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Han Kang. Foto: Paik Duhim. |
Quando, no Brasil, muitos
acordavam ou ainda estavam na modorra do início da manhã, chegava às telas a
notícia com o nome do Prêmio Nobel de Literatura, como acontece ano a ano.
Desta vez, um espanto terá expulsado as últimas nuvens de sono que teimavam
mesmo depois da xícara de café. Os atentos à rotina da Academia Sueca nos
últimos anos esperavam o anúncio de uma escritora; as agências de aposta estimavam
com a chinesa Can Xue que o júri finalmente deixaria o eixo Ocidental e
privilegiaria, como muitas vezes foi recorrente, um nome fora da comunidade linguística
anglo-saxônica ou nela protagonista. Han Kang confirmou a primeira
possibilidade, mas não a segunda. Sua obra se encontrava estabelecida em língua
inglesa desde o reconhecimento, em 2016, com o Man Booker para
A vegetariana,
o principal livro da sul-coreana.
Quatro anos antes, no curso de uma
primeira invasão da literatura coreana no Brasil iniciada na primeira década deste
século graças aos vários incentivos estatais da Coreia do Sul para a expansão
da sua cultura fora dos domínios nacionais,
A vegetariana contava com uma
tradução direta do idioma de origem; o prêmio no Reino Unido favoreceu a
reintrodução deste romance em nova tradução também direta do coreano e a
constância ao ritmo da língua inglesa de outros títulos de Han Kang:
O livro
branco (2023) e
Atos humanos (2024). Quer dizer, contávamos com alguns
dos seus principais livros no nosso idioma e a escritora não era uma
desconhecida nossa. A surpresa que muitos sentimos foi outra: uma obra ainda incipiente
ou situada no que julgamos uma linha muito tênue entre a literatura de massa e
a erudita, isso que, de alguma maneira, ainda é marcante entre as diversas
cisões culturais que nos dominam.
Ou nem tanto. A repercussão na
mídia estrangeira filiou a decisão da Academia Sueca na linhagem dos casos
excepcionais quando se demonstra com certa reincidência a juventude de Han
Kang. A escritora nasceu a 27 de novembro de 1970. Todos esses elementos trazem
à tona diversas questões envolvidas na compreensão do fenômeno literário e a
realidade brasileiras e mesmo, numa confusão que envolve os produtos da arte
pop que se tornou uma febre entre os jovens e, no plano geral, numa crise dos
meios culturais que não encontram mais na obra o ponto de inflexão das suas
observações e opiniões mas em critérios extraliterários, muitos, por vezes,
fora de quaisquer nexos com a criação artística. O júri de Estocolmo não está
livre dessa contaminação. Se antes nada sabíamos dos critérios envolvidos nas
escolhas, desde o apogeu da Era Viral, certa aleatoriedade dessas decisões parecem
olhar no efeito que elas implicarão nas mídias e entre os usuários do que
especificamente no reconhecimento da obra ou abertura para; o caso não é de
agora — quantos escritores figuram na lista dos premiados com uma obra
facilmente questionável —, mas os seus contornos, justamente pela
transparência
do real, ficaram mais nítidos. Tudo isso cobra uma complexa reflexão que não cabe
nesta matéria e que apenas fixamos entre as motivações desencadeadas a partir
da surpresa levantada com o anúncio do dia 10 de outubro.
Cabe oferecer um breve panorama do
que conhecemos de Han Kang e de sua obra, isto é, deslocarmos o ponto de vista
das questões menores, fundadas numa resistência desnecessária, para o que
deveria importar exclusivamente nas decisões de qualquer prêmio. A
justificativa oferecida pela Academia Sueca, a síntese que se espalha com o
nome do galardoado, destaca em Kang a sua “intensa prosa poética que confronta traumas
históricos e expõe a fragilidade da vida humana” — uma observação que parece
saída da leitura do livro mais recente da romancista,
Não se despede
(título ainda provisório). Este romance de 2021 conta história de uma jovem que
recebe de uma amiga hospitalizada a incumbência de socorrer seu pássaro de estima
e ao chegar à casa descobre arquivos de um dos maiores massacres ocorridos na
Coreia, quando cerca de 30 mil civis foram mortos no final da década de 1940.
Em
Atos humanos, outro
acontecimento histórico de vasta dimensão trágica domina o enredo: a Revolta de
Gwangju. As jornadas de protestos massivos contra o governo militar que havia
imposto alta censura fechando as universidades e a imprensa findaram com outro
massacre que resultou na morte de centenas de pessoas. O romance examina diversamente
a violência, a barbárie e o mal de que a humanidade é capaz e suas marcas, como
a dor e o trauma. Eis então uma qualidade da obra de Kang que a distingue da
literatura da geração anterior: ao registro dos grandes acontecimentos nacionais
se integram as questões de corte universalizante, aquilo que comumente
designamos como
condição humana. Com este romance, a escritora engrossou
a lista negra do governo de Park Geun-hye, entre 2013 e 2017, enquanto
A
vegetariana continua proibida em algumas bibliotecas e escolas em Seul.
Desde os primeiros livros de Han
Kang, a crítica tem observado como a sua literatura trabalha além das
violências e suas variações, o tema do estranho, este, configurado em
personagens ou narrativas incomuns, e a predileção pelos elementos simbólicos
que participam no desenvolvimento da complexidade e multiplicidade dos sentidos
envolvidos no enredo ficcional, exigindo do leitor outro modo de participação na
urdidura da interpretação, priorizando no funcionamento dos gestos e de uma
situação os muitos possíveis, seus desdobramentos, sem se reduzir às respostas
definitivas.
Em
A vegetariana, a ordem
de uma família aparentemente comum é alterada pelo aparecimento repentino de
uma nova consciência da natureza na protagonista. Esse ato é examinado pelo
ponto de vista das personagens de seu convívio íntimo. Para Sérgio Linard, este
“é um romance que tem uma desenvoltura e uma condução temática interessantes,
especialmente porque consegue tratar de forma objetiva e precisa a
possibilidade que um mesmo acontecimento tem de desencadear efeitos distintos.”
Han Kang compôs o romance partir do enredo do conto “O fruto de minha mulher”
(tradução livre), em que a personagem principal atinge o desejo de se
metamorfosear em planta.
Para Linard, esse desejo replicado
na protagonista de
A vegetariana sem o efeito de premissa fantástica é
“apenas para consolidar externamente aquilo que ela já é internamente. E ela
não é uma ‘planta’ porque não tem sentimentos ou porque decide parar de comer
carne; ela o é porque sê-lo foi o jeito resignado que encontrou para superar os
traumas encabeçados por todos ao seu redor.” Certa condição de
luta
contra a aniquilação aqui demonstrada pelo crítico reaparece em
Aula de
grego (título provisório) cujo enredo se desenvolve em torno de um
professor de Grego em processo de perda da visão que encontra sua angústia na
de uma aluna com perda da voz.
Mas neste romance, a escritora
sul-coreana se beneficia da reflexão filosófica e poética; de tom borgesiano —
o escritor argentino é referido no começo e no desenvolvimento da trama —,
Aula
de grego examina a impossibilidade de expressar com palavras a complexidade
das emoções, como observa Juvenal Acosta. Este é, nas palavras do escritor
mexicano, uma espécie de tratado acerca do silêncio e da cegueira.
A opção pelo poético, reiterativo
em boa parte da prosa de Han Kang, não é, casual, tampouco, gratuita. Antes do
romance e do conto referidos, formas da narrativa predominante na quase vintena
de títulos publicados desde 1995, foi pela poesia que, dois anos antes, ela se
iniciou na literatura: um conjunto dos seus poemas saiu na edição de inverno da
revista
Literatura e sociedade, uma das publicações mais tradicionais e
prestigiadas da Coreia, que revelou toda uma rica geração de escritores, poetas
e críticos literários.
É verdade que os caminhos de Han
Kang pela escrita foram abertos desde cedo por uma escritora ciente do seu
ofício, dedicada e segura, e isso se deve, como destacou nas várias entrevistas
concedidas, à imersão no universo dos livros desde a primeira infância; não
esqueçamos que falamos de alguém integrada a um proeminente geração de
escritores e da filha do romancista Han Seung-won, um dos mais importantes do
seu país, com extensa obra publicada e reconhecida e um dos fundadores da
chamada Nova Literatura, grupo que iniciou a renovação dos rumos da literatura
sul-coreana a partir da abertura e dos estreitamentos com a obra de autores
como Liev Tolstói, Ernest Hemingway, André Gide, Jean-Paul Sartre, entre
outros.
O contato de Han Kang com essa
tradição e a literatura ocidental moderna favoreceu o encontro com os autores
deste lado da América, como o referido Jorge Luis Borges e os muitos romances
em que as tensões dos estados totalitários muito diziam de um país que se
achava muito distante de ser a potência tecnológica e cultural de agora. Suas
aprendizagens com o pai também encontram respaldo com mãe Im Gam-oh — uma
exímia roteirista de televisão — e no irmão Han Dong-rim, também escritor. Na sua
geração, apenas entre as escritoras, é possível lembrar de Bae Su-ah, Bora
Chung e Shin Kyun-sook, para citar outros três nomes com obras traduzidas no
Brasil.
Uma das três obras de Han Kang
disponíveis para o leitor brasileiro até 2024 é
O livro branco, um livro
luminoso, que contraria a obscuridade e o silêncio de
Aula de grego e
amplia o projeto literário da autora, lançando-se no interesse pela intimidade.
Este é um dos seus projetos mais disruptivos ao toldar as fronteiras entre a
prosa e a poesia e a ordem do discurso na variação entre a primeira e a
terceira pessoa, exercendo-se na prática da deambulação, isto é, aproximando-se
de sua compreensão do que é o romance, campo aberto ao questionamento, com o
qual se avança ou retrocede; “As vezes se regressa ao mesmo lugar de onde havíamos
partido. Finalmente, depois de muito tempo, podemos recordar qual caminho havíamos
feito.” Apoiada nas imagens favorecidas pela memória, uma linha tateia por uma
Varsóvia enterrada na neve invernal, outra, a escrita como flashes busca uma
maneira de iluminar ou revelar a imagem da irmã mais velha morta nos braços da
mãe quando recém-nascida: ao vazio e ao luto, a obra recorre a cor que os identifica
em algumas culturas orientais, o branco, reiterado em capítulos que recorrem a
formas e objetos dessa tonalidade: a neve, o gelo, a lua, o arroz, o papel, a
mortalha etc.
E por falar em claridade, uma vez conhecidas
algumas das bases de formação e algo da obra de Han Kang, seus limites e seus
interesses, esperamos favorecer ao leitor a abertura para a literatura dessa
escritora e só partir daí podermos lançar novas luzes capazes pensar
criticamente ao invés de reduzir tudo ao argumento feito da expressão de efeito
ou mesmo da opinião centrada no desconhecimento e na nossa primeira vontade de
descredibilização, dos piores vícios deste tempo. É visível que a obra de Kang encontra-se
integrada às mais relevantes questões do primeiro quartel deste século e se ancora,
por renovação, numa ampla e significativa tradição que remonta o melhor da literatura
dentro e fora do seu país e, portanto, sempre capaz de surpreender qualquer
leitor ocidental na maneira como conduz os temas de ordem histórica, social e subjetiva
e como renova as extensões das formas literárias e do literário.
Para iniciar na obra de Han
Kang
A vegetariana
Jae Hyung Woo (Trad.)
Todavia, 2018, 176p.
Você pode comprar o livro aqui
Atos humanos
Ji Yun Kim (Trad.)
Todavia, 2021, 192p.
Você pode comprar o livro aqui
O livro branco
Natália T. M. Okabayashi (Trad.)
Todavia, 2023, 160p.
Você pode comprar o livro aqui
Foram essenciais para este
texto
Linard, Sérgio.
A vegetariana,
de Han Kang (resenha).
Letras in.verso e re.verso, 9 jun. 22, disponível
aqui.
Acosta, Juvenal. Han Kang: la poesía hecha historia. Letras
libres, 11 out. 24, disponível
aqui.
MLA style.
Han Kang – Facts – 2024. NobelPrize.org.
Nobel Prize Outreach AB 2024. 13 out. 24, disponível
aqui.
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