Por Tomás Baviera
Fiódor Dostoiévski viveu na
segunda metade do século XIX, numa Rússia czarista que começava a incorporar
certas reformas sociais. As obras que escreveu tiveram forte impacto em sua
época. Os leitores de hoje também recebem seus romances com interesse.
Provavelmente, a razão que explica, em grande parte, a relevância da obra desse
escritor é que ele soube formular as questões que o homem moderno carregava
dentro de si e, além disso, conseguiu oferecer respostas coerentes e adequadas para
essas questões.
O projeto literário de Dostoiévski
se desenvolve em um momento de forte influência ideológica. Inicialmente, ele conviveu
com reformadores utópicos, até ser preso e condenado à Sibéria por crimes
políticos. A experiência de conviver e trabalhar com os mais depravados e
miseráveis
da sociedade
marcou-o profunda e definitivamente.
A leitura dos Evangelhos durante
os anos de prisão serviu para a grande virada nas suas convicções. Das utopias
modernas que ofereciam fórmulas bem-sucedidas para a felicidade social,
passou-se para uma psicologia humana penetrante, que nem sempre foi bem
compreendida.
No final da vida, o escritor
recebeu críticas sobre os temas que costumava discutir em seus escritos. Elas o
repreendiam por ser obcecado por um certo tipo de conduta que refletia uma
vontade enfermiça em seus personagens. E a resposta a essa crítica foi
publicada no
Diário de um escritor, uma publicação editada pelo próprio
Dostoiévski. Na sua resposta, não apenas negou as críticas, mas também as
tornou suas e sugeriu algumas das suas motivações mais profundas para a sua
tarefa literária:
“No que diz respeito à ‘minha
fraqueza pelas manifestações patológicas da vontade’, direi apenas que, de fato,
tenho por vezes conseguido desmascarar nos meus romances e contos certas
pessoas que se consideram sãs
e
mostrar-lhes que est
ão doentes. Sabe que h
á muitas pessoas cuja enfermidade se deve justamente
à sua boa sa
úde, ou seja,
à
excessiva confian
ça na sua normalidade, o que lhes
infunde uma terr
ível presun
ção, um
amor-pr
óprio desavergonhado que por vezes quase os
convence da sua infalibilidade? Pois bem, estas são as pessoas que mais de uma
vez mostrei aos meus leitores, e é até possível que tenha chegado ao ponto de
demonstrar que estes indivíduos não gozam de tanta saúde
como sup
õem, mas,
pelo contr
ário, est
ão muito
doentes e precisam de cura.”
1
Dostoiévski não buscava a reforma
ideal da sociedade ou a denúncia dos abusos dos poderosos. Pretendia algo mais
revolucionário e, claro, mais doloroso: diagnosticar enfermidades morais.
Somente se o leitor tomasse consciência de seu desconforto seria possível que pudesse
realmente ser curado. Dostoiévski, no fundo, desejava contribuir para a saúde
moral de seus leitores.
O Iluminismo, ao sublinhar o papel
preponderante da razão e do conhecimento para a felicidade do homem, prestou
menos atenção às outras dimensões da pessoa. Em particular, a reflexão sobre o
bem foi altamente condicionada por uma lógica baseada em resultados
verificáveis.
Assim, o homem moderno logo acabou
dando ombros para as questões de ordem moral. Ele não podia dizer muito com
certeza neste âmbito, uma vez que a razão treinada pela ciência estava confusa
por não ter um método eficaz de julgamento moral.
Diante desse cenário, Dostoiévski
pensava que, mesmo que o paciente não soubesse que tinha uma doença, nem por
isso deixaria de se encontrar mal. A ignorância pode ser a melhor aliada da
doença. Assim, o autor pretendia fazer com que aqueles que se vangloriavam de
saúde moral percebessem que talvez necessitassem de algum tratamento para curar
a sua vontade. Uma forma de conseguir isso foi tentar mostrar as consequências
das abordagens modernas e propor ideias de acordo com a estrutura moral da
pessoa.
Sem fé na imortalidade não há
amor
O homem moderno, autoconfiante e
confiante na sua autonomia, considerava que a liberdade só poderia ser
considerada como tal se pudesse escolher sem quaisquer restrições. Contudo,
diante desta atitude havia um obstáculo particularmente incômodo: Deus. A ordem
moral que tinha origem em Deus era vista como uma ameaça à liberdade moderna.
Dostoiévski sintetizou a fórmula desse
conflito no último de seus romances, Os irmãos Karamázov. Provavelmente a
expressão mais conhecida deste romance é a tese de Ivan, o segundo dos irmãos,
que pode ser formulada nesses termos: “Se Deus não existe, então tudo está
permitido”.
Na verdade, o narrador nunca explicita
tal síntese pela expressão de Ivan. São outros personagens que conversam com
ele acerca desse raciocínio. Porém, ao ler lentamente essas conversas,
observa-se que a premissa da tese tem mais a ver com a dimensão espiritual do
homem:
“Ivan Fiodórovitch acrescentou,
entre parênteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que,
destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato
não só o amor como também toda e qualquer força para que continue no mundo. E
mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a
antropofagia.” 2
Ivan Karamázov é a referência do
ateísmo esclarecido. Pessoa culta e educada, afirma claramente que Deus não
existe, e deduz — com lógica impecável — que, sem Deus, não há fé na
imortalidade do homem. Portanto, falta-nos um sentido para a nossa existência e
o nosso amor se afogará mais cedo ou mais tarde. Como não há nada imortal, nada
duradouro, não haverá razão para vetar qualquer conduta. A distinção entre o
bem e o mal seria, portanto, algo imposto pela força.
Se tal tese pode parecer
exagerada, ou talvez ultrapassada, vale a pena ter em mente que o século XX
conheceu uma ressonância contínua desta intuição de Dostoiévski. Provavelmente
o eco mais difundido tenha sido um dos lemas de 1968: “É proibido proibir”.
Este slogan é ainda a formulação precisa da rejeição de qualquer limitação da
liberdade por parte de qualquer autoridade.
A reviravolta dostoievskiana
pela liberdade
Dostoiévski deixa o raciocínio de
Ivan sem resposta direta. Mas ele faz algo mais útil: refuta essa tese com a
história de outros personagens e com o desfecho trágico do próprio Ivan.
Uma das melhores respostas à abordagem de Ivan é a história
pessoal de Zossima, um stárietz com grande ascendência sobre o irmão
mais novo dos Karamázov. Quando jovem, Zossima fez amizade com uma figura mais
velha que ele. Este homem era conhecido na cidade pelas suas obras de caridade
e era apreciado por todos.
A certa altura, esse personagem
revelou a Zossima um terrível segredo: há quatorze anos ele havia assassinado
uma mulher por ciúme e encoberto seu crime para que um dos empregados da casa
fosse acusado.
Embora esse personagem
inicialmente se dedicasse ao seu trabalho, cada vez que se lembrava do que
havia feito, era tomado por um forte pesar. Não conseguia esquecer. Esse
sofrimento o deixa ainda mais amargo quando se casa. É assim que Zossima se
lembra:
“Ainda no primeiro mês de
casamento uma ideia constante passou a perturbá-lo: ‘Pois bem, minha mulher me
ama, mas e se ela viesse a saber?’. Quando ela engravidou do primeiro filho e
lhe comunicou o fato, ele ficou subitamente perturbado: ‘Estou dando a vida e
eu mesmo tirei uma vida’. Vieram os filhos: ‘Como me atreverei a amar, a
ensiná-los e a educá-los, como vou lhes falar de virtude? Eu derramei sangue.
Meus filhos estão crescendo belos, tenho vontade de acariciá-los. Mas não posso
olhar para seus rostos inocentes, serenos; sou indigno disto’. Por fim começou
a ter a temível e amarga impressão de ver o sangue da mulher assassinada, a
vida jovem destruída, o sangue clamando por vingança.”
Essa ação deixou uma marca
profunda nele, que nem o tempo nem as suas boas ações conseguiram apagar. O
crime, fruto de uma decisão certamente excitada por uma paixão, e a sua injusta
acusação de um homem inocente, tornaram-no indigno do amor dos seus filhos. Na
realidade, este homem desempenha um papel: aparenta um filantropo e um bom pai,
mas, no fundo, não ousa dar-se a conhecer por medo de ser rejeitado pela mulher
e pelos filhos. Eu estava cheio de vergonha.
Ao lidar com o jovem Zossima, este
personagem decidiu confessar o seu crime, após intensos debates internos
consigo mesmo. Realmente não acreditaram nele quando contou isso publicamente,
mas ele encontrou uma paz que não tinha antes. A escolha pela verdade da sua
vida abriu-lhe as portas de Deus e, sobretudo, fê-lo escapar ao amargo
sofrimento de não se ver sinceramente amado pelos outros. Depois da comoção,
pôde dizer com convicção ao seu jovem amigo: “Deus não está na força, mas na
verdade”.
Dostoiévski fornece uma chave para
decifrar o enigma da liberdade do homem. Parecia que o inimigo da liberdade era
a autoridade, e especialmente a autoridade divina. Parecia que as regras
impostas sufocavam a liberdade. Porém, diante da história do jovem Zossima,
Dostoiévski sugere que o verdadeiro inimigo da nossa liberdade somos nós
mesmos: podemos realizar ações que nos impeçam de amar, ou, para ser mais
preciso, que nos impeçam de ser amados com sinceridade.
Desta forma, a obra de Dostoiévski
ilumina o significado do que é bom: o bom é aquilo que nos transforma em
pessoas dignas de ser amadas. Este princípio é o que guia a liberdade
autêntica.
Com a história do amigo de Zossima,
o romance nos mostra que nem tudo é permitido. Ele faz isso mudando o nosso
ponto de vista: o que verdadeiramente angustia o homem não é o que é permitido
ou o que é proibido, mas o que ele deixa de receber. Dostoiévski nos ajuda a
compreender que a identidade profunda do homem reside não tanto em fazer, mas
em receber.
Com essa virada dostoievskiana da
liberdade, a pessoa pode revitalizar-se e, em vez de ver ameaças, abrir-se à
descoberta de um amor que quer curar sua vontade ferida.
Notas da tradução
1 A tradução do excerto é a partir
do texto em língua espanhola: Dostoiévski, F. “Sou um inimigo das crianças? O
que às vezes significa a palavra feliz?” In Diário de um
escritor (dezembro de 1877). Barcelona: Alba, 2007, p. 583.
2 Esta e as demais passagens de Os
irmãos Karamázov neste texto são da tradução de Paulo Bezerra (Editora 34, 2019).
* Este texto é a tradução livre de
“Dostoyevski, ‘Los Hermanos Karamazov’, y lo que está permitido”, publicado
aqui em Nueva Revista.
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