Leituras obrigatórias

Por Alejandro Zambra


Ramon Casas. Jovem decadente, 1899. 


 
Ainda me lembro da tarde em que a professora de castelhano se voltou para o quadro e escreveu as palavras prova, próxima, sexta, madame, Bovary, Gustave, Flaubert, francês. Com cada palavra crescia o silêncio e ao fim somente se ouvia o triste riscado do giz. Já havíamos então lido romances longos, quase tão longos como Madame Bovary, mas desta vez o prazo era impossível: teríamos apenas uma semana para enfrentar um romance de quatrocentas páginas. Estávamos começando a nos acostumar, contudo, com essas surpresas: acabávamos de entrar no Instituto Nacional, tínhamos doze ou treze anos, e já sabíamos que dali em diante todos os livros seriam longos.
 
Assim nos ensinaram a ler: às pancadas. Ainda penso que os professores não queriam nos entusiasmar e sim nos dissuadir, nos afastar para sempre dos livros. Não gastavam saliva falando sobre o prazer da leitura, talvez por terem perdido este prazer ou nunca tê-lo experimentado de verdade: supõe-se que eram bons professores, mas naquele tempo ser bom era pouco mais do que conhecer as apostilas.
 
Como no poema de Nicanor Parra, os professores nos deixavam loucos com perguntas que não vinham ao caso. Mas em pouco tempo já conhecíamos seus truques ou tínhamos truques próprios. Em todas as provas, por exemplo, havia uma questão de identificação de personagens, que incluía apenas personagens secundários: quanto mais secundário era o personagem, maior a possibilidade de nos perguntarem sobre ele, de modo que memorizávamos os nomes com resignação e também com a alegria de cultivar uma pontuação segura.
 
Havia certa beleza no gesto, visto que éramos então justamente isso, personagens secundários, centenas de meninos que atravessavam a cidade mal equilibrando as mochilas de brim. Os vizinhos de bairro sentiam o peso e faziam sempre a mesma piada: parece que você leva pedras na mochila. O centro de Santiago nos recebia com bombas de gás lacrimogêneo, mas não levávamos pedras, e sim tijolos de Baldor,1 de Villee2 ou de Flaubert.
 
Madame Bovary era um dos poucos romances que havia em minha casa, de modo que naquela mesma noite comecei a lê-lo, seguindo o método de urgência que meu pai havia me ensinado: ler as duas primeiras páginas e em seguida as duas últimas, e só então, só depois de saber o começo e o fim do romance, ler de forma contínua. Se não conseguir terminar, ao menos você já sabe quem é o assassino, dizia meu pai, que ao que parece só havia lido livros em que havia um assassino.
 
A verdade é que não avancei muito na leitura. Eu gostava de ler, mas a prosa de Flaubert me fazia cabecear. Por sorte encontrei, no dia anterior à prova, uma cópia do filme em um videoclube de Maipú. Minha mãe tentou me impedir de vê-lo, pois pensava que não era adequado para a minha idade, e eu também pensava, ou melhor, esperava que fosse assim, pois Madame Bovary me soava pornô, tudo em francês me soava pornô. O filme era, nesse sentido, decepcionante, mas o vi duas vezes e enchi os dois lados das folhas de papel ofício. Tirei nota vermelha, contudo, de modo que durante bastante tempo associei Madame Bovary a essa nota e ao nome do diretor do filme, que a professora escreveu entre pontos de exclamação ao lado da nota ruim: Vincente Minnelli!

Jamais voltei a confiar nas versões cinematográficas e desde então creio que o cinema mente e a literatura não (mas não tenho, é claro, como demonstrar isso). Li o romance de Flaubert muito tempo depois e costumo relê-lo mais ou menos na altura da primeira gripe do ano. Não há mistério na mudança dos gostos, pois coisas semelhantes acontecem na vida de qualquer leitor. Mas é um milagre que tenhamos sobrevivido àqueles professores, que fizeram todo o possível para nos provar que ler era a coisa mais tediosa do mundo.
 
 
Maio, 2009
 
 
Notas:
 
1 Aurelio Ángel Baldor de la Veja, matemático, educador e advogado cubano, conhecido por ser autor de um livro didático de álgebra para o ensino médio publicado em 1941 e usado em todo o mundo de língua espanhola [N.T].
 
2 Claude Alvin Villee Jr., biólogo norte-americano, professor de Harvard e autor de um famoso livro de didático de biologia traduzido para várias línguas.
 
 
* Tradução de Guilherme Mazzafera. O texto “Lecturas obligatorias” encontra-se compilado no volume No leer (Editorial Anagrama, 2018).
 
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #609

A ópera da Terra ou a linguagem de Gaia: Krakatoa, de Veronica Stigger

Boletim Letras 360º #600

É a Ales, de Jon Fosse

Boletim Letras 360º #599