Todos juntos, de Vilma Arêas

Por Eduardo Galeno




Num sentido certeiro, nós podemos enunciar que Vilma Arêas é mestre da forma breve. O que significa: ela detém esse aspecto correlativo que o conto curto — sem o floreio técnico da narração do romance ou da novela — precisa ter para dar seu respiro de vida.
 
Em Todos juntos, reunião de escritos ficcionais do período entre 1976 e 2023, quer dizer, de toda a sua ficção (que começa em Partidas, sob a ditadura militar, e escoa em Tigrão, escrito durante o governo Bolsonaro e a pandemia da covid-19), Arêas elenca variações do seu estilo como “contista”. Contista entre aspas: ela, além de resgatar a astúcia da velha estrutura das histórias lineares, também brinca com o conto não-genérico.
 
Vilma adentra num jogo que é assumidamente característico da contraparte dos escritores de nosso tempo: não generalizar. Ou melhor: não corresponder — pelo menos no limite da produção, do mercado e da distribuição literárias — ao ethos dominante. Seus contos poderiam ter sido postos como poemas; às vezes eles se fragmentam, às vezes eles são esféricos até demais.
 
Alguns dos melhores momentos desses episódios são os pequenos cismas que os enfeitam: a conversa atrapalhada e engraçada de uma mulher com um sem-teto, a comparação da cama com a praia, um pequeno tratado sobre a virtualidade-realidade das relações… isso ao todo configura um plano bem distinto que me fez perder o senso de hora. A multiplicidade de cenas e temas faz o livro ser pegajoso. Ainda mais com os leves toques de humor, que normalmente são acompanhados de uma linha hermenêutica (ou seja, profunda, nada gratuito).

Isso faz retornar ao que Ricardo Piglia falou em algum lugar de 1974 (ele estava fazendo leitura de Macedonio Fernández): há um ritmo de condensação sintática na brevidade. Vejamos alguns riscos de “Rol”, de Trouxa frouxa (2000):
 
MÃE
       é como o boi
       até os chifres se aproveitam
 
OS MORTOS
      que passem longe de minha porta
 
Não sei se ficou óbvio, mas a estratégia que aí reside é igual à do haicai. Igual à do diário fica sendo “Ele”, também do mesmo livro:
 
“Pensa no pai e chora. O pai que teria hoje cento e trinta e três anos.”
 
São essas notas que Todos juntos sai carregando pelas 550 páginas, passando da lógica política à erótica, da íntima à impessoal, talvez até contaminando uma na outra, uns nos outros.
 
E o que tiramos? A feição de uma escritora marginal, pouco conhecida na história das letras brasileiras. Todos juntos é um perfil que nos fala com afinco e razão através da forma, plano de expressão — como alguém que lê esse texto já deve ter percebido —, mas principalmente pela intuição que ela descarrega. Essa intuição permanece um mistério. Cortázar chamou de “maravilha” a suspensão de sentido que, com certeza, Vilma traz para a gente.
 
“Braço, abraço, ilharga, sal”, murmurou a velha na história “T de teorema”. Ela pediu para que a outra mulher decifrasse o emblema antes da morte. É a mesma configuração em que as histórias de Todos juntos estão destinadas: a pulsação interna que elas irão receber como sintoma do delírio, da literatura como delírio e fuga do real.
 
Precisamos perceber nosso contato com as páginas para que elas sejam puxadas com o frescor e vivacidade que a literatura remete.
 
Ao ler os “curtas” — porque Vilma faz cinema, compõe imagens aqui —, fui desafiado a pensar como o cultivo da letra (afastando a instituição literatura) é ainda necessidade. Vilma faz um grande molde com as letras. É pelo mínimo que ela se esconde na grandeza.


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Todos juntos (1976-2023)
Vilma Arêas
Samuel Titan Jr. (Org.)
Editora Fósforo, 2023
560 p.

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