De como evitar o afogamento entre livros: Roberto Calasso e as bibliotecas

Por Mary Carmen Sánchez Ambriz


Roberto Calasso. Foto: Enrica Scalfari


Nadar entre os livros
 
Acumular livros não é o mesmo que possuir uma biblioteca. Um conhecido retrato do fotógrafo Rogelio Cuéllar captura José Emilio Pacheco (1939-2014) em sua biblioteca pessoal. Os livros não estão apenas nas estantes e na escrivaninha; há também volumes empilhados ao seu redor que inclusive chegam a cobrir (ou emparedar) parcialmente uma janela. Parece um redemoinho livresco. Como quem está no seu interior, sem medo do naufrágio iminente entre papéis e letras, o escritor olha para a câmera com serenidade.
 
Essa paisagem descreve muito bem o ambiente de onde surgia a coluna “Inventário”. Num tempo posterior à Enciclopédia Britânica (que Borges tanto elogiou), mas anterior à Wikipédia, Pacheco nadava entre os livros durante dias ou semanas para configurar textos que pareciam concentrar tudo em torno dos temas escolhidos, geralmente questões sociais ou políticas atuais, ou, ainda, o que era mais comum, exercício literário. Joias do jornalismo cultural agora extintas.
 
É comum a imagem do escritor que se perde entre os livros e tenta não ser devorado pelas enormes mandíbulas de sua biblioteca. Nadar numa biblioteca é como nadar em mar aberto e evitar os seus terrores, é observar o horizonte — aparentemente distante — e traçar uma rota para chegar a um porto seguro. Peixes grandes e pequenos, até mesmo lixo, serão encontrados, mas o autor deve ter clareza para onde está indo. É disso que trata o ensaio diverso de Roberto Calasso Como organizar uma biblioteca. É uma revisão do que significa ter uma biblioteca, ser escritor, editor e professar um profundo amor pelos livros.
 
Já faz muito tempo que o nome de Roberto Calasso não emergia desse outro mar que também engloba as novidades literárias. A leitura destas reflexões torna esta maratona mais suportável, pois se torna um guia agradável de um anedotário que oscila entre a história e a reflexão. Foi Baudelaire quem disse que os seres humanos têm direito à desordem. Talvez ele tenha mencionado isso quando viu sua biblioteca ou a mesa da sala de jantar abarrotada de livros; porém, o autor italiano não percebe a frase baudelairiana quando assegura que “não se vive sem ordem”. Lamenta que Kant, em sua obsessão pela estética transcendental e outros temas filosóficos, não tenha dedicado um breve tratado ao ato de organizar uma biblioteca.
 
Thomas Carlyle — lembra Calasso — era um devorador de livros. Na Inglaterra, olhavam para ele como um “cowboy que chegado das planícies americanas” e não da Escócia. Assim como Carlyle, os gregos eram reconhecidos porque possuíam grandes bibliotecas: as de Ateneu, Pisístrato, Euclides, Eurípides, Aristóteles e Teofrasto. Quem nada em águas abertas tem em mente cumprir a missão de nadar nos sete mares, desafio que é considerado a maratona para a natação. Sem dúvida, os gregos eram excelentes nadadores de suas bibliotecas. Carlyle imaginava que uma biblioteca deveria ser privada, para leitores inteligentes e que teria a capacidade de enviar livros emprestados para qualquer lugar do mundo.
 
Neste mesmo ensaio, um angustiado T. S. Eliot confessa que se sentia tão sobrecarregado com a acumulação de livros que quando precisava de um deles optava por recorrer à Biblioteca de Londres, visto que os seus volumes eram “relutantes a qualquer tentativa de organizá-los.”
 
O que fazer para não sucumbir ao árduo exercício de nadar entre os livros? Uma das recomendações feitas neste manual de sobrevivência literária é aplicar a regra do bom vizinho, expressa por Aby Warburg, onde um livro que está ao lado acaba sendo tão ou mais interessante que aquele que você procura. Isso acontece em uma biblioteca perfeita. E Calasso indica ter experimentado essa regra com resultados eficientes.
 
O patrimônio literário como terreno vulcânico
 
Warburg movia e reorganizava seus livros, quase obsessivamente, como numa história sem fim, à medida que invariavelmente chegavam novos títulos e coleções que colocavam os critérios organizacionais do historiador alemão numa encruzilhada. Contudo, Calasso questiona essa necessidade de classificar — exaustivamente — e ordenar os livros; para ele, uma biblioteca nunca deveria encontrar uma solução, pois é “um organismo em permanente movimento. É um terreno vulcânico, onde sempre está acontecendo algo, mesmo que não seja perceptível de fora.”
 
O que é um livro? pergunta o editor florentino, que foi diretor do selo Adelphi. “O livro, como a colher, pertence àqueles objetos que são inventados de uma vez por todas”, ressalta. O livro extrai o pensamento, como a colher extrai o alimento. Nesse sentido, poderíamos falar de duas denominações: os livros-colher e os que não alcançam essa denominação. Com as edições da primeira classificação — invariavelmente — haverá referências que fluem de uma edição para outra, diários de viagem no árduo esporte de nadar entre livros. E, para a segunda divisão dos livros, aqueles que não têm a dualidade de serem colheres e que se apresentam como “os verdadeiros”, na realidade “nunca são algo que se teria vontade de procurar” numa biblioteca, diz o ensaísta italiano.



 
Agora, como se livrar de todos esses títulos em trânsito? “Há também os livros molestos, aqueles que uma biblioteca não deveria acolher, em primeiro lugar porque agradam a seus vizinhos de prateleira. Eles são a contraparte da regra do bom vizinho. […] uma biblioteca deveria se fundar a partir de grandes exclusões”, observa Calasso. O que fazer com esses vizinhos impertinentes? Sobre estas edições o italiano resgata uma anedota curiosa. Borges recebia novidades literárias, edições de autor, livros que na maioria das vezes — sem ter solicitado — chegavam com uma dedicatória à mão e letra do escritor. Um dia, em Buenos Aires, sua terra natal, ele decidiu levar alguns desses volumes ao café que visitava — provavelmente o Café Tortoni, no antigo bairro de Monserrat. Ao pagar a conta, ele empilha os livros sobre a mesa e deixa o local, esperando que ninguém pare seus passos e aponte seu esquecimento.
 
Cada pessoa decide como evitar se afogar em livros que não valem a pena acumular. Pessoalmente, prefiro que estes títulos sejam adquiridos por um velho livreiro, um homem errante que trabalha como crítico literário tenaz quando pondera se deve ou não comprar os livros que lhe ofereço. E é aí que a página da dedicatória chama a sua atenção e faz você exclamar e abrir mais os olhos: “É com dedicatória!” Assim, opto que o livro vá em busca dos novos leitores que cada edição merece, seja qual for a sua linhagem.
 
A impressão digital do leitor
 
Às vezes pegamos um livro e lembramos de um de nossos encontros com aquela leitura. Uma biblioteca é um palimpsesto da nossa história. A evidência está aí, o que marcamos sutilmente com um lápis ou o que anotamos com letras minúsculas na margem da página. Por isso evito emprestar livros marcados, porque significa deixar uma parte de mim à mostra; embora esses limites individualistas sejam apagados quando se tem uma biblioteca e a compartilha em casal: às vezes vocês se surpreendem porque o que seu cônjuge destacou não tem nada a ver com o que me interessou no livro, e vice-versa. Como aconteceu recentemente com o livro de Cristina Rivera Garza sobre o assassinato de sua irmã Liliana: ele destacou quando Liliana prepara pão francês para o café da manhã, e eu enfatizei o cheiro que a autora lembrava de morar com sua irmã (depois de ter passado horas em uma piscina quando eram crianças), o cheiro de cloro.
 
Calasso desconfia dos leitores que deixam os livros intactos. Essas pessoas o deixam incrédulo, pois cada leitura deixa uma marca. Se não acrescentarmos sinais de que nossos olhos percorreram as páginas de um livro, poderíamos pensar que ficamos indiferentes à leitura? Não sei. Borges, novamente citado nesta passagem por diversas bibliotecas, optava pela caligrafia de inseto, como ele mesmo a definia; e Oliver Sacks, por sua vez, sentia-se confortável escrevendo com duas cores: preta e vermelha, na margem. O neurologista e escritor tinha uma régua em mãos, pois sublinhava diversas linhas e as destacava com caneta preta.
 
O ensaísta italiano aborda também a pergunta que os não-leitores costumam fazer aos proprietários de acervos literários: E você leu todos esses livros? Essa inquietação escapa, sem medir as consequências do seu evidente distanciamento da leitura. Se o mundo está dividido entre leitores e não-leitores, estes últimos não têm problema em dar a conhecer a sua condição. E a resposta torna-se tola, um lugar-comum saturado de truísmos: “Há vários deles que me servem para consulta”. Mas mesmo tendo esse caráter de serem mais “informativos”, são lidos, revistos, tornam-se cativantes no labirinto vulcânico que é uma biblioteca.
 
Sempre achei interessante como nasce um leitor, uma pessoa que mais cedo ou mais tarde terá uma biblioteca. Carlos Diez Esser, jornalista e escritor colombiano, diz que foi graças ao seu pai que se tornou leitor e aos seus doze irmãos mais velhos, que lhe ensinaram — por imitação — o que ele chama de “fazer silêncio”. Na casa de sua família havia rebuliço, vozes por toda parte, mas assim que um de seus irmãos abria um livro, os outros o seguiam porque já haviam descoberto o prazer de ler e então a calma reinava.
 
Para mim, a melhor biblioteca é aquela que tem os livros que preciso e onde, além disso, prevalece o silêncio, porque até a mais excelente composição musical atrapalha a minha leitura. Me vem à mente que me tornei leitora durante os anos do ensino médio, ao fugir do inquisitorial professor de educação física com um atestado médico — arrancado do bloco que pertencia a um tio pediatra; depois de copiar as regras de algum esporte que a professora me ensinava, tinha tempo de ler e recuperar aquele silêncio que tanto desejava em mim em meio a agitação escolar. Lia o que queria naquele momento para mim, sem a pressão de nenhuma tarefa: lia para fugir da monotonia das aulas, faminta de silêncio. Quando Borges trabalhava em uma biblioteca experimentou o contrário: abria um livro e seus colegas de escritório começavam a murmurar porque acreditavam que era uma forma de se fechar ao diálogo com eles, uma falta de respeito; e por isso passava vários momentos do dia no telhado com um livro nas mãos, fugindo do que as pessoas diriam.
 
Talvez Como organizar uma biblioteca decepcione o leitor que deseja encontrar instruções sobre como classificar seus livros, em tempo hábil, como se fosse uma receita culinária, pois o autor se diverte exibindo digressões, conexões e relações de diversos autores com seus livros. A riqueza deste ensaio é perceber que ninguém tem um método absoluto para colocar em prática, e também aproveitar a caminhada (às vezes uma corrida e outras vezes uma caminhada suave) pela história, a master class sobre como editar, comprar, vender, ler e guardar livros.
 
Volto à imagem de José Emilio Pacheco dando braçadas em sua biblioteca, um bunker intelectual que testava qualquer tentativa de organização, de onde observava o que acontecia ao seu redor e exercia seu direito à desordem, postulado por Baudelaire. Pacheco mergulhava nas profundezas do seu acervo literário, mas no aparente caos havia ordem, um princípio ou instinto intelectual que só ele poderia seguir no momento preciso, justamente quando se preparava para escrever o seu “Inventário”. Certamente o Emilio Pacheco, assim como Roberto Calasso, acreditava que uma biblioteca era um organismo em perpétuo movimento. 


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Como organizar uma biblioteca
Roberto Calasso
Patricia Peterle (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
144 p.


* Este texto é a tradução livro de “De cómo evitar el naufragio entre libros: Roberto Calasso y las bibliotecas”, publicado aqui, em Nexos.

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