José Donoso. Perito em monstros

Por Claudio Zeiger


José Donoso. Foto: Zuma Press


 
É tão óbvio quanto inevitável começar pela posição de José Donoso no boom latino-americano. Para não dizer tão mal e rapidamente, dir-se-ia que ele foi algo como a perna mais burguesa do grupo, a retaguarda clássica e saxónica (à frente dos afrancesados Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar), o abastado e mimado na infância, o leitor de Henry James. Tinha uma distância que o permitiu escrever uma História pessoal do Boom e um romance (O obsceno pássaro da noite, um título complexo se eles existem) que deveria estar entre os textos canônicos do boom e ainda assim não está neste céu de Cem anos de solidão, A região mais transparente ou O jogo da amarelinha; está, no entanto, num outro céu de matizes infernais, nebulosidade variável, um lugar turbulento onde terminam os romances que num momento parecem ameaçar a própria vida, desviam-se do rumo, andam por aí como almas penadas.
 
Donoso se fascinou com os seus colegas do boom, com a capacidade deles para a experimentação, mas quando quis segui-los o rumo tomado foi outro. Quando sua esposa María del Pilar perguntou o que ele planejava escrever naquele primeiro verão que, como recém-casados, passaram juntos no início dos anos 1960 (Donoso obviamente ainda não tinha lido O jogo da amarelinha, mas tinha lido Os prêmios, O cerco e A região mais transparente), respondeu: “Quero escrever um romance muito simples e muito claro, sem nenhuma das experimentações e dificuldades que esses escritores de que tanto gostei estão fazendo. Quero que seja algo como uma parábola, algo muito breve, que não me tome mais de um mês, no máximo dois, e depois mande, talvez, para Margarita Aguirre em Buenos Aires, para ver se ela consegue publicá-lo na Sur.”
 
É bastante surpreendente que o produto dessa intenção de “um romance muito simples e muito claro” tenha resultado em O obsceno pássaro da noite, um dos mais extensos e intrincados livros de ficção latino-americana dos anos 1970. Mas seja qual for o resultado, a flecha de Donoso não estava indo na mesma direção que as flechas dos outros grandes nomes do boom. Não que lhe faltassem preocupações sociais e políticas. Nem que ele considerasse a linguagem uma arma transparente de comunicação e ignorasse os experimentos verbais. Mas Donoso tinha um ponto de partida diferente.
 
Na origem de Donoso está uma casa um mundo fechado sobre o qual paira uma ameaça, fantasmas interiores, algo que uma vez confrontados nos textos, o aproximaria de Manuel Mujica Lainez de Misteriosa Buenos Aires ou Bomarzo ou Ernesto Sabato de Sobre heróis e tumbas. Em seu primeiro romance, Coroação, uma mulher muito idosa, clarividente em sua demência senil, mantém a ordem de um mundo aristocrático em declínio, que desmorona devido à fuga de uma jovem e sensual empregada do exterior social, do outro mundo, o dos pobres. O mesmo acontece em Este domingo (uma leitura cativante, aliás, um daqueles romances que melhoram misteriosamente com a passagem do tempo), onde o contato entre as classes sociais leva à dissolução da velha ordem da infância e da inocência, o mundo dos avós.
 
É, sem dúvida, um imaginário pequeno-burguês autocrítico mas sem culpa, que não conduz a uma radicalização político-estética (como no início de Vargas Llosa e em geral na tradição da literatura peruana), mas a uma visão sombria e implosiva da decadência.
 
Seus colegas escritores e amigos atribuíam a Donoso um temperamento fantasioso e doentio, como se sua pessoa e sua família fizessem realmente parte do imaginário de seus livros, como se o escritor fizesse parte de seu universo e não o contrário. Assim, é comum encontrarmos dois elementos reiterados na apreciação de outros escritores sobre o escritor chileno. Por exemplo, Vargas Llosa e Cabrera Infante destacaram a famosa hipocondria de Donoso e enfatizaram sua predileção por seu romance O lugar sem limites (até mesmo reconhecendo a importância de O obsceno pássaro da noite). Parece que há algo não explicado, embora sugerido. A hipocondria apontaria algum aspecto irremediável no modo de ser e de escrever do escritor. Ele era o mais refinado, o mais literário dos escritores, possuía uma sensibilidade frágil, permanecia fora da aspereza masculina do boom. E se somarmos a isso o romancezinho que se saiu tão certo sobre um pobre tipo que se traveste... Era um homem elegante que conquistara o direito à excentricidade. E o excêntrico não ocupa o centro.
 
Há uma outra versão que não aparece tanto nos espelhos que os outros escritores a ela retornaram (aquela dupla “amigos/ rivais” típica dos anos 60 e 70, quando a literatura podia gerar ao mesmo tempo companheiros de viagem e inimigos ferrenhos), mas em seu próprio espelho. Nas suas palavras: “Em todos os meus romances há uma abordagem inicial semelhante: um lugar fechado, rodeado por um lugar aberto e uma luta entre os dois lugares. O local fechado é geralmente representado pela casa. Pode ser uma casa de família, um convento, um bordel, um palácio... e é sempre o local das hierarquias, da ordem, do rito, do conhecido e do pseudomanejável. A ação de todos os meus romances é a ruptura das barreiras que definem esse lugar fechado.”
 
Mas há um habitante mais complexo desses interiores fechados. Há algo mais profundo e íntimo nos recessos. Poderia ser condensado em uma figura que aparece fortemente nesse romance que ia ser “claro e simples” e acabou virando uma tortuosa alegoria, uma deformidade pura: o monstro.
 
“As pessoas às vezes se perguntam por que meus romances estão tantas vezes cheios desses obstáculos humanos: Coroação, O obsceno pássaro da noite, Este domingo, enfim... todos os fantasmas daquele Chile reacionário e residual, onde havia crescido, que ao mesmo tempo me repelia e me fascinava, mas que em todo caso me mantinha prisioneiro em suas garras”, escreveu Donoso num texto que procurava explicar as “chaves” de um livro cheio de enigmas (“Chaves de um delírio: os traços da memória na gestação de O obsceno pássaro da noite”, texto apresentado na edição de Punto de Lectura).
 
Uma dessas chaves é autobiográfica e absolutamente incidental. Ele conta que uma vez em Santiago, enquanto atravessava a rua conversando com um amigo, parou um carro preto muito luxuoso. Estamos na década de 1950, no final da década, e a modernidade começa a brilhar mesmo em meio ao conservadorismo provinciano. Donoso, certamente tentado pelo carro fantástico, espiou lá dentro e o que vislumbrou foi algo fora do comum, absolutamente fora do comum. “Um menino de idade indefinida, embora já passado da adolescência, magnificamente vestido — camisa de seda, terno de flanela listrado — mas totalmente deformado. Ele era um anão, um gnomo, uma criatura de feira: o rosto costurado, os olhos assimétricos, o nariz danificado, o lábio leporino. O corpo estava igualmente deformado, com pernas curtas, nodosas, retorcidas… enfim, aqueles segundos (pura visão, uma visão de intensidade total) foram uma visão de febre, uma alucinação.”
 
Verdade, mentira literária ou alucinação febril, o gesto de olhar a visão parece ser mais importante que a própria visão. Esse é o gesto que pode fundar uma narrativa, a vontade de olhar, ver, olhar para dentro ou para o outro lado. E assim, ao longo de um livro de páginas brilhantes, alucinadas (no auge das grandes criações do boom e além), um livro que acaba retorcido sobre si mesmo, transformado em monstro ele mesmo, porque dá a impressão de que Donoso quis alcançar esse efeito de deformidade deformando o texto, o escritor que protagoniza o romance, nascido Humberto Peñaloza, depois convertido em El Mudito, torna-se um especialista em deformações, um especialista em monstros, como se diz no romance.
 
No decorrer do romance, os monstros saem dos trilhos porque esse é o seu destino, ir além dos parâmetros de beleza e feiura (“a feiura é uma coisa. Mas uma coisa muito diferente, com alcance semelhante mas invertido em relação à beleza é a monstruosidade”). O monstruoso tende a sair como num exorcismo; assim os livros se tornariam o que resta passado o estado de transe, o vislumbre, a memória da monstruosidade que outrora nos habitou, esses “obstáculos humanos”.
 
Em parte devido a uma visão esotérica e romântica dos monstros interiores que atormentam o artista e o habitam como fantasmas habitam casas senhoriais em ruínas, as obras de Donoso parecem mais confortáveis ​​perto das belas e deformadas obras de Mujica Lainez, as divas e divos de Manuel Puig, do cinema de Ripstein e em parte de Pedro Almodóvar, do que dos textos canônicos do boom latino-americano.
 
Donoso escreveu sobre a decadência da riqueza e a riqueza da decadência, a capacidade predatória da pobreza, as faíscas produzidas na intersecção entre ricos e pobres, senhores e servos, espelhos opostos e multiplicadores, deformadores, fantasmas de ar e fantasmas de carne e osso. Um romance como O obsceno pássaro da noite preserva intacto o seu poder estético, o seu fogo interior ardente, enquanto Coroação e Este Domingo estilizam uma base naturalista, elevando-se a um classicismo acomodado. Em suma, talvez duas vertentes legítimas de uma obra onde o requinte e a excentricidade foram o mote.


* Este texto é a tradução de “Perito en monstruos”, publicado aqui, em Página 12.
 
 

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