferida, é coerente com a persona egocêntrica, deprimida, deslocada, apresentada pelo escritor.
 
Essa honestidade, movimento de quem exerce um rigoroso exercício de autoanálise (reaparece agora o prefixo, agora sob lente mais positiva), revela comprometimento. Sem temer o ridículo, o controverso, o incoerente, Carrère leva a autobiografia para um terreno que perscruta os vícios, os tormentos e as paixões da própria alma, em uma atitude que, mais do que coragem, exibe um modo de compreender a literatura como um constante processo de desvelamento. Desse modo, se muitas vezes empreendemos na crítica a ele (a aquele que nos é apresentado como narrador no interior do romance), é porque ele (o autor que escreve a obra) assim permite que aconteça.
 
Argumentar-se-ia talvez que, do mesmo modo como não antecipou os efeitos da novela, o autor talvez não mensure quando sua comiseração se torna enfadonha, quando suas palavras sugerem uma origem obtusamente privilegiada, quando é por vezes piegas, produzindo uma afetação paradoxal e embaraçosamente sincera. Nesse caso, tudo que ele expõe não seria fruto de qualquer rigor literário, mas antes de uma miopia no que compete a si mesmo. É uma possibilidade perfeitamente adequada e que, como fica evidente agora, ocorreu-me muitas vezes ao longo da leitura.
 
Ainda assim, não me convence inteiramente essa perspectiva. Se existem momentos de indulgência do narrador-autor, eles se tornam, sob a lupa da produção literária e da escrita minuciosa de si mesmo, a demonstração de uma autoconsciência que não se permite qualquer evasão, qualquer subterfúgio. Carrère não se adoça, não oculta seus preconceitos linguísticos, não esconde a violenta irrupção do seu ciúme. Assim, ao investigar não apenas sua vida afetiva, mas os fantasmas que assombram a própria família, expondo ao longo do percurso o narciso que vive em si mesmo, eviscera o que foi recalcado (para utilizar um termo da psicanálise, citada ao longo do romance). É dentro desse processo, daquele que recebeu “a interdição” de exprimir “o horror, a loucura” (Carrère, 2024, p. 245), que a expressão se mostra como a saída para uma existência atormentada.
 
A figura do narrador mantém-se controversa e, ao fim da leitura, eu tive de concordar com ele que a “oscilação pendular que é meu sintoma, o mais insuportável de todos” (Carrère, 2024, p. 206) era, como escrevi ao lado da passagem, realmente insuportável. Ao autor, entretanto, é devido grande respeito, porque é incansável seu escrutínio, mesmo quando ele se mostra fatigante.
 
“Em volta deles, em toda a parte em Bordeaux e na França, havia uma verdade sobre a qual todos estavam de acordo: os resistentes eram heróis, os colaboracionistas, canalhas. Mas na casa deles, vigorava outra verdade: os resistentes haviam raptado e provavelmente matado o chefe da família, que havia sido colaboracionista e que eles sabiam muito bem que não era um canalha. Tinha um temperamento difícil, frequentemente se irritava, mas era um homem correto, honesto e generoso. O que pensavam não podia ser dito do lado de fora. Eram obrigados a se calar, ter vergonha.” (Carrère, 2024, p. 86)
 
Para que não reste a impressão de um romance ou uma resenha de uma única nota, é preciso dizer que a obra é tocante em diversas passagens. Algumas correspondem à relação do autor com a língua materna, o russo, e à sua inconstante jornada para aprendê-lo, como se houvesse — e é provável que haja — uma identificação acessível a ele apenas nesse segundo idioma, sendo o francês insuficiente para dizer algo de si mesmo. Em outras instâncias, relativas às relações que estabelece na pequena cidade russa, mediadas inicialmente por uma atmosfera romantizada que é depois desfeita pela interposição dos fatos, expõem-se vidas de impossibilidade e segredo, para as quais o narrador reconhece na chegada da equipe de filmagem uma quebra de rotina, para não dizer uma genuína esperança. São também muito sensíveis os momentos em que discute uma depressão familiar essencial, traço que, longe de ser exclusivo a si mesmo ou ao prolixo avô, enjeitado pela sociedade, é compartilhado por toda uma geração, herdeira do silêncio. Esse calvário é combatido pela existência do romance, endereçado à mãe do autor, Hélène Carrère, notável historiadora francesa, então revelada como filha envergonhada. A obsessão pelo dizer-se do escritor pode ser vista, dentro dessa compreensão, como um reflexo que combate esse silêncio fundamental incessantemente.
 
Resta, ao fim desta resenha, retomar o tema que a iniciou: a autobiografia. Ao longo da leitura, notei que talvez não haja razões para repeli-la. Embora haja eventos e produções (que tomam forma como elementos extraliterários palpáveis, quais sejam a novela e os dois documentários) transpostos da realidade, é impossível mensurar o que há ou não de ficção na obra. A questão não me interessa tanto quanto notar a ação estética de um autor que seleciona e estrutura seu texto, divide-o em capítulos que encerram determinados motivos, utiliza-se de diferentes gêneros ao longo da produção, alterna um sonho erótico e surreal com a descrição dos passageiros de um trem e sucede a essa descrição a tragédia de uma vida sequestrada pelo confinamento. Se não se pode dizer que o resultado aparenta ser tão desprendido da vida quanto seria a criação de seres ficcionais, mantém-se, de todo modo, a autonomia do processo de transpor a experiência para a linguagem.
 
Um romance russo é uma obra interessante, desconfortável, frustrante. Talvez as diferentes reações ensejadas por ela sejam justamente a razão para lê-la; talvez sejam motivação para evitá-la, o que é enfim também uma possibilidade. Diz o narrador à sua equipe de filmagem, em certo momento da obra, que “não, não é bonito, mas é a realidade, e viemos para filmar essa realidade” (Carrère, 2024, p. 123). Reformando apenas o termo “realidade”, que considero deslocado de seu sentido integral em qualquer literatura, mesmo a autobiográfica, eu diria que é isso que faz esse romance de Emmanuel Carrère: expõe deformações que de outro modo permaneceriam silenciadas, por dificilmente vencerem as interdições, se fosse outro o olhar.


______
Um romance russo
Emmanuel Carrère
André Telles (Trad.)
Alfaguara, 2024
248 p.


Notas:
1 O documentário, lançado em 2003, é intitulado Retorno à Kotelnitch (ou Retour à Kotelnitch). Emmanuel Carrère figura como diretor da obra.
 
2 Toda a experiência de András Toma e as idas consecutivas à Kotelnitch integram o documentário já introduzido.
 
3 A novela foi publicada no Le Monde em 12 de julho de 2002, sob o título L'Usage du "Monde”. Ela está disponível no arquivo do jornal.
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #609

A ópera da Terra ou a linguagem de Gaia: Krakatoa, de Veronica Stigger

Boletim Letras 360º #600

É a Ales, de Jon Fosse

Boletim Letras 360º #599