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José Donoso. Foto: Zuma Press |
É tão óbvio quanto inevitável
começar pela posição de José Donoso no
boom latino-americano. Para não
dizer tão mal e rapidamente, dir-se-ia que ele foi algo como a perna mais
burguesa do grupo, a retaguarda clássica e saxónica (à frente dos afrancesados
Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar), o abastado e mimado na infância, o leitor
de Henry James. Tinha uma distância que o permitiu escrever uma
História pessoal
do Boom e um romance (
O obsceno pássaro da noite, um título complexo
se eles existem) que deveria estar entre os textos canônicos do
boom e
ainda assim não está neste céu de
Cem anos de solidão,
A região mais
transparente ou
O jogo da amarelinha; está, no entanto, num outro
céu de matizes infernais, nebulosidade variável, um lugar turbulento onde
terminam os romances que num momento parecem ameaçar a própria vida, desviam-se
do rumo, andam por aí como almas penadas.
Donoso se fascinou com os seus
colegas do
boom, com a capacidade deles para a experimentação, mas
quando quis segui-los o rumo tomado foi outro. Quando sua esposa María del
Pilar perguntou o que ele planejava escrever naquele primeiro verão que, como
recém-casados, passaram juntos no início dos anos 1960 (Donoso obviamente ainda
não tinha lido
O jogo da amarelinha, mas tinha lido
Os prêmios,
O
cerco e
A região mais transparente), respondeu: “Quero
escrever um romance muito simples e muito claro, sem nenhuma das
experimentações e dificuldades que esses escritores de que tanto gostei estão
fazendo. Quero que seja algo como uma parábola, algo muito breve, que não me
tome mais de um mês, no máximo dois, e depois mande, talvez, para Margarita
Aguirre em Buenos Aires, para ver se ela consegue publicá-lo na
Sur.”
É bastante surpreendente que o
produto dessa intenção de “um romance muito simples e muito claro” tenha resultado
em
O obsceno pássaro da noite, um dos mais extensos e intrincados livros
de ficção latino-americana dos anos 1970. Mas seja qual for o resultado, a
flecha de Donoso não estava indo na mesma direção que as flechas dos outros
grandes nomes do
boom. Não que lhe faltassem preocupações sociais e
políticas. Nem que ele considerasse a linguagem uma arma transparente de
comunicação e ignorasse os experimentos verbais. Mas Donoso tinha um ponto de
partida diferente.
Na origem de Donoso está uma casa
um mundo fechado sobre o qual paira uma ameaça, fantasmas interiores, algo que uma
vez confrontados nos textos, o aproximaria de Manuel Mujica Lainez de
Misteriosa
Buenos Aires ou
Bomarzo ou Ernesto Sabato de
Sobre heróis e
tumbas. Em seu primeiro romance,
Coroação, uma mulher muito idosa,
clarividente em sua demência senil, mantém a ordem de um mundo aristocrático em
declínio, que desmorona devido à fuga de uma jovem e sensual empregada do
exterior social, do outro mundo, o dos pobres. O mesmo acontece em
Este
domingo (uma leitura cativante, aliás, um daqueles romances que melhoram
misteriosamente com a passagem do tempo), onde o contato entre as classes
sociais leva à dissolução da velha ordem da infância e da inocência, o mundo dos
avós.
É, sem dúvida, um imaginário
pequeno-burguês autocrítico mas sem culpa, que não conduz a uma radicalização
político-estética (como no início de Vargas Llosa e em geral na tradição da
literatura peruana), mas a uma visão sombria e implosiva da decadência.
Seus colegas escritores e amigos
atribuíam a Donoso um temperamento fantasioso e doentio, como se sua pessoa e
sua família fizessem realmente parte do imaginário de seus livros, como se o
escritor fizesse parte de seu universo e não o contrário. Assim, é comum
encontrarmos dois elementos reiterados na apreciação de outros escritores sobre
o escritor chileno. Por exemplo, Vargas Llosa e Cabrera Infante destacaram a
famosa hipocondria de Donoso e enfatizaram sua predileção por seu romance
O lugar
sem limites (até mesmo reconhecendo a importância de
O obsceno pássaro
da noite). Parece que há algo não explicado, embora sugerido. A hipocondria
apontaria algum aspecto irremediável no modo de ser e de escrever do escritor.
Ele era o mais refinado, o mais literário dos escritores, possuía uma
sensibilidade frágil, permanecia fora da aspereza masculina do
boom. E
se somarmos a isso o romancezinho que se saiu tão certo sobre um pobre tipo que
se traveste... Era um homem elegante que conquistara o direito à excentricidade.
E o excêntrico não ocupa o centro.
Há uma outra versão que não
aparece tanto nos espelhos que os outros escritores a ela retornaram (aquela
dupla “amigos/ rivais” típica dos anos 60 e 70, quando a literatura podia gerar
ao mesmo tempo companheiros de viagem e inimigos ferrenhos), mas em seu próprio
espelho. Nas suas palavras: “Em todos os meus romances há uma abordagem inicial
semelhante: um lugar fechado, rodeado por um lugar aberto e uma luta entre os
dois lugares. O local fechado é geralmente representado pela casa. Pode ser uma
casa de família, um convento, um bordel, um palácio... e é sempre o local das
hierarquias, da ordem, do rito, do conhecido e do pseudomanejável. A ação de
todos os meus romances é a ruptura das barreiras que definem esse lugar
fechado.”
Mas há um habitante mais complexo
desses interiores fechados. Há algo mais profundo e íntimo nos recessos.
Poderia ser condensado em uma figura que aparece fortemente nesse romance que
ia ser “claro e simples” e acabou virando uma tortuosa alegoria, uma deformidade
pura: o monstro.
“As pessoas às vezes se perguntam
por que meus romances estão tantas vezes cheios desses obstáculos humanos:
Coroação,
O obsceno pássaro da noite,
Este domingo, enfim... todos os
fantasmas daquele Chile reacionário e residual, onde havia crescido, que ao
mesmo tempo me repelia e me fascinava, mas que em todo caso me mantinha
prisioneiro em suas garras”, escreveu Donoso num texto que procurava explicar
as “chaves” de um livro cheio de enigmas (“Chaves de um delírio: os traços da
memória na gestação de O obsceno pássaro da noite”, texto apresentado na edição
de
Punto de Lectura).
Uma dessas chaves é autobiográfica
e absolutamente incidental. Ele conta que uma vez em Santiago, enquanto
atravessava a rua conversando com um amigo, parou um carro preto muito luxuoso.
Estamos na década de 1950, no final da década, e a modernidade começa a brilhar
mesmo em meio ao conservadorismo provinciano. Donoso, certamente tentado pelo
carro fantástico, espiou lá dentro e o que vislumbrou foi algo fora do comum,
absolutamente fora do comum. “Um menino de idade indefinida, embora já passado da
adolescência, magnificamente vestido — camisa de seda, terno de flanela
listrado — mas totalmente deformado. Ele era um anão, um gnomo, uma criatura de
feira: o rosto costurado, os olhos assimétricos, o nariz danificado, o lábio
leporino. O corpo estava igualmente deformado, com pernas curtas, nodosas,
retorcidas… enfim, aqueles segundos (pura visão, uma visão de intensidade
total) foram uma visão de febre, uma alucinação.”
Verdade, mentira literária ou
alucinação febril, o gesto de olhar a visão parece ser mais importante que a
própria visão. Esse é o gesto que pode fundar uma narrativa, a vontade de
olhar, ver, olhar para dentro ou para o outro lado. E assim, ao longo de um
livro de páginas brilhantes, alucinadas (no auge das grandes criações do
boom
e além), um livro que acaba retorcido sobre si mesmo, transformado em monstro
ele mesmo, porque dá a impressão de que Donoso quis alcançar esse efeito de
deformidade deformando o texto, o escritor que protagoniza o romance, nascido
Humberto Peñaloza, depois convertido em El Mudito, torna-se um especialista em
deformações, um especialista em monstros, como se diz no romance.
No decorrer do romance, os
monstros saem dos trilhos porque esse é o seu destino, ir além dos parâmetros
de beleza e feiura (“a feiura é uma coisa. Mas uma coisa muito diferente, com alcance
semelhante mas invertido em relação à beleza é a monstruosidade”). O monstruoso
tende a sair como num exorcismo; assim os livros se tornariam o que resta passado
o estado de transe, o vislumbre, a memória da monstruosidade que outrora nos
habitou, esses “obstáculos humanos”.
Em parte devido a uma visão
esotérica e romântica dos monstros interiores que atormentam o artista e o
habitam como fantasmas habitam casas senhoriais em ruínas, as obras de Donoso
parecem mais confortáveis
perto
das belas e deformadas obras de Mujica Lainez, as divas e divos de Manuel Puig,
do cinema de Ripstein e em parte de Pedro Almod
óvar, do
que dos textos can
ônicos do
boom
latino-americano.
Donoso escreveu sobre a decadência
da riqueza e a riqueza da decadência, a capacidade predatória da pobreza, as
faíscas produzidas na intersecção entre ricos e pobres, senhores e servos,
espelhos opostos e multiplicadores, deformadores, fantasmas de ar e fantasmas
de carne e osso. Um romance como O obsceno pássaro da noite preserva intacto o
seu poder estético, o seu fogo interior ardente, enquanto
Coroação e
Este
Domingo estilizam uma base naturalista, elevando-se a um classicismo acomodado.
Em suma, talvez duas vertentes legítimas de uma obra onde o requinte e a
excentricidade foram o mote.
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