Han Kang, o romance como arte da deambulação

Por Pedro Fernandes
 
O homem é um ser que oferece sua vida incondicionalmente para salvar uma criança caída nos trilhos do metrô, mas também é um ser que pode matar outro homem inocente em Auschwitz. Será então possível que o homem possa viver verdadeira e integramente neste mundo?
 
— Han Kang, “Meu estilo de escrita”


Han Kang. Foto: Paik Duhim.


 
Quando, no Brasil, muitos acordavam ou ainda estavam na modorra do início da manhã, chegava às telas a notícia com o nome do Prêmio Nobel de Literatura, como acontece ano a ano. Desta vez, um espanto terá expulsado as últimas nuvens de sono que teimavam mesmo depois da xícara de café. Os atentos à rotina da Academia Sueca nos últimos anos esperavam o anúncio de uma escritora; as agências de aposta estimavam com a chinesa Can Xue que o júri finalmente deixaria o eixo Ocidental e privilegiaria, como muitas vezes foi recorrente, um nome fora da comunidade linguística anglo-saxônica ou nela protagonista. Han Kang confirmou a primeira possibilidade, mas não a segunda. Sua obra se encontrava estabelecida em língua inglesa desde o reconhecimento, em 2016, com o Man Booker para A vegetariana, o principal livro da sul-coreana.
 
Quatro anos antes, no curso de uma primeira invasão da literatura coreana no Brasil iniciada na primeira década deste século graças aos vários incentivos estatais da Coreia do Sul para a expansão da sua cultura fora dos domínios nacionais, A vegetariana contava com uma tradução direta do idioma de origem; o prêmio no Reino Unido favoreceu a reintrodução deste romance em nova tradução também direta do coreano e a constância ao ritmo da língua inglesa de outros títulos de Han Kang: O livro branco (2023) e Atos humanos (2024). Quer dizer, contávamos com alguns dos seus principais livros no nosso idioma e a escritora não era uma desconhecida nossa. A surpresa que muitos sentimos foi outra: uma obra ainda incipiente ou situada no que julgamos uma linha muito tênue entre a literatura de massa e a erudita, isso que, de alguma maneira, ainda é marcante entre as diversas cisões culturais que nos dominam.
 
Ou nem tanto. A repercussão na mídia estrangeira filiou a decisão da Academia Sueca na linhagem dos casos excepcionais quando se demonstra com certa reincidência a juventude de Han Kang. A escritora nasceu a 27 de novembro de 1970. Todos esses elementos trazem à tona diversas questões envolvidas na compreensão do fenômeno literário e a realidade brasileiras e mesmo, numa confusão que envolve os produtos da arte pop que se tornou uma febre entre os jovens e, no plano geral, numa crise dos meios culturais que não encontram mais na obra o ponto de inflexão das suas observações e opiniões mas em critérios extraliterários, muitos, por vezes, fora de quaisquer nexos com a criação artística. O júri de Estocolmo não está livre dessa contaminação. Se antes nada sabíamos dos critérios envolvidos nas escolhas, desde o apogeu da Era Viral, certa aleatoriedade dessas decisões parecem olhar no efeito que elas implicarão nas mídias e entre os usuários do que especificamente no reconhecimento da obra ou abertura para; o caso não é de agora — quantos escritores figuram na lista dos premiados com uma obra facilmente questionável —, mas os seus contornos, justamente pela transparência do real, ficaram mais nítidos. Tudo isso cobra uma complexa reflexão que não cabe nesta matéria e que apenas fixamos entre as motivações desencadeadas a partir da surpresa levantada com o anúncio do dia 10 de outubro.
 
Cabe oferecer um breve panorama do que conhecemos de Han Kang e de sua obra, isto é, deslocarmos o ponto de vista das questões menores, fundadas numa resistência desnecessária, para o que deveria importar exclusivamente nas decisões de qualquer prêmio. A justificativa oferecida pela Academia Sueca, a síntese que se espalha com o nome do galardoado, destaca em Kang a sua “intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana” — uma observação que parece saída da leitura do livro mais recente da romancista, Não se despede (título ainda provisório). Este romance de 2021 conta história de uma jovem que recebe de uma amiga hospitalizada a incumbência de socorrer seu pássaro de estima e ao chegar à casa descobre arquivos de um dos maiores massacres ocorridos na Coreia, quando cerca de 30 mil civis foram mortos no final da década de 1940.
 
Em Atos humanos, outro acontecimento histórico de vasta dimensão trágica domina o enredo: a Revolta de Gwangju. As jornadas de protestos massivos contra o governo militar que havia imposto alta censura fechando as universidades e a imprensa findaram com outro massacre que resultou na morte de centenas de pessoas. O romance examina diversamente a violência, a barbárie e o mal de que a humanidade é capaz e suas marcas, como a dor e o trauma. Eis então uma qualidade da obra de Kang que a distingue da literatura da geração anterior: ao registro dos grandes acontecimentos nacionais se integram as questões de corte universalizante, aquilo que comumente designamos como condição humana. Com este romance, a escritora engrossou a lista negra do governo de Park Geun-hye, entre 2013 e 2017, enquanto A vegetariana continua proibida em algumas bibliotecas e escolas em Seul.
 
Desde os primeiros livros de Han Kang, a crítica tem observado como a sua literatura trabalha além das violências e suas variações, o tema do estranho, este, configurado em personagens ou narrativas incomuns, e a predileção pelos elementos simbólicos que participam no desenvolvimento da complexidade e multiplicidade dos sentidos envolvidos no enredo ficcional, exigindo do leitor outro modo de participação na urdidura da interpretação, priorizando no funcionamento dos gestos e de uma situação os muitos possíveis, seus desdobramentos, sem se reduzir às respostas definitivas.
 
Em A vegetariana, a ordem de uma família aparentemente comum é alterada pelo aparecimento repentino de uma nova consciência da natureza na protagonista. Esse ato é examinado pelo ponto de vista das personagens de seu convívio íntimo. Para Sérgio Linard, este “é um romance que tem uma desenvoltura e uma condução temática interessantes, especialmente porque consegue tratar de forma objetiva e precisa a possibilidade que um mesmo acontecimento tem de desencadear efeitos distintos.” Han Kang compôs o romance partir do enredo do conto “O fruto de minha mulher” (tradução livre), em que a personagem principal atinge o desejo de se metamorfosear em planta.
 
Para Linard, esse desejo replicado na protagonista de A vegetariana sem o efeito de premissa fantástica é “apenas para consolidar externamente aquilo que ela já é internamente. E ela não é uma ‘planta’ porque não tem sentimentos ou porque decide parar de comer carne; ela o é porque sê-lo foi o jeito resignado que encontrou para superar os traumas encabeçados por todos ao seu redor.” Certa condição de luta contra a aniquilação aqui demonstrada pelo crítico reaparece em Aula de grego (título provisório) cujo enredo se desenvolve em torno de um professor de Grego em processo de perda da visão que encontra sua angústia na de uma aluna com perda da voz.
 
Mas neste romance, a escritora sul-coreana se beneficia da reflexão filosófica e poética; de tom borgesiano — o escritor argentino é referido no começo e no desenvolvimento da trama —, Aula de grego examina a impossibilidade de expressar com palavras a complexidade das emoções, como observa Juvenal Acosta. Este é, nas palavras do escritor mexicano, uma espécie de tratado acerca do silêncio e da cegueira.
 
A opção pelo poético, reiterativo em boa parte da prosa de Han Kang, não é, casual, tampouco, gratuita. Antes do romance e do conto referidos, formas da narrativa predominante na quase vintena de títulos publicados desde 1995, foi pela poesia que, dois anos antes, ela se iniciou na literatura: um conjunto dos seus poemas saiu na edição de inverno da revista Literatura e sociedade, uma das publicações mais tradicionais e prestigiadas da Coreia, que revelou toda uma rica geração de escritores, poetas e críticos literários.
 
É verdade que os caminhos de Han Kang pela escrita foram abertos desde cedo por uma escritora ciente do seu ofício, dedicada e segura, e isso se deve, como destacou nas várias entrevistas concedidas, à imersão no universo dos livros desde a primeira infância; não esqueçamos que falamos de alguém integrada a um proeminente geração de escritores e da filha do romancista Han Seung-won, um dos mais importantes do seu país, com extensa obra publicada e reconhecida e um dos fundadores da chamada Nova Literatura, grupo que iniciou a renovação dos rumos da literatura sul-coreana a partir da abertura e dos estreitamentos com a obra de autores como Liev Tolstói, Ernest Hemingway, André Gide, Jean-Paul Sartre, entre outros.
 
O contato de Han Kang com essa tradição e a literatura ocidental moderna favoreceu o encontro com os autores deste lado da América, como o referido Jorge Luis Borges e os muitos romances em que as tensões dos estados totalitários muito diziam de um país que se achava muito distante de ser a potência tecnológica e cultural de agora. Suas aprendizagens com o pai também encontram respaldo com mãe Im Gam-oh — uma exímia roteirista de televisão — e no irmão Han Dong-rim, também escritor. Na sua geração, apenas entre as escritoras, é possível lembrar de Bae Su-ah, Bora Chung e Shin Kyun-sook, para citar outros três nomes com obras traduzidas no Brasil.
 
Uma das três obras de Han Kang disponíveis para o leitor brasileiro até 2024 é O livro branco, um livro luminoso, que contraria a obscuridade e o silêncio de Aula de grego e amplia o projeto literário da autora, lançando-se no interesse pela intimidade. Este é um dos seus projetos mais disruptivos ao toldar as fronteiras entre a prosa e a poesia e a ordem do discurso na variação entre a primeira e a terceira pessoa, exercendo-se na prática da deambulação, isto é, aproximando-se de sua compreensão do que é o romance, campo aberto ao questionamento, com o qual se avança ou retrocede; “As vezes se regressa ao mesmo lugar de onde havíamos partido. Finalmente, depois de muito tempo, podemos recordar qual caminho havíamos feito.” Apoiada nas imagens favorecidas pela memória, uma linha tateia por uma Varsóvia enterrada na neve invernal, outra, a escrita como flashes busca uma maneira de iluminar ou revelar a imagem da irmã mais velha morta nos braços da mãe quando recém-nascida: ao vazio e ao luto, a obra recorre a cor que os identifica em algumas culturas orientais, o branco, reiterado em capítulos que recorrem a formas e objetos dessa tonalidade: a neve, o gelo, a lua, o arroz, o papel, a mortalha etc.
 
E por falar em claridade, uma vez conhecidas algumas das bases de formação e algo da obra de Han Kang, seus limites e seus interesses, esperamos favorecer ao leitor a abertura para a literatura dessa escritora e só partir daí podermos lançar novas luzes capazes pensar criticamente ao invés de reduzir tudo ao argumento feito da expressão de efeito ou mesmo da opinião centrada no desconhecimento e na nossa primeira vontade de descredibilização, dos piores vícios deste tempo. É visível que a obra de Kang encontra-se integrada às mais relevantes questões do primeiro quartel deste século e se ancora, por renovação, numa ampla e significativa tradição que remonta o melhor da literatura dentro e fora do seu país e, portanto, sempre capaz de surpreender qualquer leitor ocidental na maneira como conduz os temas de ordem histórica, social e subjetiva e como renova as extensões das formas literárias e do literário.
 
Para iniciar na obra de Han Kang
 
A vegetariana
Jae Hyung Woo (Trad.)
Todavia, 2018, 176p.
Você pode comprar o livro aqui
 
Atos humanos
Ji Yun Kim (Trad.)
Todavia, 2021, 192p.
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O livro branco
Natália T. M. Okabayashi (Trad.)
Todavia, 2023, 160p.
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Foram essenciais para este texto
Linard, Sérgio. A vegetariana, de Han Kang (resenha). Letras in.verso e re.verso, 9 jun. 22, disponível aqui.
Acosta, Juvenal. Han Kang: la poesía hecha historia. Letras libres, 11 out. 24, disponível aqui
MLA style. Han Kang – Facts – 2024. NobelPrize.org. Nobel Prize Outreach AB 2024. 13 out. 24, disponível aqui
 

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