Oito poemas de “O Orvalho Numa Folha de Lótus”, de Ryokan

Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)*




 
 
I.
 
quem disse que os meus poemas são poemas?
os meus poemas não são poemas
quando souberes que os meus poemas não são poemas
então poderemos falar de poesia!
 
 
 
II.
 
quando era jovem
passeava pela cidade, um rapaz alegre e charmoso
ostentando um manto do mais suave que há
montado num esplêndido cavalo castanho
durante o dia, galopava pela cidade
de noite, embriagava-me de pétalas de pessegueiro, junto do rio
nunca pensava em voltar para casa
quase sempre acabava os meus dias num pavilhão do prazer
com um grande sorriso no rosto! 
 
 
 
III. ao meu professor
 
uma velha campa, escondida no sopé duma colina deserta
coberta de ervas daninhas, crescendo sem controlo ano após ano
não há quem cuide da campa
só de quando em vez um lenhador passa por aqui
em tempos fui seu discípulo, um jovem de grande cabeleira
absorvendo toda a sua sabedoria junto do Rio Estreito
uma manhã iniciei a minha jornada solitária
e em silêncio os anos passaram entre nós
agora, regresso para o encontrar em repouso
como poderei honrar o seu espírito que partiu?
derramo uma concha de água pura sobre o túmulo
e ofereço-lhe uma oração silenciosa
o sol de súbito desaparece por detrás da colina
sou envolvido pelo rugido do vento nos pinheiros
tento ir embora, mas não consigo
as lágrimas ensopam-me as mangas
 
 
 
IV.
 
se alguém pergunta
pela minha cabana
respondo:
o extremo oriental
da via láctea
 
como uma nuvem vagueio
preso a nada:
simplesmente deixo-me ir
abandonando-me
aos caprichos do vento
 
 
 
V. orquídea
 
no vale profundo, uma beleza oculta-se:
serena, duma doçura sem par
na tranquila sombra do bambuzal
por um amor parece suavemente suspirar
 
 
 
VI.
 
sem usar a mente, a flor convida a borboleta
a borboleta visita a flor sem recurso à mente
a flor abre-se, a borboleta vem
a borboleta chega, a flor abre-se
não conheço o outro
o outro não me conhece
ao não conhecer seguimos o curso na natureza
 
 
 
VII. visitando o pico das nuvens com o sacerdote Teng, no outono
 
a existência humana neste mundo:
lentilhas d’água à deriva no manto aquoso
quem poderá alguma vez sentir-se seguro?
foi por esse motivo
que peguei no bordão de monge, deixei meus pais
e aos amigos disse até à vista!
apenas uma túnica remendada
e uma taça proveram-me sustento todos estes anos
tenho carinho por esta pequena cabana
muitas vezes passo nela o meu tempo —
somos almas iguais
nunca preocupados com quem é o convidado e o anfitrião
o vento sopra nos altos pinheiros
a geada enregela os poucos crisântemos que sobraram
de braço dado, permanecemos acima das nuvens
juntos, como um só, deambulando longe de tudo
 
 
 
VIII.
 
observo as pessoas neste mundo
a desperdiçar a vida na cobiça das coisas
nunca capazes de satisfazer os seus desejos
caindo em profundo desespero
torturando a si próprias
mesmo que consigam aquilo que desejavam
por quanto tempo serão capazes de desfrutar?
por um prazer divino
sofrem dez tormentos infernais
vinculando-se com maior firmeza ao rebolo
essas pessoas são como macacos
frenéticos a tentar apanhar o reflexo da lua na água
caindo depois no remoinho
sofrem infindamente, os que apanhados são nas teias do mundo ilusório
esquecido de mim, por elas inquieto-me a noite toda
sem conseguir estancar o rumo das lágrimas


Ligações a esta post:
>>> Em outubro de 2023, esta seção trouxe outros poemas e um resumo biográfico de Ryokan
 
 
* As versões são a partir da tradução inglesa de John Stevens em Dewdrops On a Lotus Leaf – Zen Poems of Ryokan (Shambhala Publications, 2004).
 
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Boletim Letras 360º #596

Boletim Letras 360º #607

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597