Por Sérgio Linard
|
Domenico Starnone. Foto: Isabella De Maddalena |
A escolha pela tradução do título
original da recente novela de Domenico Starnone a chegar no Brasil, no primeiro
momento, antes da leitura da obra, soa estranha ou arriscada. Como
Vita
mortale e immortale dela bambina di Milano foi vertido para
Línguas?
Haveria, na obra, justificativa suficiente para tão radical mudança? Seria esta
uma escolha de motivação mercadológica, para estabelecer relação de
continuidade com o livro anterior do autor,
Dentes?¹ Após a leitura,
vê-se que o tradutor Maurício Santana Dias fez uma escolha melhor do que a do
próprio Starnone ao intitular sua obra. Para essa confirmação, porém, a leitura
integral do texto é indispensável. E, por isso, aqui, meu único comentário
acerca dessa tradução é o elogio. Sigamos ao texto.
É bem provável que
Línguas
seja o primeiro livro do autor, em terras brasileiras, a comportar-se como um
divisor mais firme de opiniões. Este parece ser um caso em que se gosta muito
ou se gosta nada. O primeiro espectro é o mais adequado para essa novela, pois
neste texto o lidar com o sentimento do cotidiano, com a naturalidade que o
cotidiano exige, mas com a complexidade que as subjetividades humanas demandam
segue sendo a grande âncora da narrativa; algo bastante comum na obra de
Domenico Starnone.
Os já tradicionais enredos simples
do autor (amores não concretizados, famílias infelizes, escolhas erradas etc.)
voltam a aparecer aqui, agora com relações entre amigos, familiares e com uma
sombra mais forte em toda a obra: a morte. Enquanto em outros textos de
Starnone, a morte é um elemento, como o é na vida, certo, mas sempre ignorado
até que aconteça, em
Línguas a morte é o ponto de partida. A partir de
um elemento finalizador, iniciam-se as complicações na vida dos personagens,
principalmente na infância. O protagonista, desse modo, tem a morte como pensamento
rotineiro e não como aceitação fatídica do processo natural da vida e isso é
demarcado com clareza já primeiro período da novela:
“Entre os oito e os nove anos de
idade, decidi encontrar a fossa dos mortos”.
Quando ainda nesta tenra idade, o
narrador-protagonista é introduzido, pela sua avó, à ideia de morte e da
existência de um local em que os mortos ficam e que pode ser acessado por meio
da abertura de uma porta de algo parecido com um alçapão, aquele se torna o
movimento para o qual seus pensamentos estão voltados. Na vizinhança, onde o
menino brinca e duela com os amigos, há uma porta nos mesmos moldes, local que
seria o fosso de almas “desencarnadas”.
Diante desse cenário, em que a
morte ganha certo apego, o menino desenvolve e alimenta o sonho de ser poeta. A
capacidade mais aguçada do que o esperado para ler o mundo ao ser redor e para
elaborar sentimentos diversos é que faz com que ele sinta que há em sua vida
essa tendência para traduzir em palavras todas essas complexidades. Isso faz
com que esse menino e, em seguida, o adulto, esteja sempre
à flor da
pele até mesmo diante de situações que poderiam ser encaradas com certa
normalidade. Starnone explora, por essa via, uma figura poética que remete ao
artista idealizado por Aristóteles e aos sentimentos sempre pujantes de suas
próprias obras. Aqui, o ato de sentir, muito caro ao autor, não deixa de ter
prioridade, mas aparece, dessa vez, como um convite ao acompanhamento de sua
criação, diferente das outras narrativas nas quais esses sentimentos adentram a
história de forma mais
abrupta ou
repentina.
Cabe salientar que essa sombra
obscura da morte é tratada com muita franqueza a todo o tempo e o narrador
recorre a uma linguagem simples e objetiva para deixar claro seu sentimento de
ser ela, a morte, sempre uma opção. Essa naturalização ou recorrência é
presente na vida do garoto especialmente porque, desde muito cedo, ele precisa
lidar com o fato de que seu pai está morto e essa mesma morte parece não ter
sido superada por sua avó, de modo que, na educação do neto, a repetição desse
acontecimento foi a regra e não a exceção.
Como seria, então, o
amadurecimento de alguém para quem a morte foi uma constante? A menina de Milão
— que parece, mas apenas parece, dar o título original à obra — surge dançando
na sacada de sua casa, e o jovem, ao vê-la, desenvolve repentina paixão. De sua
parte, há o medo de que ela morra ao cair daquele local, mas há a falta de
coragem para interagir com aquela que é alvo de seu amor. Compartilha, então,
seus sentimentos com o amigo Lello. O amigo informa que já sente algo parecido
pela menina e que pretende com ela casar-se. A saída que o protagonista sugere
para este “triângulo”? A única possível em sua mente para resolução de
conflitos: duelar com aquele amigo até a
morte, seguindo o tradicional
modelo no qual homens brigam pela dama desejada, mas, neste caso, uma situação
agravada porque os pensamentos do narrador-protagonista permitem a percepção de
que ele, de fato, intenta matar o colega para que possa ficar com a
milanesa.
Assim, a morte segue como primeira
solução para todos os conflitos que aquele jovem, com o sonho de ser poeta,
enfrenta. Embora o duelo com final fatídico não tenha se concretizado, o óbito
continuou como forma de se dar termo à discussão dos amigos; neste caso, porém,
da menina pela qual ambos tinham atração. Para a vida desse protagonista de
Línguas,
mais uma ausência imposta pela morte; para a história, mais uma sombra em que
os sentimentos se misturam e se tornam ainda mais obscuros.
O narrador adentra, desse modo, em
um caminho no qual o amadurecimento do passar do tempo, antes de fazer crescer,
gera limitações de olhares focalizados somente naquilo que reduz as suas
subjetividades a uma vida arrastada pela espreita da morte. O
desenvolvimento desse adolescente para jovem adulto é demarcado quase que de
modo monótono por um olhar puramente pessimista para tudo que está ao seu
redor. A frustração com a carreira de poeta cerceada pelos estudos da
licenciatura em italiano ou até mesmo os aspectos físicos da avó sinalizam um
olhar sempre negativo diante de tudo, uma vez que estamos falando de um
personagem cuja psique está desenvolvida em momentos repetidos de derrota e de
perda.
No caso desse protagonista, Starnone faz bom
desenvolvimento de uma figura que, a despeito de todo o sofrimento vivido, opta
por continuar a seguir como que aceitando e entendendo com normalidade cada um
dos detalhes experienciados; quase uma resignação. Na formalidade do
texto, os curtos capítulos com informações mais concisas — lembremos de que
falamos de uma novela — trabalham para que a própria leitura pareça se tratar
de um simples acompanhamento de um jovem que sofre com perdas da vida e
amadurece com elas. Está aqui, parece-me, a possibilidade latente de que esta
novela, entre os já fiéis leitores de Domenico Starnone, não agrade de modo
mais marcante como aconteceu com os outros textos. Enquanto nas novelas
anteriores, o leitor era instigado a sentir, no texto, a angústia, a dúvida e a
complexidade dos protagonistas, aqui o convite é para ver de modo resignado,
com construções e discursos mais simples, a aceitação do protagonista. A forma
da novela, como se espera, adequou-se à construção das personagens, mas é
compreensível que se deseje, deste autor, um texto com explorações mais
robustas dos sentimentos. No entanto, é nítido que não foi este o objetivo para
essa narrativa. Em Línguas, e agora eu volto para afirmação que fiz no
primeiro parágrafo deste texto, a narrativa está mais próxima de uma ode à
linguagem e à sua importância para a vida humana do que de uma narrativa
que busca confrontar e contemplar a materialização das complexidades da vida.
Uma vez que na faculdade de letras
o protagonista passou a se dedicar a estudos de glotologia e de papirologia, o
idioma falado pela avó e com o qual foi criado tornou-se objeto de estudo, pois
quando apresentada a ideia de pesquisa ao professor, a aprovação foi quase que
instantânea. A partir de então, as relações, as nuances e as belezas das
línguas, desde detalhes fonéticos até a aplicações pragmáticas começam a ser
exploradas e a construir, dentro da narrativa, uma visão diferenciada da avó do
personagem. Ele que, após adentrar no ensino superior encarava aquela senhora
com olhares dúbios — ora compreensivos ora excludentes — percebe a importância
dos conhecimentos culturais e populares, por ela representados, para a
construção da ciência oficial. Ela, de outra feita, com uma vida reduzida à
criação do neto, à realização dos desejos dele e ao apagamento de sua própria persona,
encontra na importância dada à sua fala uma forma de estar viva:
“Fervia, e se sentiu cada vez mais
autorizada a levantar ‘o cummuógliə — a tampa —, a prescindir de minhas
exigências de estudo, e sentiu um prazer desconhecido em scummigliarsi
escreva, menino, scummigliarsi, o contrário de cummiglia, escute
que bela palavra, você passa a vida cummigliàtə, tampada pela timidez,
escondida por medo, e então eis que se scummuógliə. Para me explicar o
que queria dizer, fazia o gesto de quem tira de cima as cobertas da cama, a
roupa, até o silêncio, e esse gesto parecia lhe dar alegria.”
É essa exploração das línguas, e do
quanto elas podem trazer de liberdade e de aprisionamento ao ser humano, que é
encontrada em toda a narrativa. As formas mais obscuras ou até mais francas de
falar, de modalizar e de escolher temas de acordo com a exigência que esse
mesmo tema, mas também que o falante, requer é o mote dessa novela.
A alegria que a avó do narrador
sente pode ser compreendida porque foi por meio do uso de sua linguagem e da
constatação dessa potência que ela reconheceu, em si, essa mesma potência. O
livro declara sua crença em uma melhor compreensão do ser humano pelo exato
meio que lhe faz complexo: a comunicação. Línguas funciona como uma
homenagem a esse processo.
Textos assim, como já pontuei,
podem não agradar um grande público. Para quem ainda não conhece o autor, de
fato, não recomendaria que essa fosse a obra de primeiro contato. Para quem já
o conhece, recomendo a leitura com vistas a serem observadas outras
possibilidades de escrita que ele apresenta, algo que reforça a qualidade e a
importância de Starnone para o meio literário.
______
Línguas
Domenico Starnone
Mauricio Santana Dias (Trad.)
Todavia, 2024
164p.
1 Resenhamos, também, esta novela.
O texto pode ser acessado
aqui.
Comentários