O urso e o poder terapêutico da arte

Por Rafael Kafka




Tenho repetido há algumas semanas em posts em meu Instagram que O urso tem perturbado minha mente. Acho que como todo leitor mais apaixonado, gosto da ideia de me encontrar no texto lido, seja ele escrito ou audiovisual. Mas a série de Ayo Edebiri me pegou de um jeito que não sei descrever. Eu me enxergo demais em Carmy Berzatto, o protagonista, que possui um talento sem igual na cozinha e fortes crises de ansiedade que muitas vezes beiram o pânico. Há outro detalhe que compartilhamos: o fato de termos perdido alguém próximo a nós e não termos processado plenamente esse luto.
 
Uma vez aprendi ouvindo um podcast sobre psicanálise que há muitas formas de alguém cometer suicídio. Quando digo isso não falo dos métodos em si de dar conta do ato, mas das diferentes maneiras em que a morte é atingida. Ainda não ficou claro como e o porquê, mas Michael se mata pouco antes do começo da sequência cronológica de O urso. Mesmo morto ele é um personagem constantemente mencionado e importante na trama e suas cenas em flashback muito me lembraram os recursos utilizados por Gabriel García Márquez em O amor nos tempos do cólera para uma personagem importante no começo do relato e ao mesmo tempo fazê-la presente durante toda a narrativa.
 
Um grande amigo meu também se matou. Mas ele foi em um estilo mais parecido com o de Makoto Shishio, carismático criminoso do mangá Rurouni Kenshin. Ele morreu queimando. Como Kurt Cobain, dizia que não iria morrer definhando, iria morrer no ápice do calor da vida. Não queria dar trabalho, não queria ser dependente dos outros e queria acima de tudo ser alguém que vivesse a vida intensamente.
 
Na primeira crônica que escrevi para o Letras in.verso e re.verso ele estava presente. Foi meses antes de ele partir desse plano devido aos excessos de sua vida aventureira. Lembro de fazermos juntos os percursos pelas praias da ilha de Cotijuba voltando para o trapiche onde pegamos o barco de volta para Belém e eu me sentir um herói beat se descobrindo e finalmente rompendo barreiras econômicas e de medo. Ledo engano. Como o Traveler de O jogo da amarelinha, eu sinto-me travado ainda, tendo pouco viajado nessa vida e tendo dispensado inclusive um ingresso para o show de Caetano e Bethânia em Belém porque ao mesmo tempo que tenho uma fobia social muito forte, tenho uma profunda dependência de companhia e imaginar que eu ficaria sozinho no espetáculo me deu temor e tremor.
 
O fato é: eu não superei esse amigo. Sua falta me atormenta diariamente. Não que eu me pegue pensando nele nessa frequência, mas constantemente me pego a refletir como seria se ele estivesse aqui, me ajudando em meu tempo de loucura e avaliando se melhorei nesse tempo todo que estou em casa lendo, fazendo terapia e saindo para atividades acadêmicas.
 
Escrevi sobre O urso várias vezes em minhas redes sociais. Compartilho cenas e trechos sempre que os vejo aparecendo para mim. Sinto que ali estão refletidos muitos dos meus problemas e dilemas, não apenas na figura do protagonista, mas realmente eu me vejo demais nele.
 
Há uma cena em um episódio em especial que muito me tocou quando Carmy conversa com sua irmã Natalie e ela o critica por ser alguém muito fechado. O diálogo se desenrola numa sensibilidade incrível e Carmy confessa que sempre se viu travado dentro de si mesmo com sentimentos confusos os quais ele não conseguia processar e por isso não fazia muito sentido perguntar a outra pessoa como ela se sentia, ouvir outro ser, ter empatia.
 
Peguei-me pensando no quanto de vezes eu queria somente ser entendido e compreendido, pois não queria olhar para meu interior e queria apenas o reforço positivo das pessoas ao meu redor. Ou um conselho que me tirasse todas as dúvidas de como agir num contexto específico, conselho que não seria cumprido muito provavelmente pois minha mente confusa já tinha definido o que fazer, eu apenas não entendia e geralmente era uma escolha infeliz. Fiquei pensando em como eu interrompia as pessoas, cortava suas falas, era insuportável e chato e sufocante pois não queria olhar para mim mesmo, mas aquilo que os psicanalistas chamariam de inconsciente insistia em se fazer aparece e manifestar sua forma tortuosa.
 
Precisei chegar ao fundo do poço para processar a morte de meu amigo. Quando éramos amigos, eu falava longamente e ele me ouvia numa espécie de método freiriano me ajudando a pensar sobre escolhas a serem feitas. Em quase dez anos de amizade não lembro de ele me dar um simples conselho, mas sim apontando coisas que, de repente, eu não enxergava. Carmy estava tão obcecado com seu processo de aperfeiçoamento no ato de cozinhar que não entendeu quando seu irmão precisava de ajuda. Eu estava tão obcecado em me fazer entender quando deveria estar em terapia que não percebi quando meu amigo precisava de ajuda.
 
E isso O urso me faz lembrar com uma poesia agressiva o tempo todo. Cada episódio assume um ritmo muito peculiar, indo do caos total a uma bela sinfonia que comprime o tempo, como o primeiro episódio da terceira temporada que acabo de assistir e desvela mais detalhes da morte de Michael. A trilha sonora também é algo maravilhoso e cada música parece se encaixar muito bem no momento emocional do que está sendo narrado. Além da possibilidade de redescobrir antigos amores musicais que embalaram épocas difíceis, como Wilco, The Breeders, The Replacements e Elvis Costello, posso conhecer bandas novas que possuem uma sonoridade bem interessante.
 
O urso é uma série que me faz pensar no poder terapêutico de uma obra de arte por meio da catarse. É bem complexo afirmar que obras de arte tornam as pessoas melhores, porque grandes genocidas eram homens cultos e de gosto relativamente sensível. Todavia é evidente que a arte tem o poder de provocar a fundo nossas sensações e emoções e promover reflexões sobre temas que muitas vezes passam despercebidos por nós. Nesse sentido, a série não é um produto que fala em si de culinária, mas sim de saúde mental e como ela é afetada pela pressão do trabalho em uma sociedade capitalista.
 
Apesar de Carmy ter o destaque central da história, outros possuem narrativas que são também muito tocantes pelos aprendizados que são trazidos pelas relações de trabalho, como Richie, Sidney e mesmo o discreto Marcus. Cada um deles ensina que se o amor pelo trabalho não cura as mazelas do sistema social no qual vivemos, amar o trabalho e a quem está ao nosso lado é um passo importante no sentido de melhorar o modo como as coisas estão.
 
Penso em Claire Bear como penso na musa godardiana. Esse texto, pensei, se encerraria no parágrafo acima. Mas de repente senti a necessidade de falar nas duas mulheres. Há um texto circulando no Instagram que diz que numa relação podemos ser um Carmy ou uma Claire, alguém que tenta de todas as formas sabotar as mais diversas maneiras de ser feliz com alguém ou alguém que não importa o que aconteça luta pelo amor que está posto diante do nós.
 
Eu fui Carmy com diversas mulheres em minha vida. Mas em especial com a musa godardiana. Carmy é obcecado pelo trabalho. Ele se dedica de corpo e alma como que querendo esconder sua angústia e seus sintomas físicos de si mesmo. Carmy me faz pensar em mim mesmo lendo diversos livros e querendo ler mais porque não quero pensar nas baboseiras do cotidiano, baboseiras que muitas das vezes podem não ser assim tão bobas.
 
A leitura em minha existência é uma válvula de escape, uma forma de fuga de mim mesmo. Lembro que a musa godardiana mandava mensagens querendo discutir a relação e eu reagia com raiva porque não queria perder tempo com aquilo. Queria ler, ver séries, ouvir música. Na verdade, eu não queria pensar em meus erros como homem, em meu machismo tosco que aquela moça franzina me fazia encarar com a crueza de uma vítima de comportamentos reprováveis.
 
Assim como Claire esteve no momento da morte de Michael, a musa godardiana esteve comigo em muitos momentos difíceis. Ela só pedia uma coisa a mim: que eu fosse disponível. Mas como Carmy eu estava obcecado demais em fugir, entregava demais de mim mesmo em todas as maneiras de fuga dos meus próprios princípios perturbadores. Quando a musa se ia, eu ia atrás dela com todo amor do mundo para quando a recuperasse ser o homem indisponível de novo e perder tudo. E esse ciclo demorou anos até ela decidir ir de vez e eu ficar com memórias e culpa me atormentando.
 
Carmy diz sem querer a Claire que tudo é uma perda de tempo, que ele não precisa disponibilizar prazer ou divertimento a ninguém. Ele se autossabota numa cena épica em que um lacaniano diria que a linguagem se perdeu tentando se achar, fugindo para não ferir o outro, mas não deixando o outro seguir sua vida de modo pleno e feliz. Dragando o outro para os vícios que servem de válvula de escape, de anulação da própria consciência
 
Claire Bear pela simplicidade de expressar seu afeto me faz pensar na musa godardiana e na obsessão que tenho em fugir — a ponto de tomar café e estimulante para ficar ligado e estudar com mais afinco, mas conseguindo na verdade ficar mais obcecado pelos meus demônios internos. Mesmo a leitura pode ser um vício, um vício baseado em princípios sóbrios e nobres ou uma escapatória de uma realidade que nos oprime. E O urso me faz pensar que há muitas coisas das quais tentamos fugir rotineiramente e nos batemos com elas porque elas seguem ali, como elementos inconscientes ou como crenças enraizadas e limitantes, como preferir a abordagem psicoterápica usada.
 
O urso me gerou muitos textos de reflexão, muitos compartilhamentos de cenas e de memes. É uma série que me faz entender muita coisa de mim e de minhas válvulas de escape. Era o tipo de coisa que eu precisava ver no momento que estou vivendo em minha existência. Às vezes penso que gostaria de ver os episódios de uma única vez, mas fico com receio de terminar tudo e adio o máximo que posso para ver novamente, remoendo cada cena de um modo muito poético.
 
Como uma boa obra de arte, O urso mostra em mim aquilo que me incomoda e que preciso trabalhar poética e terapeuticamente para ser alguém mais autônomo e livre. Posso dizer que essa série tem me tornado alguém melhor no sentido em que me ajuda a não mais fugir de mim mesmo e a não deixar a história com a musa godardiana ser algo que nada me ensinou de bom.

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