Rulfo, Miyazaki, a morte

Por Henrique Ruy S. Santos


Abraham Matias. Ilustração para Pedro Páramo.


No romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo, Juan Preciado caminha por Comala, a terra natal de sua mãe, sem aparentemente travar contato com nenhum habitante vivo: ruas vazias, casas derruídas, murmúrios que ecoam pelas paredes. Em A viagem de Chihiro, filme de Hayao Miyazaki, Chihiro se desgarra dos pais e perambula por ruas igualmente vazias, mas que guardam algo de familiar e reconhecível: restaurantes desocupados, fumaça expelida por uma chaminé, um trem que passa com velocidade. É a um certo tipo de morte que ambos caminham, o que se torna logo reconhecível pelo acúmulo de rastros e índices da transmutação da realidade sensível em um mundo de espectros, de fantasmagorias.
 
Chihiro continua a caminhar até que um garoto desconhecido surge e lhe adverte que é preciso sair dali, pois a noite se avizinha. “É que aqui, essas horas são cheias de assombrações. Se o senhor visse a multidão de almas que andam soltas pelas ruas... Assim que escurece, começam a sair” (Rulfo, 2023, p. 84), previne a irmã de Donis, uma das aparições com que Juan Preciado trava contato.
 
É para encontrar seu pai, Pedro Páramo, que o personagem do romance de Juan Rulfo vai a Comala a pedido da mãe já falecida. “Não peça nada a ele. Exige o que é nosso. O que ele tinha de ter me dado e não me deu nunca…” (p. 25). Completamente desfigurada em relação às lembranças da mãe, a Comala que Juan encontra é a das “casas vazias; as portas cambaias, invadidas pela erva” (p. 30), sem nenhuma criança a brincar na rua no horário em que se espera ver crianças brincando na rua.
 
Chihiro, ao correr de volta aos seus pais, encontra-os transformados em porcos que se empanturram de comida, num acesso grotesco de gula. Num caso como no outro, seria a morte o esvaziamento do que é familiar, aquele estranhamento fundamental, a vida ao avesso?
 
Mas a personagem de Miyazaki, subitamente imersa em uma nova realidade, logo se vê obrigada a trabalhar para se integrar à nova ordem de seres sobrenaturais que a cercam e reencontrar seus pais. É preciso assimilar aquele mundo novo antes de retornar. A morte é algo que se conquista, que se supera a duras penas.
 
Juan Preciado, diante das aparições cada vez mais inexplicáveis de pessoas mortas, antigos (mas também atuais) habitantes da cidade natal de sua mãe, dilui a dúvida e o espanto na neblina da própria confusão. Frequentemente cede ao sono e ao cansaço, até que fenece por si próprio. “Eu achava que aquela mulher estava louca. Depois não achei mais nada. Eu me senti num mundo distante e deixei-me arrastar. Meu corpo, que parecia afrouxar-se, dobrava-se diante de tudo, havia soltado suas amarras e qualquer um podia brincar com ele como se fosse de trapo” (p. 35). A morte é algo a que nos rendemos, descanso.
 
No novo mundo em que Chihiro se encontra, é preciso aprender um ofício, estar em movimento. Tudo é estimulante, há dinamismo em cada plano, das pequenas (os diminutos seres que ajudam a manter a casa de banhos funcionando) às grandes coisas (um trem corta a imobilidade do mar à distância). Os outros: guias. A morte: passagem.
 
— Como é que o senhor disse que se chama o povoado que se vê lá embaixo?
— Comala, senhor.
— Tem certeza que é Comala?
— Tenho sim, senhor.
— E por que parece tão triste?
— São os tempos, senhor (p. 26).
 
Em Comala, Juan Preciado não vê propriamente movimento, vê vestígios, ouve ecos. Ouve murmúrios de vozes, risadas, o balançar de folhas de árvores já mortas, “carretas vazias, remoendo o silêncio das ruas” (p. 77). Os rumores de festas há muito festejadas e os latidos de cães que não se veem lançam uma neblina sobre a decrepitude real do lugar, onde tudo parece tender a uma imobilidade espectral, de sobressaltos vãos. Os outros: anfitriões. A morte: chegada.
 
No filme de Miyazaki, como aliás é comum a boa parte de sua filmografia, o voo é a imagem-alegoria preferida para significar a libertação interna, a alteração de paradigmas de vida. Pululam em sua obra os seres e os objetos voadores (dragões, pássaros de toda espécie, aviões). Há uma força que impulsiona ao além, à busca dos horizontes em fuga das realidades mundanas.
 
É à terra, em última instância, que se dirigem os habitantes de Comala e da vizinha Media Luna. É enterrado que Juan Preciado nos narra o que lhe aconteceu desde que chegou ao povoado, onde os horizontes são postergados pela imposição do domínio de um único homem. E não importa a direção em que se olhe, são as terras de Pedro Páramo que se avistam. “Só eu entendo como o céu está longe de nós” (p. 34), lamenta Eduviges Dyada, outra das aparições que Juan Preciado avista ao chegar ao lugar.


Frame de A viagem de Chihiro


Em A viagem de Chihiro, há uma sobreposição do valor mítico da realidade em detrimento de explicações racionais no mundo em que a protagonista se encontra. Talvez haja uma ordem obscura que presida aquele universo, mas ela sempre escapa, elide-se para dar lugar ao encantamento, ao maravilhoso. Há conflitos e paixões em jogo muito maiores que a garota recém-chegada, e, ainda que sua jornada a transforme, ela jamais pode esgotar os dons da travessia. A morte, ainda que a engrandeça, sempre guarda algo de impenetrável.
 
No âmago do romance Pedro Páramo, há a ambiguidade onipresente entre o físico e o espiritual, uma dialética cuja síntese são as ruínas sobre as quais se erige a narração: ruínas das casas, das pessoas, do tempo. Comala é o retrato do desamparo físico e espiritual, um povoado abandonado por Deus e subjugado pelos homens, onde as almas penadas vagueiam sem ninguém que possa orar por elas. O agir de forças maiores que o humano, que se faz sentir no pendor propriamente mitológico e arquetípico do livro, jamais se sobrepõe a um eixo calcado na realidade do México e que dota a obra de coordenadas políticas e históricas específicas. É pelo jugo de Pedro Páramo e pela negligência do Padre Rentería que Comala perece física e espiritualmente. A morte, ainda que impenetrável, tem rosto humano, e seus tentáculos de destruição e miséria são por demais conhecidos.
 
Apesar (e por causa) de serem díspares em inúmeros aspectos, o romance do mexicano Juan Rulfo e o filme do japonês Hayao Miyazaki estabelecem um diálogo que, ao eleger a morte — literal e metafórica — como tema, trata-a de maneira universal, mas ainda assim muito arraigada em experiências históricas e culturais particulares, seja no aproveitamento dos fatos da Revolução Mexicana no caso de Rulfo, seja no uso do folclore e imaginário japoneses no caso de Miyazaki. A consciência da impenetrabilidade das questões com que lidam concede aos autores a saída formal que cultivam: o fragmentário, o irracional, o fantástico. A morte é a perdição, o esquecimento e o medo de um povo devastado. Mas é também reencontro com a mãe e com um antigo amigo de infância. Talvez seja um fim, mas muitas vezes é preciso fazer dela um começo. Os murmúrios dos mortos de Comala e os eventos espantosos que acontecem em volta de Chihiro podem ser um testemunho de forças desestabilizadoras, tanto individuais quanto coletivas, mas falam também da paradoxal potência imaginativa a que a morte dá vida.
 
 
Referências
Rulfo, Ruan. Pedro Páramo. Tradução de Eric Nepomuceno. 9 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2023.
 
A viagem de chihiro. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Toshio Suzuki. Tóquio: Studio Ghibli, 2001. 125 min. .
 

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