Não ler

Por Alejandro Zambra


Arte: Sumuyya Khader


 
Como falar dos livros que não lemos é o título do ensaio de Pierre Bayard que por estes dias se lê ou ao menos se vende em todo o mundo. Não posso dizer muito mais sobre o livro pois, lamentavelmente, não o li, mas o tema me parece de imediato familiar.
 
Experimentei nos últimos anos a felicidade de não ler alguns livros que, se tivesse continuado trabalhando como crítico literário, deveria ter lido. Tiver de comentar certa vez, por exemplo, um pobre romance de Jorge Edwards inspirado na figura de Joaquín Edwards Bello, de modo que há alguns meses, ao saber que o novo alvo de Edwards para suas investigações novelísticas era o poeta Enrique Lihn, respirei bastante aliviado por não ler La casa de Dostoiesvsky. Pessoas com menos sorte que eu leram o romance e consideraram que ele prejudicava a memória de Lihn, motivo pelo qual Edwards — incensado de forma quase unânime por sua obra anterior — desta vez foi atacado injustamente, pois até onde sei seu livro não era uma biografia e sim um romance.
 
Os ataques a Edwards foram tão furiosos que até me davam vontade de defendê-lo, mas para isso eu precisaria ter lido as trezentas e tantas páginas do livro. Certamente vários detratores de Edwards nem mesmo leram La casa de Dostoievsky, mas não há por que culpá-los, pois o pai desta tradição de não leitores é justamente o próprio Edwards, que há alguns anos apresentou Epifanía de una sombra, a obra póstuma de Mauricio Wacquez, dizendo que havia chegado somente à metade, mas que sem dúvida se tratava de um romance esplêndido, já que Mauricio escrevia muito bem. Edwards também apresentou Os detetives selvagens confessando, diante de um atônito Roberto Bolaño, que ainda não havia terminado de ler o romance, e na última Feira do Livro de Madri a vítima foi novamente Bolaño: no âmbito de uma homenagem, Edwards disse que havia tentado muitas vezes ler 2666 e que havia até mesmo comprado vários exemplares em momentos diversos, de modo que pensava em organizar um rifa com todos aqueles livros não lidos.
 
Talvez naquela tarde Edwards quisesse responder desta forma à imprudência que minutos antes eu havia cometido na mesma mesa, já que diante da pergunta sobre a recepção chilena de Bolaño não pude deixar de lembrar a polêmica entre Óscar Bustamante e Agustín Squella, que a meu ver foi um capítulo-chave na história da não leitura chilena. A exposição de Squella foi excelente, muito melhor, porém, enquanto desafio estilístico, havia sido o protesto de Bustamante, que admitia não ter lido 2666, mas afirmava que sem dúvida era um grande romance.
 
Somou-se recentemente a esta tendência o narrador Marcelo Lillo, afirmando que a literatura chilena não lhe interessa e declarando ao mesmo tempo que com seu livro de contos pretende renovar a literatura chilena. É curioso querer renovar um panorama que se desconhece, ainda que estes atrevimentos sejam, de alguma maneira, saudáveis. Eu sim li o tão adequado livro de Marcelo Lillo, graças a Rafael Gamucio, que me presenteou com ele depois de garantir que Lillo era um grande contista. Não o li e não penso em lê-lo, disse-me Gamucio, mas é muito bom, não preciso lê-lo para saber que é muito bom, melhor que Cheever, melhor que Carver, melhor que todos.
 
Em meio a tudo isso, o recente Prêmio Nobel de Jean-Marie Le Clézio nos pegou de surpresa. Do autor li apenas O africano, um livro brilhante, mas seria impróprio opinar, a partir de uma base tão precária, se o prêmio é ou não merecido. “Quem é esse aí? Não conhecia nem de nome”, escreveu em seu blog, acerca disso, um desconsolado Alberto Faguet. Mais empenhada que seus colegas parece ser Carla Guelfenbein, que declarou ter lido le Clézio nada menos do que por recomendação direta do também Prêmio Nobel J. M. Coetzee, que conheceu em um encontro de escritores na Islândia.
 
Há alguns anos escrevi uma resenha pouco favorável sobre o primeiro livro de Carla Guelfenbein e, à luz dos comentários atuais sobre El resto es silencio, seu romance mais recente, estava eu então equivocado.  Seja como for, é muito tarde para comprová-lo, pois ninguém vai me tirar o prazer de não ler alguns livros, e a verdade é que não voltaria a ler um romance de Carla Guelfeinbein nem que ele fosse recomendado pelo mesmíssimo Coetzee.


Outubro, 2008
 

*Tradução de Guilherme Mazzafera. O texto “No leer” encontra-se compilado no volume No leer (Editorial Anagrama, 2018).
 
 

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