Morte em pleno verão, de Yukio Mishima

Por Eduardo Galeno


Mishima por Kishin Shinoyama em A morte de um homem.


 
Mishima se forma dentro de mim como um autor que, quando leio, sinto um mecanismo sem limites de prazer textual. O seu repertório em descrever e narrar situações humanas é encontrado vastamente nas miúças. Minha introdução na prosa dele, me lembro, foi Vida à venda, algo de insultuoso em relação à vivência do cotidiano, praticado por um jovem, dormente, determinado a se matar por um preço. O livro é quase do fim da existência de Hiraoka — Kimitake Hiraoka é o nome verdadeiro — e excedeu, para mim, justamente nesse apanhado de histórias em que alguns tipos são desenvolvidos. Muitas espécies de jogo narrativo — rítmico, inclusive —, personagens e ideias estão remexendo no que ele escreveu. É um quadrado de exposições, possivelmente vindo através da fusão conceitual da totalidade poética de Mishima, que vai ganhando corpo durante a leitura.
 
Morte em pleno verão confere uma severidade tremenda, que assusta um pouco, quando relança suas visões ao redor das cenas. Aliás, severidade que é ímpar pois em muitos poucos casos em que ela é revestida de comicidade é que isso existe (a ver as tantas passagens engraçadas, puxadas-a-riso, transformadas num lugar de ridicularidade, de absurdos). A continuidade de significante a significante postula a continuidade entre esses textos. Mas claro: a distância existe e é o que marca a diferença entre eles. A invenção de Mishima triunfa na novidade de encarar o relevo ocidental como um sujeito profundamente japonês (no sentido de ter nostalgia dos tempos áureos ou das origens). Se pararmos para pensar, Mishima foi o único oriental a se intrometer nos assuntos de correspondência estritamente atlântica (quer dizer, o único escritor, já que tivemos o cinema nipônico na empreitada). Existe um muro de Berlim bem definido nele por ter feito exatamente isso, por estar num meio, mais perdido que acalentado.
 
Eu duvido que não haja plasticidade das formas em Mishima. Pode se tratar de um nível de espelhamento do mundo e da psique. Prefiro compreender como alinhamento entre tradição e modernidade, entre, melhor dizendo, a transmissão cultural e a novidade aplacada nas tecnologias de escritura que emergiram nos confins do século XIX. Ele, incessantemente, busca um vínculo entre o que havia de novo na época e o que aprendeu das tradições (Mishima ganhou o dom pelas leituras que fez). Prestar atenção nessa palavra: vínculo. Nas transições, tudo é vínculo, tudo se sobrepõe. As histórias narradas em Morte em pleno verão são histórias de analogia. Na forma em que elas se enlaçam, conseguem substituir o sentido que antes estava moldado. Então ele progride para uma outra crista. Provavelmente, o ato nasceu do estilo interior, numa profissão de fé que apenas autores altamente espiritualizados conseguem externar.
 
Gosto de pensar a tendência como um auto-sepultamento, onde Mishima seja um Che Guevara de sinal trocado: a violência era, se não uma violação efetiva — até 1970 —, uma destruição simbólica de si como arquivo literário. A literatura, assim, preenchida com todas as suas visceralidades, permanece na tranquilidade da eterna companheira: a obsessão com a morte.
 
Lembremos das palavras dele em Sol e aço, seu testamento biográfico:
 
“De acordo com minha definição de tragédia, o trágico pathos nasce quando a perfeita sensibilidade momentânea leva a uma nobreza privilegiada que mantém os outros a distância, não quando um tipo especial de sensibilidade decai sobre preferências especiais. Dessa forma, aquele que domina as palavras pode criar a tragédia, mas não participar dela [grifo meu]. É necessário um tipo de “privilégio da nobreza” que se encontra em um tipo de coragem física. Os elementos da intoxicação e da clareza super-humana que se encontram na tragédia nascem quando a sensibilidade, reforçada pela força física, encontra aquele privilégio momentâneo especial designado para isso.”
 
Logo após, ele retrata um argumento que pensa na possibilidade de cavalgar além da escrita, das imagens das palavras, pulando para fora da nau dos signos. Mas isso não quer dizer um abandono da literatura: Mishima sabe que negar o trágico significa aprofundá-lo. Quem escreve cala. Mas é justo o silêncio da letra que cria o dinamismo do que é essencialmente tragista: os valores falam por ela. A força do corpo inaugura apenas o que antes estava recalcado. A força da vida é somente um momento diferente da força da obra.




A aposta pelo homem total é o balanço geral da poética mishimiana. Sob o jugo do know-how que preserva a aparência, mas clama pela eidos à platônica, ela desfila no limiar do traço que Baudelaire afirmava à contradição de se estar no ciel profond e no l’abîme, no bienfait e no crime ao mesmo tempo (off: a direita radical-pró-Império e o queer também). Nessa via, não há nenhum tipo de moral que possa alcançar a prática que Mishima tenha tentado alçar. O verbo, parece, repousa à mercê de uma segurança, guardado pelo foco que se tem em relação a ele, mesmo quando negado. Portanto, nada mais comum que adjetivar esse tipo de letra como ascética: apesar do caminho percorrido, a verdade, adquirida pela experiência-limite, segue percorrendo. Sua moral é antimoral, gesto nietzscheano.
 
Isso expõe que há uma insondável presença de unidade entre o escritor e a escrita. A perseguição por ela é sentida, desdobrada, plantada e condicionada. Arte e ação são dois lados do pêndulo criado pela força da expressão, seja sob o véu sintático, seja sob a capa corporal.
 
O trauma
 
Quando lemos o conto que abre Morte em pleno verão, já somos extasiados. A história de uma família de classe média — sem nada de preocupações além dos anseios mais comuns da vida, como o trabalho e o lazer — que logo se rompe por causa do evento devastador da morte. Não uma, mas três: a tia e dois irmãozinhos morrem num dia de verão. É nada para o que vem. No mesmo respiro, o evento-morte é tudo. Ele consegue trazer à tona outra nuance sobre o tempo, o espaço. Em outros termos, é um conto que abre um tratamento específico sobre o que a morte verdadeiramente é, mas não fica sendo um conto sobre a morte em si.
 
O a mais da história dessa família é sobre o trauma de um acontecimento, é um tratado sobre a fantasia. Isso aconteceu, mas segue acontecendo. A mãe é um indício, assim como os fantasmas cibernéticos e psíquicos de A invenção de Morel e A volta do parafuso, de Casares e James, de traumas. Après-coup, a história escalona aos episódios que inteiramente sugerem resquícios que não serão superados, mas postos num canto.
 
O esquecimento — como nós rotineiramente conhecemos — não é digno para a fonte dos japoneses: o não-ser também merece o devido respeito. Tão tal que no filme francês — e na percepção francesa — Sans Soleil (1983), de Marker, é traduzida a exatidão oriental que passa, a cabo, no fim do conto: o luto parece se mesclar na melancolia e o que fica deseja transgredir o ato do trauma. Por isso que a significância de toda a história não veio da morte, mas do mar, que é a última imagem que Mishima põe e reverbera.
 
A primavera é a mais cruel das estações 
 
Em The waste land, Eliot leva a exposição do mundo petrificado pelo frio, mas renascendo. A primavera é um hiato, cheia de temor e tremor, “memória e desejo”, a mais cruel das estações, como diz o zelador da única peça que compõe Morte em pleno verão. A parte talvez seja um exemplo concreto do que Mishima planejava ao imbuir no contexto da raiz tradicional do nô — algo de performático ao afinco popular — com temas próximos do teatro grego (a casualidade do amor da moça que perde seu namorado porque ele é morto a tiros num grandioso armário seria um sonho sofocliano?).
 
A necessidade da peça vem da maneira de como Kiyoko, com Mishima por baixo, junta sua voz feminina à desilusão afetiva. O estilo fica hipercodificado: ele reprime tanto a racionalidade do método quanto a ancestralidade intertextual. Quando Kiyoko fala, Mishima também diz alguma coisa. Ele sabe e atende a cronologia dos fatos. O dilema moral de sacrifício não pode ser posto se não for por uma mulher, pelo objeto-ímã que satisfaz o entorno. No caso, os homens são implodidos pela consciência final que a jovem traduz depois de sair do armário, na reconciliação relativa à natureza. 
 
Desfigurar o rosto é desfigurar o mundo, não desfigurar o rosto. Porém, significa desfigurar a forma. Mishima brinca com os tecidos retóricos e alinha seu pensamento a dois caminhos distintos: o primeiro adentra no resgate da rostidade (o Self dos budistas) e o segundo na Vontade feminina. As palavras certas para esse tema são: mesmo que o ato tenha um pump moralizante, ele não implica na absolutização narrativa. Estamos à deriva (na primavera, finalmente, numa linha que não está nem aqui nem lá).
 
(grande)
 
Patriotismo, o conto mais famoso, vai para junto de nós numa ode à suspensão do pensamento.
 
Mishima diz:
 
“Se a lei do pensamento ordena que se deve buscar na profundidade, não importando se seja em decadência ou em ascensão, então me parece excessivamente ilógico para mim que o homem não descubra um tipo de “superfície” oculta, uma fronteira vital que endossa a separação e forma, dividindo nosso exterior do interior. Por que não deveria ser atraído à profundidade da superfície de si mesmo?” (Sol e aço)
 
O tenente Takeyama e sua esposa Reiko são marionetes. Essa profundidade é, mais do que imposta, fuçada. Nós percebemos o arauto nos dois gênios, a soberba da glória focada em seus devaneios sobre a pátria, sobre o militarismo. Aquilo é magnânimo e sugere às suas percepções o que não pode ser de outro modo. Mas o que é mais forte ainda é como o pensamento dos dois é relegado. Eles não pensam em si; o ego já foi embora. Eles são movidos pelo perigo que a situação emerge. A perversidade de ambos é ocasionada diretamente à beleza.
 
Morrer em um seppuku é belo. Deixando os sentidos não serem mais sentidos, e sim a mente que pensa a si mesma, ou seja, se deteriorando no momento crucial. Em Patriotismo, o pensamento já não é mais pensamento: os olhos, o nariz, a boca, os ouvidos e as mãos também não carregam mais sentidos. Relacionado à Alma que Plotino teorizou, o que restou foi o encantamento. A mais bela morte é a de batalha, no mesmo sentido que Jünger prestou esclarecimento quando os homens ficaram loucos para participar da primeira guerra.
 
Vemos o seguinte: o ritual de seppuku precisa de criação: o guerreiro estabelece seu respeito à honra, mescla seus desejos ao objeto que vai lhe fulgurar (espada) e efetiva sua obra com o ventre, daí encontrando o Sol. Isso não passa de uma performance. A definição de arte se resume, lembro aqui, a manejar a escrita ao sangue. Em Mishima, a arte é o tento com a fisiologia. Ela deve seguir seu curso fisiológico. Para que um conto sobre o suicídio seja relevante para a literatura, ele deve indicar sua universalidade aplicável. À baila, clínica e poesia se fundem e mostram quão grandiosa é a empreitada de Mishima.
 
***
 
Obviamente, a fragrância psíquica, estilística e física nas narrações de Morte em pleno verão é percebida nas entrelinhas. Elas estão lutando no coração do autor, às vezes com um requinte entediante, lunar, às vezes abraçando a figura do Sol, radiantes até demais.
 
Que tenhamos a perspicácia de ler Yukio Mishima, de poder alcançar os movimentos de sua poderosa prosa.


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Morte em pleno verão
Yukio Mishima
Andrei Cunha (Trad.)
Companhia das Letras, 2024
240p.

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