Um ditador na linha, de Ismail Kadaré

Por Henrique Ruy S. Santos


Ismail Kadaré. Foto: Eric Garault


 
Desde as primeiras luzes do racionalismo moderno, lançadas sobre o mundo por epígonos do Renascimento e do Iluminismo, as relações da arte com o mundo, digamos assim, externo se modificaram definitivamente. Afastando-se de maneira cada vez mais radical do domínio religioso e das funções de culto, a esfera do artístico passou a se autonomizar de maneira decisiva. A consagração do sentimento estético e da maneira tipicamente moderna como encaramos a ideia do Belo passa por esse processo de consolidação da arte como um mundo regido por valores próprios, ainda que, por vezes, subordinados a princípios absolutos.
 
Essa progressiva autonomização leva ao surgimento de tendências artísticas que, em última instância, se fecham sobre si mesmas e se concentram em seus próprios procedimentos e técnicas. O hermetismo literário, as concepções da ideia da arte pela arte e a popular imagem da torre de marfim são, de certa forma, manifestações de tendências que procuram isolar a arte de preocupações práticas ou cotidianas, num esforço demasiado justo de evitar que artistas tenham de se submeter a parâmetros ditos externos.
 
Como lembra Peter Bürger em seu Teoria da vanguarda, “só depois de a arte, no esteticismo, ter-se livrado inteiramente de todos os laços com a práxis vital é que o estético pôde se desenvolver ‘de forma pura’, o que, por outro lado, tornou reconhecível a outra face da autonomia, a inconsequência social.” (p. 58). Em outras palavras, se, por um lado, o afastamento da arte em relação aos ditames da vida prática concedeu a ela a possibilidade de caminhar por conta própria e de, assim, desenvolver suas formas e a consciência de suas formas de maneira sem precedentes, por outro lado, esse mesmo afastamento a levou a conviver com uma posição muitas vezes incômoda de pouco ou nenhum impacto social. Apartados um do outro, parece haver, assim, dois mundos: o da obra de arte, instaurado pelo autor por meio de uma organização específica de instrumentos e técnicas; e aquele da realidade exterior, com suas determinações políticas, econômicas etc.
 
Todavia, há também uma tensão entre as duas esferas, um atrito contido que está sempre pronto a liberar uma energia chamativa, mobilizada, às vezes, por acontecimentos banais, como as polêmicas literárias e publicitárias da semana, ou, em outros casos, por eventos que ficam para a história como paradigmas. A frequência com que essa energia é liberada aponta, com efeito, para o fato cada vez mais evidente de que a separação entre arte e mundo externo não é tão inequívoca assim.
 
Um desses eventos marcantes aconteceu no sábado do dia 23 de junho de 1934. Nesse dia, o poeta russo Boris Pasternak recebeu uma ligação telefônica de Josef Stalin. O assunto da inesperada comunicação era outro poeta, o também russo Óssip Mandelstam, que fora preso cerca de um mês antes por compor e declamar a um grupo seleto de companheiros (entre os quais o próprio Pasternak) um poema satírico dirigido à figura do dirigente máximo da União Soviética à época. Durante os mais ou menos três minutos em que Stalin e Pasternak se mantiveram, cada um, de um lado da linha, o primeiro nos recintos insondáveis do Kremlin, o segundo em seu apartamento na companhia de familiares e amigos, a colisão dos dois mundos, o do ditador e o do poeta, mostrava que há certa ingenuidade em acreditar que eles são assim tão separados.
 
É sobre esse enigmático intervalo de 3 minutos que ficaria na história que se debruça Um ditador na linha, livro que Ismail Kadaré publicou originalmente em 2018 e que chega ao Brasil em 2024 pela Companhia das Letras, com tradução direta do albanês por Bernardo Joffily.
 
Mas é com vagar e até mesmo com certo temor que o livro caminha até o fatídico momento. Estruturado em três partes, o romance dedica as duas primeiras a uma reflexão sobre a experiência do narrador-autor Kadaré em Moscou durante sua estadia como estudante no Instituto Górki, ao final dos anos 1950, e sobre o romance autobiográfico que escreveu acerca desse período, iniciado ainda enquanto o vivenciava, Muzgu i perëndive të stepës (algo como O crepúsculo dos deuses da estepe), inédito no Brasil.
 
Ao evitar uma cronologia linear, Kadaré parece querer antecipar certos paralelos possíveis entre si e Pasternak, quase como uma checagem de consciência antes que possa se debruçar sobre os atos do companheiro escritor. Porém, além disso, a antecipação de fatos que ocorreriam cerca de 25 anos depois do telefonema também ajuda a revelar as incontornáveis contradições não só do período histórico conturbado da Europa do século XX, mas das figuras individuais envolvidas no processo, sejam elas poetas ou ditadores.
 
Vamos aos fatos:
 
1. Em maio de 1934, Óssip Mandelstam é preso por escrever e declamar um epigrama crítico a Stalin, no qual chama o líder Comunista, entre outras coisas, de “o montanhês do Kremlin”, “criminoso” e “assassino”.
 
2. Em junho do mesmo ano, Stalin telefona a Boris Pasternak, que então gozava de prestígio entre a oficialidade, para saber o que este tinha a dizer sobre o poeta preso.
 
3. Mais de 20 anos depois, em 1958, Ismail Kadaré vai a Moscou para estudar no Instituto Górki, onde permanece até 1960. Nesse período, iniciou a escrita do romance que narrava as suas vivências na capital soviética, desde as amenidades da vida de estudante, até o assunto que tomou conta da vida intelectual e política na cidade, ocorrido ainda em…
 
4. …1958, quando Boris Pasternak é obrigado pelo governo da União Soviética, agora sob liderança de Nikita Khrushchev, a recusar o Nobel de Literatura que lhe seria concedido naquele ano. A aceitação do prêmio pelo autor soviético era vista pelos dirigentes do Partido como uma concessão ou mesmo uma capitulação a valores ocidentais burgueses, contrários, por óbvio, às diretrizes oficiais da URSS. Apesar da recusa, a Academia Sueca manteve a decisão e considerou Pasternak o vencedor daquele ano.
 
5. Em 1961, a Albânia socialista, sob liderança do estalinista Enver Hoxha, rompe relações diplomáticas com a União Soviética, em oposição à progressiva liberalização promovida por Khrushchev nos setores político e econômico, o que colocava a URSS em uma rota de afastamento da ortodoxia estalinista, defendida por Hoxha.
 
Anos depois, em 1976, Kadaré se veria na periclitante situação de submeter o romance escrito na juventude a um editor albanês. A posição da Albânia diante da polêmica do Nobel de Pasternak, ocorrida anos antes, era de crítica à União Soviética, mas não pelo achincalhamento promovido contra o escritor, e sim pela consideração de que houve pouca firmeza na repressão ao autor. O romance de Kadaré, nesse cenário, teria que desagradar a gregos e troianos, isto é, ser crítico tanto a Pasternak quanto à URSS, se quisesse ser publicado na Albânia. A parte inicial de Um ditador na linha se debruça sobre esse momento da vida de Kadaré e sobre os sentimentos conflitantes que emergiam diante da situação.
 
“Todas as versões pareciam delirantes. A neutralidade despontava aqui e ali, mas em seguida recuava. Eu era um forasteiro, casualmente topara com aquela mixórdia. Eles que fizessem o que bem entendessem, se apaziguassem ou se arrancassem os olhos. Eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu era diferente.” (Kadaré, 2024, p. 18)




Aqui a inversão cronológica prenuncia o que será revelado sobre a ligação de Stalin a Pasternak, e Kadaré parece fazê-lo como uma espécie de escusa de consciência, indicando ao leitor exatamente de que posição observa (e julga) Pasternak. Mas é também uma forma de demonstrar o quanto tudo era complicado, num mundo em que ninguém estava isento de ter de se comprometer política e artisticamente. Não era seguro para Kadaré ser visto como um escritor simpatizante ao Pasternak ganhador do Nobel, ainda mais em um momento em que seu próprio nome figurava, não pela primeira vez, entre os indicados ao prêmio. O seu “Eu era diferente” ecoa a resposta de Pasternak a Stalin quando perguntado sobre Mandelstam: “Nós somos diferentes, camarada Stalin”.
 
O narrador, durante todo o livro, se depara com o dilema fatal de muitos escritores que se veem submetidos ao cerceamento da liberdade artística ou até mesmo à ameaça da aniquilação física: engajar-se ou não se engajar? Até que ponto o escritor tem o dever de ser um porta-voz de injustiças e desmandos? Até que ponto deve desconsiderar a própria integridade em favor de uma missão artística? Enquanto essas questões perfazem a narrativa, o livro de Kadaré aos poucos aporta à conclusão para muitos inevitável. O narrador observa que o comprometimento ético parece forçar a entrada no texto até mesmo à revelia dos esforços de autocensura do autor:
 
“Por um momento meu olhar ficou como que preso numa armadilha, pairando no vazio. Estava de fato em minhas mãos deter aquela maravilha agourenta. Bastava eu dizer ao editor que iria rever o texto ainda uma vez, fazer alguns ajustes. Se preciso, arcaria com os custos…
 
Você poderia deter o romance, mas, ah, não ousa fazê-lo.
 
Bastou-me uma fração de tempo para compreender que não ousaria.
 
Nunca, disse comigo. Nunca jamais.” (Kadaré, 2024, p. 37)
 
A liberdade configura-se como imperativo quase automático da arte. A conclusão inevitável é a de que a obra que quer ser bem-sucedida sob tais condições é um trabalho de antemão fadado ao fracasso editorial. Uma obra, no dizer ambíguo de Kadaré, “acabada”, que, por seu caráter de afronta aos poderes estabelecidos em um regime de acossamento da arte, possivelmente não verá a luz do dia, mas cujo compromisso com o humano não permite ao artista arredar o pé, excluir uma vírgula sequer, sob pena de não só prejudicar o engajamento do esforço, mas de também sabotá-lo esteticamente. Ética e estética em união indissolúvel; a arte impelida ao vórtice da práxis social inadiável.
 
É curioso que seja justamente ao chegar à terceira parte, momento em que o narrador se detém nos três minutos de conversa entre Stalin e Pasternak, que o romance perca muito da sua força. Kadaré recorre a diferentes fontes para analisar as várias versões existentes sobre o que exatamente foi dito durante a conversa, desde testemunhas próximas e ilustres, como Zinaída Nikoláievna Pasternak, esposa do escritor, e a poeta russa Anna Akhmátova, sua amiga, até arquivos do KGB que detalham o ocorrido. São ao todo 13 as versões do telefonema, e o romance se debruça sobre cada uma delas, na busca da análise de cada pormenor. Um dos problemas é que não há exatamente muita variação para além do esqueleto da conversa que parece se manter igual em todas as versões: Pasternak atende o telefone e escuta do secretário Alexander Poskrióbichev que o camarada Stalin lhe deseja falar. Stalin entra na linha, comunica a prisão de Óssip Mandelstam e pergunta a Pasternak o que ele pode dizer a respeito do poeta. Em praticamente todas as versões, Pasternak esboça um distanciamento: “Eu o conheço pouco” (1ª versão, p. 56); “Você sabe melhor que eu, camarada Stalin” (2ª versão, p. 61); “Não houve entre nós uma verdadeira amizade” (5ª versão, p. 83) etc. Ao que Stalin, também na maioria das versões, responde em tom crítico, reconhecendo a falta de camaradagem de Pasternak para com o colega preso: “Ao passo que eu posso lhe dizer que você é um péssimo camarada, camarada Pasternak” (1ª versão, p. 56); “Caso um poeta amigo meu fosse jogado na prisão, eu moveria céus e terras para salvá-lo” (7ª versão, p. 92), e assim por diante.
 
É com obsessão que Kadaré se volta para esses 3 minutos, analisando cada detalhe, cada pequena mudança de uma versão para outra. Em muitos casos, o texto de Kadaré começa a ficar repetitivo, com a iteração das mesmas questões, dos mesmos enigmas que se impõem ao escrutínio do narrador: o que estava por trás da ligação e da reprimenda final de Stalin? Por que Pasternak não defendeu o colega? E se o fizesse, qual teria sido a atitude do ditador? O próprio narrador parece ciente disso: “Em não raras ocasiões parecia-me que aqueles três minutos de Pasternak não passavam de mais uma de minhas manias exageradas, que eu faria bem em abandonar.” (Kadaré, 2024, p. 109)
 
Em muitos casos, na ausência de novidade em uma nova versão, o comentário se desloca da conversa em si para a testemunha particular responsável pela variante do relato em questão. Em outras situações, a nova versão é apenas um ensejo para que o narrador faça comentários mais abrangentes sobre a relação entre os regimes socialistas da Europa do século XX e a literatura.
 
Nessa linha de reflexão, uma das questões centrais para Kadaré são as mutações culturais vivenciadas em cada experiência particular de transição do capitalismo para o socialismo, mas principalmente o que todas podiam ter em comum. Com o apagamento ou a tentativa de apagamento das instituições burguesas e dos seus resquícios, todo um universo simbólico é abalado no processo. Saem de cena as figuras algo românticas do escritor atormentado, do artista boêmio e das figuras “grotescas”, e é com pesar que Kadaré faz essa observação, pois o que surgiria no lugar representava para o autor algo muito mais assombroso: um festival de sorrisos que mal escondiam a aquiescência aos mais inenarráveis horrores, estampados nos rostos de intelectuais castrados e escritores pautados por cartilhas prescritivas.
 
Os vínculos macabros entre os regimes socialistas do século XX e a vida e a obra dos escritores são o cerne de Um ditador na linha, e a conversa telefônica que Kadaré tão minuciosamente examina é, para o autor, o paradigma mais representativo do caráter enigmático da coisa toda.
 
O principal trunfo do livro, nesse aspecto, é o que Kadaré descobre, em última instância, na relação tirano-poeta. O romance vai além da observação fácil que enxerga o elo entre o ditador e o escritor unicamente como a relação unilateral entre o dominador e o dominado, o criminoso e a vítima. O que se evidencia, em verdade, é que há uma dialética implícita na relação, uma interpenetração dos opostos, de modo que os papéis se tornam intercambiáveis. O ditador, ao reconhecer o perigo que o poeta representa, investe-o, contraditoriamente, de poder. Poder que o poeta usa para fazer do ditador a vítima de seus epigramas, para desnudá-lo ao povo e à história como o covarde que é. O telefonema de Stalin, se em alguma medida amedronta Pasternak, também parte de um lugar de medo e insegurança: o quão perigoso é meu inimigo? Fiz bem ao prendê-lo? O título original do romance, aliás, Kur sunduesit grinden, em tradução literal é algo como “Quando os governantes brigam” e evoca precisamente essa homologia que Kadaré observa.
 
“O tirano e o poeta, por mais opostos que se julgassem, eram dois chefões1. O primeiro impacto do termo era sombrio: evocava opressão, violência, derrocada. No entanto, como sucede muitas vezes em casos assim, a linguagem humana criara empregos atenuados. A chefia ou o chefão poderiam ser movidos por um espírito malévolo mas também por um artista genial ou uma loura sedutora.” (p. 131)
 
O poeta e o ditador, dois soberanos de dois mundos em choque. O último livro de Ismail Kadaré, falecido aos 88 anos no dia 1º de julho de 2024, é testemunho de um autor para quem a arte nunca pôde reinar em paz em uma torre de marfim, apartada das preocupações da história. Entender se essa impossibilidade é imperativa ou apenas uma opção do autor engajado é um dos dilemas aos quais Um ditador na linha se dirige. A obscuridade e o caráter lacunar das questões com que o livro lida tensionam o tempo todo os limites do que é possível à história capturar e do que cabe à fabulação literária entender. Mas o romance derradeiro de Kadaré não mergulha nas fissuras para preenchê-las imaginativamente, e sim para entender os enigmas que nelas se escondem. A empreitada é imperfeita e soa por vezes repetitiva, todavia não tanto as respostas, mas as perguntas que Kadaré tão obsessivamente perseguiu solidificam, ainda mais uma vez, os liames contraditórios que ligam a arte à história e que dão à literatura sua autonomia para pensar a realidade.


______
Um ditador na linha
Ismail Kadaré
Bernardo Joffily (Trad.)
Companhia das Letras, 2024
144 p.
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Notas
 
1 A escolha de tradução de Bernardo Joffily neste trecho-chave do texto não deixa de causar estranhamento. Para a expressão “ishin të dy sundues” no original, o tradutor opta por “eram dois chefões”, quando também eram possíveis expressões como “déspotas”, “soberanos” ou “governantes”.
 

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