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Hans Holbein. Portrait of Erasmus of Rotterdam (detalhe). |
Em outubro de 2024 o portal de notícias
G1 divulgou
uma reportagem sobre o uso de palavras e expressões antigas (do século XIX) nas
redações do ENEM. “Outrossim”, “Com efeito”, “Não obstante”, “Dessarte”,
“Azas”, “Mormente”. A lista é longa. Eu acho meio chumbrega essa mania da
petizada de usar palavras do século XIX, prefiro as dos anos 1960 em diante.
Mas quem sou eu para arrumar quiproquó?
A reportagem faz algumas suposições sobre o crescente uso de
termos do século XIX nas redações do ENEM. A primeira é com relação ao estudo.
Para escrever é preciso ler, então o aluno busca referências nos clássicos da
literatura brasileira. O resultando é um
cover anacrônico de Machado de
Assis, José de Alencar, Castro Alves e assim
ad infinitum. Outra causa possível
remonta aos cursinhos. Um dos requisitos de avaliação da redação é o uso de
conectivos, então alunos conseguem listas de conectivos para decorar e evitar
repetições e garantir boa nota. Mas tem marmota aí. Como um professor respondeu
à reportagem, os alunos estão preocupados em empregar palavras-chave em
momentos certos. O problema é que o decoreba de conectivos não só é símbolo de
uma falta de vocabulário, mas também indicativo de uma dificuldade em estruturar
o pensamento com as ferramentas que se possui. Para o avaliador, não faz
diferença qual termo é usado, mas sim como é empregado no texto. Portanto,
“sendo assim”, “dessa forma”, “dito isso” ou “dessarte” tem exatamente o mesmo
peso para o avaliador. Outra hipótese que a reportagem levanta é a pretensão da
erudição. Ou seja, alguns candidatos maquiavélicos usam termos arcaicos na
intenção de soarem mais inteligentes. Sacripantas! Outros, porém, podem ter a
ingenuidade de acreditar que usando palavras complicadas e antigas, que pouca
gente usa, ganhariam mais pontos. Basbaques... Mas o uso desses termos, como a
reportagem aponta, pode ser um tiro pela culatra. Na tentativa de ser culto, o
candidato pode usar um termo no lugar errado e tomar um safanão do avaliador.
A questão é que a estratégia funciona. A redação é o momento
crucial em que se separa o joio do trigo na multidão de candidatados, e muitas
das redações nota mil empregam esses termos. Mas não coloquemos a carroça na
frente dos bois. Não é porque essas redações usam esses termos que foram nota
mil. Mas sim porque os alunos estudaram e souberam empregar as palavras certas
para expressar suas ideias (sejam essas palavras arcaicas ou não). O problema é
que essa moda de imitar Machado pode ter alguns problemas mais graves para os
quais a reportagem não atentou.
De acordo com Helena Martins, a filosofia nos oferece três
ângulos por quais entender a linguagem humana: 1)
realista, que
compreende que a linguagem identifica parte da realidade; 2)
mentalista,
que afirma que a linguagem representa acontecimentos mentais compartilhados
entre falantes e ouvintes; e 3)
pragmático, para quem a linguagem é
usada ou vivenciada no fluxo das práticas e costumes de uma comunidade
linguística, histórica e culturalmente determinada. Em linhas gerais, as linhas
1 e 2 seriam de tradição platônica e aristotélica, pelas quais a linguagem
seria um sistema de descrição ou representação do real (ou do imaginado) de uma
ordem externa universal (mundo das ideias). Portanto, as verdades essenciais
existiriam perenes sobre os voláteis consensos dos homens. Por outro lado, para
os
pragmáticos, os significados não são “coisas” reais ou mentais, mas
sim correspondências dos usos culturais de certas palavras. Assim, a linguagem
não apresentaria um caráter descritivo. Esta linha estaria vinculada ao ideário
sofista de que a verdade é múltipla e mutável, efeito passageiro dos
consensos. Basicamente seria a relação entre
essencialismo vs relativismo.
As palavras, como descrições de mundo e ideias, existem conforme nós as
empregamos. São como nós damos sentidos às nossas ideias. As palavras nos
ajudam a pensar.
Muitos escritores já questionaram a prática da escolha das
palavras na escrita. George Orwell, por exemplo, escreve em seu ensaio “A
política e a língua inglesa” que quatro hábitos de escrita deveriam ser
evitados, são eles: metáforas moribundas; operadores ou muletas verbais; dicção
pretensiosa; e, por fim, palavras sem sentido.
Em linhas gerais, metáforas, segundo Orwell, tem por
princípio evocar imagens mentais. Ou seja, levar o leitor a ilustrar uma imagem
visual através das palavras. Porém, uma metáfora “gasta” ou “morta” acaba por
ter o efeito contrário e limita a imaginação. São expressões que muitas vezes
sabemos os significados, mas que não necessariamente sabemos ilustrar as
imagens que elas, em tese, projetam. Como se separa o joio do trigo, é um
processo simples ou trabalhoso, é essencialmente manual ou mecânico? O que
exatamente é um joio? Nesse mesmo texto também usei “tiro sair pela culatra” e
“botar a carroça na frente dos bois”. Certamente o leitor compreendeu o
sentido, mas não por uma imagem mental que o levou a compreender a comparação
da situação ilustrada pela expressão e a argumentação que eu, como escritor,
quis fazer, mas sim por estar habituado com o uso dos termos. Você ao menos tem
noção do que é a culatra de uma arma? Aliás, as armas modernas possuem
culatras? Pouco importa. Fiquei com preguiça de pensar uma expressão por conta
própria, e usei uma batida que você, leitor, já conhece. Nem eu ou você tivemos
qualquer trabalho.
As muletas verbais seriam usadas para economizar o trabalho
de escolher verbos e substantivos, ao mesmo tempo em que se floreia o texto. Em
vez de se usar um verbo ou palavra simples que ilustraria a mesma ideia,
transforma-se o verbo numa locução “composta de um substantivo ou adjetivo
anexado a alguns verbos de uso geral”. Portanto, usa-se frases como “Fulano
entrou em contato com Beltrano”, no lugar de “Fulano contactou Beltrano”. Ou “Beltrano
exibe a tendência a…” no lugar de “Beltrano tende a…”. Ou seja, “A reportagem
faz algumas suposições sobre…” ou “A reportagem supõem que…”?
A dicção pretensiosa utiliza termos como
indivíduo,
elemento,
objetivo,
virtual,
fenômeno, e mais, com o único propósito
de dar ao texto uma ideia de cientificidade. Mesmo na literatura especializada
esse fenômeno é uma realidade. Vejamos este exemplo do livro
Escrever
melhor: guia para passar os textos a limpo, de Dad Squarisi e Arlete
Salvador. O trecho foi extraído de uma dissertação de mestrado defendida na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo:
“O profundo conhecimento dos hábitos e específicas
necessidades dos potenciais grupos de usuários de um espaço habitável será de
inestimável valor para que, ao se elaborar o projeto, se atinja o objetivo que
confere ao usuário o domínio sobre o uso do produto adquirido
— sua moradia
—
para que esse lhe seja de fato prazeroso, seguro e respeitável por um
verdadeiro progresso na qualidade de vida de seus usuários, ou seja, conforto
doméstico.”
Um texto acadêmico precisa seguir um certo rigor científico
ao se apresentar, portanto, o uso de determinados termos que poderiam soar
deslocados numa obra de ficção ou num discurso político. No entanto, o texto
destacado acima apresenta uma verdadeira verborragia, não só usando termos
repetidos, como desnecessários. Tem palavras demais e sentido de menos. Segundo
os autores, a mesma ideia seria exposta na frase: “O conhecimento dos hábitos e
necessidades dos moradores é fundamental para a elaboração de projeto
arquitetônico de apartamento confortável.” Verifica-se ainda o uso de termos
como “hábito”, “projeto arquitetônico” e “elaboração”, mas não há necessidade
de utilizar “usuário” para substituir “moradores” além de uma pretensão em soar
erudito. Além, quem na última década não presenciou uma discussão na internet
que envolvesse um dos debatedores acusando o outro de praticar “
ad hominem”,
no lugar de afirmar “você está atacando a mim, não ao meu argumento”, com o
único intuito de dizer “olha, eu conheço essa expressão”? Ou, não sei, usar “
Ad
infinitum” em vez de simplesmente, “e mais”.
Por fim, as palavras sem sentido são aquelas usadas em
críticas e análises, mas que não têm seus significados relativos a como são
usadas nas frases. Alguns exemplos são:
plástico,
humano,
morto,
vivo,
natural e mais. Pois se um crítico descreve uma arte como
“vívida” e outro descreve a mesma como “morta”, o leitor aceita a diferença de
descrição apenas como uma diferença de opinião, mesmo que os termos sejam
diametralmente opostos. E aqui repousa outro problema, a morte das palavras.
C. S. Lewis, esse mesmo que escreveu Nárnia, disse em seu
ensaio “A morte de palavras” que, embora seja normal as palavras mudarem de
significado com o tempo, o emprego de valores positivos e negativos nelas pode
levá-las a morte ou total corrupção. Um exemplo. Nesse mesmo texto usei
“moderna” para qualificar “arma”. A questão é que o termo Moderno faz
referência a Era Moderna, período histórico entre 1453 e 1789. No entanto,
quando usei a expressão “armas modernas” o leitor não pensou em mosquetes ou
fuzis de pederneira (que, diga-se de passagem, tinham culatra), mas sim em um
fuzil de assalto (século XX) ou uma pistola (século XIX). O motivo? Em algum
momento “moderno” deixou de significar “da Era Moderna” para significar algo
“novo”, “avançado” ou mesmo “contemporâneo”. Outro exemplo. Usei “maquiavélico”
para qualificar alunos que mascarariam suas ignorâncias adotando termos antigos
na pretensão de erudição. Certamente o leitor entendeu que eu inferi que o
candidato seria calculista, frio ou mesmo mau. Mas nenhuma dessas qualidades
são originárias do trabalho de Nicolau Maquiavel (um filósofo do século XV,
logo, um filósofo moderno). O termo que antes era empregado para descrever
alguém que compactuava e empregava a filosofia de Maquiavel
— sobre a relação entre
virtú e
fortuna,
sobre as obrigações do Príncipe com a
Res-Pública e mais
—, hoje virou sinônimo de
“pessoa malvada”. Em resultado, pesquisadores e professores precisaram inventar
o termo “Maquiaveliano” para escapar dessa armadilha. Destino semelhante teve o
“Marxista” virando “Marxiano”.
Mas o que a morte ou corrupção de palavras está relacionada
ao uso de expressões e termos de séculos passados em redações do ENEM? Oras,
isso não é deveras preocupante? Se a primeira ou a segunda hipóteses levantadas
pela reportagem estiverem certas (de que os alunos copiam textos clássicos e
adotam expressões arcaicas por não conhecerem outras mais recentes), o que
vemos é: 1) uma ignorância sobre a literatura contemporânea; e 2) uma tendência
pela ignorância da própria língua. Se você, como escritor, tem dificuldade de
encontrar as palavras certas para dar continuidade às suas ideias, é sinal de
que você não só carece de repertório, como tem dificuldade em articular essas
mesmas ideias. Quem nunca se sentiu desconcertado por não encontrar as palavras
certas na cabeça pra expressar para outra pessoa o que estava pensando ou
sentindo? É frustrante. A forma como escrevemos é diretamente relacionada a
forma como pensamos. Se você sente necessidade de recorrer a muletas
argumentativas, expressões batidas e palavras antigas por não conhecer palavras
“modernas”, é sinal de que pode ter algo errado na sua capacidade de refletir e
raciocinar, ou mesmo na sua imaginação. Na melhor das hipóteses, sinaliza que
você não lê o suficiente. O que pode levar a um futuro sombrio para a nossa
língua. Como disse Lewis, no ensaio já citado: “os homens não continuam a
pensar naquilo que esquecem como dizer”. Por isso é sempre mais fácil usar
expressões prontas e terminar um texto com uma citação.
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João Victor Uzer é natural da região metropolitana do
Rio de Janeiro, historiador e bibliotecário. Desde 2018 escrevo ensaios e
pequenas crônicas para blogs, jornais e revistas online.
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