Buñuel e a aventura surrealista

Por José de la Colina

Luis Buñuel. Foto: Man Ray.




 
1
Quem visitasse a exposição Surrealismo. Vasos comunicantes1 precisava passar por uma porta dupla que era ao mesmo tempo uma tela sobre que fluíam imagens do filme Um cão andaluz. Essa obra inicial de Luis Buñuel e Salvador Dalí é marcada por algumas portas emblemáticas, principalmente uma mal entreaberta, (ou entreaberta?), que prende uma mão enxameada de formigas, e outra que, de um quarto citadino, se abre para uma paisagem inesperada de uma praia ensolarada naquela em que os amantes conflitantes se reencontram no desejo realizado e logo são como que vitimados pela escaldante primavera.
 
Essa porta/ tela pela qual passa Um cão andaluz, essa bela ideia/ ponte da exposição, é obra de Javier Espada, cineasta e diretor do Centro Buñuel de Calanda (Aragão, Espanha), que também havia chegado ao México com um filme de quatro minutos intitulado Al filo de la vida, no qual, ao ritmo vivo e reiterativo dos tambores Calanda, tremeluzem, numa sístole e diástole de luz e escuridão, algumas das imagens emblemáticas do cinema buñueliano.
 
Em Aurélia, de Gérard de Nerval, uma delirante e lúcida narrativa autobiográfica, há algumas linhas precursoras acerca das portas de entrada ao mundo dos sonhos e do subconsciente em que, apenas mudando duas palavras no texto, se prevê tanto o surrealismo como as suas portas entreabertas para a paisagem da atividade onírica, como o cinema e as portas/ cortinas de entrada a uma sala escura onde se desencadeia o fluxo de imagens:
 
“O sonho [ou cinema] é uma segunda vida. Os primeiros momentos de um sonho [ou de um filme] são a imagem da morte; uma morosidade difusa aprisiona nossos pensamentos e não podemos determinar o momento em que o eu, sob outra forma, persegue o desejo da existência. É um subterrâneo sombrio que se ilumina aos poucos e de onde emergem da escuridão e da noite as pálidas figuras que habitam os limbos.”
 
Então se trata de portas. Portas abertas ou entreabertas para o mundo diurno e ao mundo noturno, ao espaço real ou ao espaço mental da razão ou do outro pensamento, ou do subconsciente. Portas sobre as quais André Breton, fundador com os seus amigos de uma nova aventura da condição humana, escreveu em 1924 o seu Primeiro Manifesto do Surrealismo, no qual dizia (e ainda diz): “Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer.”2
 
Aparentemente, a palavra e a pré-concepção do surrealismo vieram de um filósofo e três poetas: Thomas Carlyle intitulara “Supernaturalismo natural” um dos capítulos do seu Sartor Resartus. O já mencionado Gérard de Nerval escreveu a palavra surnaturalisme (supernaturalismo) na dedicatória de suas As filhas do fogo. No início do século XX, um ensaio de Guillaume Apollinaire já havia proposto a palavra surréalisme (superrealismo). E em 1918 uma teoria pré-surrealista da imagem seria anunciada, e exigida, por Pierre Reverdy:
 
“A imagem é pura criação do pensamento. Não deve surgir de uma comparação, mas da proximidade de duas realidades distantes entre elas. Quanto mais distantes e precisas forem essas duas realidades, mais forte será a imagem, mais vibrante de emoção e poesia.”
 
Pode-se dizer que nestas proposições (que, como na metáfora dos vasos comunicantes, comunicam níveis paralelos: o de uma realidade racionalmente pensada e o do pensamento subconsciente) está toda a prefiguração da arte e da poesia surrealistas. Essas ideias se enraizarão numa moral contrária aos valores morais convencionais da civilização ocidental e pregarão a tentativa de fundar uma nova realidade aliada ao desejo e aos poderes oníricos.
 
2
Na varanda, uma rechonchuda e bonita mulher contempla o céu estrelado enquanto na sala ao lado um homem afia uma navalha. Quando uma pequena nuvem atravessa a lua, o homem sai até a varanda e corta horizontalmente um olho da mulher, que recebe a agressão numa atitude passiva, quase aquiescente...




As imagens de abertura de Um cão andaluz (em que o olho cortado é na verdade o de uma vaca) continuam a impressionar o espectador mais do que o cinema de terror atual com seus truques técnicos mais sofisticados, mas se o filme (silencioso, em branco e preto e 17 minutos) continua ainda vigoroso, alguns visitantes da sala naquela exposição de 2012 dedicada ao surrealismo ainda procuravam nele um “significado”.
 
O próprio diretor negou qualquer “significação” de Um cão andaluz. O filme, disse Buñuel, apenas reunia uma série de imagens que surgiram durante conversas com o coautor do roteiro, o pintor Salvador Dalí. A princípio os dois queriam o título Proibido olhar para dentro (antítese do aviso sobre as janelas dos trens: “É perigoso olhar para fora”), mas isso pareceu aos roteiristas demasiado literário e optaram por utilizar o de um inédito livro de poemas de Buñuel.
 
Quando o filme estreou em 1928 numa pequena e seleta sala do Quartier Latin, Breton e os fundadores do surrealismo compareceram dispostos a boicotá-lo, pois suspeitavam que se tratava de uma arte esnobe e vagamente vanguardista amparada sob o rótulo de “surrealista”, mas, vendo que se adiantava ao axioma “A beleza deve ser convulsiva ou não será” (André Breton), apressaram-se a acolher os coautores no seu exigente grupo.
 
Na década de 1940, o escritor inglês Cyril Connolly observava em seu livro The Unquiet Grave: “É assim que Um cão andaluz caminha para um final em que os protagonistas jazem enterrados até o pescoço no deserto sem limites, cegos e esfarrapados sob o sol e devorados por insetos. Este mundo hermético de ciúme e luxúria, de paixão e aridez, cujos belos personagens vagam como doninhas sedentas de sangue, provoca uma sensação de frenesi e libertação. Nele fala o Id e, pela primeira vez no cinema, a angústia latente sob a vasta complacência do mundo do pós-guerra” (isto é, a atmosfera moral das elites culturais da década de 1920). Antes, em 1938 e no México, o poeta Xavier Villaurrutia havia resenhado uma exposição de cineclube na revista Hoy uma exibição de cineclube. A obra deveria ser vista como “uma série de imagens carregadas de erotismo e crueldade, sempre inusitadas, dentro de uma densa atmosfera de angústia. O espectador está à mercê do poder ‘ativo’ da imagem que não lhe deixa nenhum ponto de descanso. A sensualidade do filme é algo vivo e sombrio ao mesmo tempo. O olho cortado pela navalha e as formigas na mão são, entre muitas outras, verdadeiras metáforas bem realizadas.”
 
Mas do que tratava o filme? Jacques B. Brunius sustentava que “pelo seu argumento, Um cão andaluz é uma afirmação do valor da anedota”. E pela nossa parte, Pérez Turrent e eu, no livro de entrevistas Luis Buñuel. Prohibido asomarse al interior, tentamos uma possível sinopse narrativa dos três capítulos (?) sugeridos por três subtítulos:
 
Era uma vez. Um homem (Luis Buñuel) corta o olho de uma jovem (Simone Mareuil). Uma nuvem passa na frente da lua. Oito anos depois. Um ciclista (Pierre Batcheff) sofre um acidente na rua. A jovem o socorre e o beija. Num quarto, o ciclista “renasce” e tenta eroticamente a jovem. Os dois contemplam pela janela um acontecimento de rua: no meio da multidão um aparente andrógino brinca com uma mão decepada e um carro o atropela. O ciclista acaricia a mulher, persegue-a pelo quarto arrastando objetos amarrados em cordas: abóboras, piano, burros mortos etc. Um “duplo” do ciclista impõe-lhe castigos escolares. O ciclista atira contra o “duplo” e ele morre abraçado ao torso nu da mulher. A jovem encara uma mariposa da espécie “cabeça-de-morto”. O ciclista, mais uma vez “renascido”, volta a cercar a mulher. Ela sai do quarto para uma inesperada praia ensolarada, onde passeia alegremente com outro jovem (ou será o ciclista?). Na primavera. A mulher e o novo (ou o mesmo?) homem aparecem semienterrados até o pescoço na areia, devorados por insetos sob um sol forte.
 
Talvez, a partir deste esboço de “roteiro”, possamos tentar uma “leitura” do tema (?) de Um cão andaluz.
 
3
Um cão andaluz, o primeiro filme de Luis Buñuel, é uma colagem de imagens muito diferentes e distantes à maneira do símile programático proposto pelo pré-surrealista Conde de Lautréamont nos Cantos de Maldoror: “belo como o encontro casual entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecção”, e é a transcrição para o cinema da escrita automática proposta pelo movimento surrealista.
 
A rejeição de um “roteiro” linear e racional em Um cão andaluz ocorre desde o título, que poderia ter sido aquele inicialmente pretendido por Buñuel e Dalí: Prohibido asomarse al interior. Em 1929, um ano após a estreia, o script foi publicado na revista La révolution surréaliste com esta nota adversa aos suspeitosos aplausos dos esnobes: “Um ‘filme de arte’ de sucesso, pensam muitos espectadores. Mas o que se pode fazer contra os que procuram novidades, mesmo que violem as suas convicções mais profundas, contra uma imprensa vendida e hipócrita, contra um público imbecil que achou ‘bonito’ ou ‘poético’ o que é apenas um convite desesperado e apaixonado ao assassinato?”
 
Pelo que se sabe, Um cão andaluz não motivou nenhum homicídio, mas ainda hoje o filme ainda jovem impressiona pela liberdade, pela força e pela poesia do fluxo das associações visuais e da história delineada (ou drama?), em que um homem e uma mulher se desejam, se perseguem, se rejeitam, se atacam e se torturam. A imagem emblemática do desejo poderia ser a mão masculina presa numa porta e fervilhante de formigas, metáfora emblemática da tentativa de posse de um corpo através da carícia desejante.
 
Talvez o tema da agonia do amor romântico no mundo moderno possa ser lido na história de Um cão andaluz. Há genuína exasperação romântica quando o homem, num gesto (gozoso ou dolorido?) apalpa com mãos convulsas os seios e as nádegas da mulher, e quando no final agoniza tenta agarrar-se ao seu torso nu; há um romantismo elegíaco na cena em que a mulher, como num ritual, recolhe da cama as roupas do ente querido morto para ressuscitá-lo; há um tom de romantismo mórbido e sadomasoquista, quando outra mulher, de aparência um tanto andrógina, brinca em público com uma bengala e a mão decepada e (diz o script) “fica como que fascinada pelos ecos de uma música religiosa distante ouvida em infância.”
 
Von Arnim, Hoffmann, Poe, Nerval, Lautréamont, Rimbaud trataram literariamente o tema da alteridade do ser. A partir deles, e da psicanálise freudiana, o surrealismo propôs a exploração dessa alteridade, do outro eu latente no fundo irracional, subconsciente, que se manifesta no delírio, nos sonhos, em nossas respostas não deliberadas aos incidentes do acaso. O livre e ao mesmo tempo fatal fluxo de imagens apresenta uma infinidade de significados. A sequência do piano carregado com carniça de burro e arrastado por cordas amarradas ao personagem pode ser entendida como uma metáfora do poder repressivo exercido pelas convenções morais, culturais, sociais e até estéticas que opõem a Realidade ao Desejo. Um sentido metafórico e erótico/ tanático se exibe nas outras imagens oferecidas como em tumulto: a mão fervilhando de formigas, os livros que se transformam em revólveres, as axilas e nádegas femininas transformadas em ouriços ou seios, a imagem sinistra da “borboleta caveira” (a acherontia atropos). O relato se sublimará na cena em que o protagonista, mortalmente ferido, cai, não mais no quarto onde foi baleado, mas na beira de uma floresta, e suas mãos escorregam na tentativa de se agarrar ao torso nu da mulher. Mas não importa se as imagens motivam em cada espectador, em cada ensaísta ou crítico, o “delírio de interpretação”. Importa que sejam poderosas e apelem para a nossa outra inteligência do mundo.
 
Um cão andaluz, filme “antivanguarda” e o primeiro inteiramente e verdadeiramente surrealista, liberta os poderes da livre associação de imagens e narra o combate “humano, demasiado humano” entre a Realidade e o Desejo. Este tema se expandirá e adquirirá mais violência no segundo filme de Buñuel: A idade do ouro, que nos fará ouvir o ritmo obsessivo dos tambores de Calanda.
 
4
O homem da navalha que nas imagens iniciais dos 17 minutos de Um cão andaluz rasga o olho de uma mulher viva (na realidade o de uma vaca morta), era o aragonês Luis Buñuel, 28 anos, ex-estudante de entomologia, ex-boxeador amador, amigo do pintor Salvador Dalí, dos poetas Moreno Villa, Federico García Lorca, Emilio Prados, Luis Cernuda, Rafael Alberti e recentemente assistente do cineasta Jean Epstein nos filmes Mauprat (1926) e A queda da casa de Usher (1928).
 
Os surrealistas, alertas contra os truques estetizantes de uma avant-garde apenas formal e sem desafio moral, por vezes apresentada sob o rótulo de “surrealismo”, viram a estreia de Um cão andaluz dispostos a sabotá-lo, mas o filme entusiasmou-os e Buñuel e Dalí foram convidados a fazer parte do grupo surrealista.
 
Dias depois de sua estreia o filme já era o dernier cri artístico de Paris. Assim, “o apelo apaixonado ao assassinato” parecia uma obra de uma avant-garde meramente formal e conformista. Isto foi censurado em Buñuel pelos seus novos amigos surrealistas, que, depois de o levarem a julgamento, o consideraram culpado de ter feito “arte pura”, sem valores subversivos, um filme que agradou à burguesia esnobe.
 
E Buñuel, magoado com a sentença, decidiu fazer um filme mais agressivo. “Fiz A idade do ouro”, disse a Silvestre Lanza em 1965 para a revista Noche/Cine/Día — “com o milhão de francos que o Visconde de Noailles me deram, dos quais pude devolver duzentos e sessenta mil. […] Dalí não interveio nas filmagens; apenas me sugeriu o plano da estátua com um pão ou uma pedra oblonga na cabeça. […] Foi um dos primeiros filmes franceses falados. É um filme totalmente fiel à moral e à poesia surrealista. A ‘história’ (se é que existe uma) gira em torno de um homem e de uma mulher e mostra o conflito que ocorre em qualquer sociedade humana, entre o sexo e o amor, por um lado, e, por outro, qualquer moral religiosa, social ou política. […] É um filme romântico, feito com o meu juvenil frenesi surrealista.”




Em A idade do ouro, a violenta imaginação de Buñuel não ataca apenas a moderna civilização cristã considerada “o melhor de todos os mundos possíveis”, com base na exploração tação e repressão, mas também afirma a paixão erótica do casal no combate contra a “razão” e a moral da sociedade estabelecida. Alterando a estrutura tradicional do relato em uma colagem narrativa e visual (breve documentário sobre escorpiões; vistas turísticas de Roma; “romance” feroz dos amantes clandestinos; party de linhagem interrompida por tapas, pelo fogo, pelo assassinato de uma criança, por um arado percorrendo a festa de salão; momentos finais e profanatórios baseados em um romance de Sade etc.), Buñuel não só causou o já famoso escândalo que levaria ao banimento do filme por décadas e à quase excomunhão dos Noailles (que inocentemente acreditaram financiar um mero filme de arte para a cinefilia de elite), mas também realizou uma obra poética de violência visual e humor cruel que Octavio Paz diria num ensaio em Las peras del olmo (1957):
 
 “O casamento entre a imagem cinematográfica e a imagem poética, criadoras de uma nova realidade, devia parecer escandaloso e subversivo. E era, de fato. O caráter subversivo dos primeiros filmes de Buñuel reside no fato de, tocados apenas pela mão da poesia, se desmoronam as convenções fantasmagóricas (sociais, morais ou artísticas) de que é feita a nossa realidade e das ruínas surge uma nova verdade, a do homem e do seu desejo. Buñuel mostra-nos que este homem amarrado pode, apenas fechando os olhos, fazer o mundo saltar. É um ataque feroz à chamada realidade, humilhada pela civilização contemporânea. O homem da Idade de Ouro dorme em cada um de nós e só espera um sinal para despertar: o do amor. Este filme é uma das poucas tentativas da arte moderna de revelar a terrível face do amor na liberdade.”
 
E antes, em 1939, Henry Miller já escrevia com exaltação: “O artista deve transcender limites. Deve virar o mundo de cabeça para baixo, escavar este mundo completamente, confundi-lo, porque o milagre deve ser proclamado. A idade do ouro nos apresenta um novo mundo deslumbrante e inexplorado. “É o único filme que conheço que revela as possibilidades do cinema!”
 
5
Em Paris e nos anos sessenta, André Breton, nostálgico dos primórdios do surrealismo e das suas obras e atitudes provocadoras contra o establishment cultural, social e político dos anos trinta, disse melancólico ao seu velho amigo Buñuel: “Querido Luis, nestes tempos ninguém está mais se escandaliza.”
 
Com efeito: hoje, quando sabemos dos campos de concentração e do extermínio que foram erguidos pelos dois estados totalitários, como podemos ficar escandalizados com um filme que blasfemava, profanava e incitava a revolta moral a partir da ficção? Será que um filme como A idade do ouro não é hoje nada mais é do que uma obra obsoleta, desarmada, fantasma, já datada, digerida e fixada pela história do cinema?
 
Mas, tantos anos depois de filmada, A idade do ouro se mantém vivo, apesar de sua condição histórica e circunstancialmente escandalosa. Se na altura foi um filme perturbador, se motivou a cólera da direita e dos bien pensants, se os seus produtores/mecenas precisaram escondê-lo durante décadas porque estavam prestes a ser excomungados pelo Vaticano, se hoje é uma obra catalogada nas cinematecas e serenamente visível nos cineclubes ou nos videodiscos como um “clássico da sétima arte”, continua vivo pelo seu olhar corrosivo e livre, pelo seu “selvagem canto visual” sobre o conflito entre o social e o individual, entre a ordem e a aventura, entre a Realidade e o Desejo.
 
É possível ver em A idade do ouro a manifestação de um jovem cineasta furioso que lança imagens chocantes contra uma ordem social e um código moral que considera odioso, e é verdade que a provocação através da literatura e da arte é efêmera e, além disso, “em nestes tempos ninguém se escandaliza”, mas o filme de Buñuel vai além de um circunstancial espírito de provocação. Há nele um olhar profundo e intenso que explora a lamentável ou celebrável condição humana e que consegue, através dos ácidos poéticos, colocar em crise a imagem narcísica de um mundo social hierarquicamente existente, concebido e imposto como o único possível.
 
Despojando-se das ilusões celestiais ou políticas, o protagonista sem nome nem sobrenome (interpretado por Gaston Modot com excesso gestual e por vezes com uma comicidade — involuntária?), abandona as convenções sociais que o condicionavam e empreende a revolta contra tudo o que se opõe ao seu desejo na sociedade governada pelos altares hierárquicos do dinheiro, da pátria e da religião. Esse homem começou a embriagar-se de fúria, a exigir a companhia da mulher que, pela falta de jeito erótico de ambos e pelos preconceitos, havia ficado presa no jardim, e se mal ele começou a murmurar a glossolalia da liberdade, nele está surgindo o selvagem de uma mítica idade de ouro na qual não havia um único Deus nem um mestre servido por sacerdotes e guerreiros e na qual o casal se formava, não por contrato social explícito ou implícito, mas pelos poderes de Eros. Esse homem autoexilado de um prescrito e ilusório paraíso social vai descobrindo que o tempo está sujo da História ditada por patrões e messias, por heróis autoproclamados e redentores, legisladores de ideologias e credos, mercadores e censores de sonhos.
 
Se A idade do ouro é ao mesmo tempo um panfleto e um manifesto provocativos, o que nele perdura é a sua eletricidade poética. A genialidade de Buñuel foi depois de passar por uma filmografia ziguezagueante pelos inevitáveis ​​compromissos com a indústria cinematográfica, essa fábrica de sonhos que raramente é libertadora, foi conseguir criar uma obra vibrante entre o delírio e a lucidez. Se na juventude havia feito dois filmes inteiramente surrealistas, então, já na maturidade, apresentou obras mais próximas de um discurso da “realidade”, mas sulcadas pelos veios da poesia e do humor negro: Os esquecidos (1950), Ensaio de um crime, Nazarin (1950), Viridiana (1961), O anjo exterminador (1962), A Via Láctea (1969), O fantasma da liberdade (1974), Esse obscuro objeto de desejo (1977)...
 
Com estes e outros títulos o poeta Buñuel atravessou os muros carregando na mão a Rosa Saxifraga: a flor que quebra as rochas.

 
Notas da tradução

1 Esta foi uma exposição apresentada no National Museum of Art e no National Institute of Fine Arts of Mexico em 2012 que explorou a relação entre a as artes surrealistas de artistas europeus e latino-americanos em várias expressões, da pintura à escultura, passando pela fotografia e o cinema.
 
2 A passagem do Manifesto é da tradução desconhecida, disponível no Domínio Público.

 
* As cinco partes que constituem o texto aqui traduzido livremente foram publicadas no jornal Milenio.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #609

A ópera da Terra ou a linguagem de Gaia: Krakatoa, de Veronica Stigger

Boletim Letras 360º #600

É a Ales, de Jon Fosse

Boletim Letras 360º #599