Por Pedro Fernandes
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Jon Fosse. Foto: Ole Berg-Rusten |
Depois de vários anos inteiramente
dedicados à escrita para o palco, Jon Fosse regressa à prosa ficcional com
É
a Ales; àquela altura, somava mais de sete dezenas de títulos, incluindo
poesia, novela e livros para a literatura infantil e era reconhecido um dos dramaturgos
mais importantes do seu tempo e entre os vivos um dos mais representados no
mundo. O destaque no teatro parece constituir uma marca importante no restante
do seu universo criativo e dizemos isso considerando este romance de 2004.
Uma das incursões de Fernando
Pessoa pelo teatro,
O marinheiro, se tornou exemplo para o que ele
próprio designou como teatro estático, “cujo enredo dramático não constitui
ação — isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem
dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir
uma ação; onde não conflito nem perfeito enredo.”
1 O designativo do
poeta português cai bem para compreendermos a prosa de Jon Fosse em
É a Ales,
teatro que não encontra nem na ação e nem na progressão seu interesse, e sim, na
revelação das almas.
O espaço onde se situa o que, na
ausência de um termo mais adequado insistimos chamar de narrativa, é uma sala
da casa velha. Signe, a única personagem, aparece, envolvida no vazio e na
mesmidade dos dias; no fotograma capturado pelo narrador, é uma quinta-feira de
março de 2002 e a personagem é novamente invadida, por entre o longo interregno
da espera, pela chegada de Asle, o marido desaparecido num dia de novembro de
1979, data que, no jogo de derivas da consciência, alcança a 17 de novembro de
1890, quando a família de Asle padece outro episódio trágico.
O que acompanhamos é o movimento
da consciência de Signe, ora ela própria naquele fatídico dia escuro, chuvoso e
de grande ventania, quando o marido se decide por averiguar as condições do seu
pequeno barco sob o mal tempo de um atípico outono, ora ela própria noutros
dias pela casa velha ou de antes, como quando se descobre apaixonada por Asle,
ora ainda transmudada no marido, perscrutando seus fantasmas e como terá sido o
seu périplo até o seu desaparecimento, encontrando neste acontecimento a repetição
do outro novembro, um passado talvez mal ruminado ou estabelecido nos veios da
alma familiar, uma ruptura seguindo o curso daquelas forças indeléveis e insondáveis
do tempo, uma dessas correntezas sibilinas manifesta quando acreditamos que
tudo é pura mesmidade.
Signe reporta um Asle silencioso,
pensativo e melancólico, distanciado, mas sem identificar nisso a ruína ou
degradação do enlace amoroso; essa possibilidade, como tantos outros possíveis
encontrados nesse romance, qualidade comumente aos enredos de corte
psicológico, é vislumbrada pelo leitor que não deixará de perceber este casal
marcado, no interior daquela descontinuidade do destino aberta em 1890, por outro
corte no desenvolvimento da ordem natural dos seres: sem filhos, Signe e Asle
são o ponto final da pequena família que habita há quatro gerações as terras da
casa velha situada entre a estrada pequena e a estrada grande e aberta para a
grande baía às margens de um fiorde.
A espera de Signe também se abre a
sentidos diversos. Considerando-se o desaparecimento de Asle, é por uma
resposta acerca dos motivadores mesmo que a resposta se encontre oferecida
desde o início do périplo psicológico, que nem sempre é possível esclarecer os
motivos fundamentais de uma atitude. No passado, a bisavó de Asle aceita o fim do
neto no mesmo dia em que recebera de presente de aniversário um barco como elaboração
dentre as muitas tornadas em resignação: a morte precoce por afogamento fora um
desígnio de Deus, para os quais, por mais que os humanos se esforcem jamais
alcançam responder definitivamente os motivos. A sabedoria dos antigos, nesse
caso cristã, encontra na aceitação do mistério a paz que permite ao homem continuar.
Asle não terá alcançado essa paz e o passado se materializa como sua sombra,
como encontramos na própria matéria do seu nome, o mesmo daquele seu
antepassado que perdeu a vida aos sete anos num outono menos castigável que o
de 1979.
É possível que este passado seja
apenas fantasmal, perturbador da consciência de Asle e, por sua vez, de Signe,
a mulher que se situa entre a espera do regresso do homem com quem se casou ou
a tecer conjeturas acerca do seu distanciamento. Se assim, a marca trágica é
superada e a espera dela pode ser pelo acontecimento capaz de subverter aquele
passado e ao mesmo tempo o destino de fim da família. A espera pela vida nova.
O corte do fluxo de consciência que resulta no fim do romance introduz essa possibilidade
aparecida desde o início com o despontar da primavera — estamos numa
quinta-feira de março —, pelas imagens maternais do convívio do pequeno
antepassado Asle com a avó Ales.
No calendário cristão — associando
ao imaginário simbólico do catolicismo de Jon Fosse —, essa quinta-feira de março
pode assinalar parte importante da preparação para a Páscoa, a que significou a
vitória de Jesus sobre a morte, o pecado, o sofrimento e o inferno. Esses
sentidos são convocados na conjugação de uma série de imagens: o sepultamento
do antepassado Asle, a pequena ceia dada por Ales ao neto, a aparição de Asle para
Signe, no pedido com o qual ela sutura o fluxo de seu pensamento que é o pedido
de alguém ingressa num grande calvário e busca a iluminação necessária para
romper a última margem da travessia. Tão importante quanto a espera, são os
signos da passagem, da escuridão e da chama, manifestos nos três tempos que se
interpenetram no desenvolvimento dessa consciência.
Vale sublinhar nesse instante um
aspecto da linguagem desse romance capaz de incomodar um pouco o leitor, quase sempre
acomodado aos princípios da continuidade e da objetividade: a repetição,
impressa mesmo nos arremedos de diálogos cuja matéria disruptiva parte de um
nada para outro. Certa altura, quando surpreendemos a consciência de Signe
desdobrada na de Asle aquando a peregrinação pela estrada grande na escura e fria
tarde de novembro de 1979, essa personagem vê ao longe às margens da baía um
fogo. É claro que a matéria literal dessa imagem pode servir para uma miragem
considerando-se a condição em que Asle se encontra, tomado pela força do frio,
mas fiquemos, por enquanto com a maneira como se repete a presença da chama na
narrativa: pequena, grande, difusa, indecisa, metamorfose de um ser de
múltiplos olhos, máscara do próprio viandante. A mobilidade dessa imagem é
oferecida pela repetição e pelo desenvolvimento de sua aparição. E entre os
possíveis para um fogo que não se sabe qual o motivador, Asle se encontra ante
o remoto passado, quando redescobre aquela memória primitiva da avó Ales no
preparo de Svið.2 Já no tempo de Signe, o fogo na enseada é
provocado por jovens da propriedade vizinha que vieram pedir autorização para usar
o abandonado barco de Asle como lenha para fogueira.
Uma compreensão para o inventário
dos pares simbólicos ou mesmo de alguns elementos utilizados por Jon Fosse em É
a Ales abre amplamente os sentidos do romance: gelo-fogo; frio-calor; céu-terra;
terra-mar; mar-montanha; claro-escuro; dia-noite; fogo, barco, casa, carneiro,
estrada, noite. E se muitos podem ser lidos à luz da simbologia do catolicismo cristão,
como notamos de passagem, também podem ser analisados pelas significações que
ocupam no imaginário literário e da cultura nórdica. Signe guarda traços de
Penélope, tecelã e à espera do amado; e este é o navegador decaído. A pequena
embarcação, que a esposa julga insegura pelo tamanho, foi construída à maneira
dos objetos imortais, sob medida, e o último feito pelas mãos de um artífice na
feitura de barcos.
A barca é símbolo da travessia —
recorrência aventada nestas notas; aqui a força e a agressividade do barco
viking são convertidas na fragilidade e na serenidade do pequeno barco de Asle.
No entanto, na tradição cristã, os embarcados encontram o refúgio para vencer
as ciladas do mundo. A destruição do barco no romance estaria na ponta
contrária desses sentidos, mas, seu desfazimento do elemento trágico e sua
transformação em ideia, matéria com a qual Signe deve se refugiar para continuar
sua travessia, é o estar num navio batido pela tempestade quando se tem a
certeza de que não naufragará.3
É a Ales, nota-se, é
simples, mas as significações inesgotáveis e a depender dos possíveis que
elegemos como enredo, múltiplas numa mesma base — princípios, nunca é demais
repetir, indispensáveis ao literário. Lemos como quem aprende. Jon Fosse trabalha
como um ourives, que se interessa não pelo cerne da coisa, mas pelo seu
processo de descoberta. O romance é um cadinho em que o grandioso — nesse caso,
poderíamos dizer, uma ferida trágica — se descobre lenta e aproximadamente à
medida que uma consciência se dispõe perscrutar nos acontecimentos pequenos,
corriqueiros, se o seu tempo é mesmo feito de repetições. O cotidiano encobre
os instantes ou as circunstâncias com os quais resultam sempre em silêncio, o
difícil de encarar diretamente. A boa literatura afasta esse véu e o entrevê
como revelação, esse marco que encerra o romance ora lido.
______
É a Ales
Jon Fosse
Guilherme da Silva Braga (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
112 p.
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Notas
1 Cito a partir de
Páginas de
Estética e de Teoria Literárias (Ática, 1966).
2 É um prato tradicional da
culinária islandesa cujo ingrediente principal é uma cabeça de ovelha partida
ao meio; seu preparo inicial é feito chamuscando a cabeça do animal no fogo
para remover a pelagem e lavada em água fria, tal como se descreve no romance.
3 Utilizo-me das ideias
desenvolvidas por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant em
Dicionário de
símbolos (José Olympio, 2022).
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