Animalia, metafísica do fim de um mundo

Por Bruno Padilla del Valle




 
O filme Animalia (Marrocos, 2023) é uma das surpresas no fértil terreno da fantasia, como endossado pelo Prêmio Especial do Júri Visão Criativa no Festival de Sundance, e a inclusão da diretora na lista dos “10 to Watch” da Unifrance, uma seleção de dez talentos emergentes do cinema neste ano, junto com outros três diretores franceses — e seis atores. Sofia Alaoui (Casablanca, 1990) estreia no longa-metragem com este título, mas um olhar sobre a sua carreira desde 2015 mostra que ela não é uma novata no audiovisual.
 
Fundamental em sua carreira foi o curta Qu'importe si les bêtes meurent (2020), que nessa categoria foi vencedor no Sundance e no Prêmio César, e que tem muito em comum com Animalia: as montanhas marroquinas do Atlas como cenário, diálogos em berbere, atores inexperientes (e, neste caso, não profissionais), componente sobrenatural e uma mistura de perspectiva documental e de fantasia que atualizou a singularidade dos filmes de Jacques Tourneur. 23 minutos promissores que também compartilham com seu primeiro longa-metragem o surgimento de um curioso acontecimento que abala os religiosos da região e os faz pensar: “E se não estivéssemos sozinhos no universo?”
 
Animalia coloca a mesma questão ao mergulhar numa abordagem que não é apenas de ficção científica mas metafísica, e para além da narrativa, brilha justamente na tradução das suas interrogações, dúvidas, intuições e especulações para o plano visual, com um tratamento fascinante. Na maior parte de suas filmagens, o filme assume conotações de pesadelo, mas com muitas âncoras sociopolíticas para não ser real. Aparecem as diferenças de classe: aquela opulência a portas fechadas que testemunhamos desde as primeiras cenas, contrastando depois com o caos das ruas em meio ao apocalipse.
 
A religião também é um elemento-chave do conflito na história, e não é surpreendente: sabemos de Alaoui que sua mãe é francesa (católica) e seu pai é marroquino (muçulmano), mas ela cresceu na China (taoísta e budista). “Fala-se de Deus como se fosse uma pessoa, mas é mais esquivo do que uma formiga preta em uma pedra negra em uma noite escura”, diz-se no filme, onde o Dia do Juízo Final é mencionado, e como em todo apocalipse, há uma tendência subjacente de culpa, punição e talvez salvação ou redenção.
 
Nesse sentido alegórico, é difícil não pensar em Os pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, ainda mais pela presença de animais — especialmente cães e pássaros — que parecem responder a uma força maior e ao mesmo tempo deixam de responder a autoridade humana. Tal como na obra do diretor inglês, o terror aqui não tem explicação, não há uma origem clara, mas manifesta-se em elementos meteorológicos e atmosféricos, que tanto lembram os nossos atuais receios climáticos. O grande acerto, em todo caso, é aquela ameaça extraterrestre concebida fora de plano, que sequer é evidente quando o filme flerta com Invasão dos ladrões de corpos (1956), de Don Siegel — ou a versão de Philip Kaufman, de 1978, baseada nos contos de Jack Finney: aquele a priori perturbador “tudo vai ficar bem” que dizem os possuídos, frase de um manual de autoajuda ou de pandemia, e que em última instância é uma verdadeira mensagem de alento.
 
Em Animalia há surpreendentes passagens oníricas e uma poética visual que conecta a dor da experiência de vida com o cósmico. O desejo de transcendência — literal — dessas imagens traz-nos ecos do cinema de Andrei Tarkovski, influência reconhecida pela diretora, mas também de Terrence Malick, Alfonso Cuarón, Apichatpong Weerasethakul, Jonathan Glazer e até Stanley Kubrick nos seus momentos de extrema simetria. O estilo contemplativo, no melhor sentido e na dose certa, brilha graças à fotografia de Noé Bach (responsável por este elemento no último filme de Arnaud Desplechin), que se combina com a inquietação dos grandes planos, brincando com as lentes e o desfoque em seus momentos mais experimentais. O uso da câmera lenta (a la Wong Kar-wai, outra inspiração confessa) às vezes acaba criando um efeito quase pictórico, como uma imagem de pincelada. Por outro lado, para os planos amplos, Alaoui diz que se inspirou nas auroras boreais e na sua sensação de admiração, que aqui transfere para a paisagem do Atlas, tão marciana ao mesmo tempo sublime, enigmática e terrena.
 
Num filme tão subtil no manejo de elementos puramente fantásticos, que por esta dosagem são duplamente chocantes e perturbadores, grande parte da sua eficácia dramática e espetacularidade sustentam-se no rosto da atriz principal, Oumaïma Barid: estreando no cinema, seus traços adquirem enorme expressividade na tela, e tanto seu próprio físico quanto sua atuação exalam caráter e vulnerabilidade, fragilidade e força, dignidade e fúria em um personagem complexo, com claro-escuros, que de alguma forma representam os de uma espécie inteira. Vale destacar também a força interpretativa de Fouad Oughaou, que já apareceu em curtas anteriores de Alaoui.
 
E se a concepção visual de Animalia é o seu grande trunfo, o trabalho com som não é menos brilhante; a forma como realça certos detalhes (massas de gente, murmúrios e ecos de orações, rumores dos animais...), amplificando-os ou distorcendo-os, ou isolando-os num efeito semelhante ao dos sonhos. Igualmente relevante é a música de Amine Bouhafa, uma partitura fluida que mistura ensemble de cordas e sintetizadores numa série de passagens diversas que possuem tanto de Michael Nyman ou Philip Glass como da épica post-rock de Sigur Rós. O prolífico compositor tunisiano, mais conhecido pela sua premiada trilha sonora para o filme mauritano Timbuktu (2014), e que compôs mais recente para filmes de numerosas e ousadas diretoras, como Lina Soualem, Kaouther Ben Hania, Ramata-Toulaye Sy, Erige Sehiri ou Ainara Vera.
 
A (ultra)sensorialidade de Animalia fala, em suma, do despertar da consciência a todos os níveis, de como vivemos em bolhas e realidades paralelas sem quase nada questionarmos sobre o que acontece, sobre o que somos. O filme de Alaoui é também a crônica de uma crise de fé: rezar não impede o acontecimento (ou happening, se quisermos fazer uma referência à obra de M. Shyamalan) que abala o mundo e o vira de cabeça para baixo. É uma reflexão acerca da nossa desconexão com a terra, com a vida na sua essência, nesta espécie de pré-pós-humanidade que atravessamos. O final do filme, com o desaparecimento da arquitetura e dos suntuosos palácios em que um dia tentamos encerrar-nos, supõe também o desaparecimento — ou extinção — de uma espécie, a nossa, e a sobrevivência da natureza e de os céus, testemunhas eternas da vida.
 
A subtileza e a precisão com que esta leitura é sugerida (uma das muitas possíveis numa magnífica coda que, longe de carimbar uma mensagem unívoca, propõe ideias para reflexão) confirmam a promessa de uma cineasta que gostaríamos de acompanhar. E parece que haverá oportunidades para continuar vendo seu trabalho. A diretora e roteirista franco-marroquina trabalha, por um lado, na série Let the Earth Burn, inspirada em acontecimentos reais passados em regiões remotas do Marrocos, sequestros e assassinatos de crianças às quais se atribuem poderes sobrenaturais. Paralelamente, ela cuida de dois longas-metragens: Tarfaya, um thriller apocalíptico ambientado no deserto marroquino, e aquele que seria seu primeiro filme em inglês, a adaptação de um romance de ficção científica.
 
Enquanto esperamos para ver como se resolve o futuro esperançoso de Sofia Alaoui, contentamo-nos com a profundidade desse futuro que ela imagina em Animalia, sobre o qual poderíamos garantir que não é um filme a respeito do fim do mundo, mas do fim de um mundo. Talvez sobre a possibilidade de uma nova forma de acreditar. 


* Este texto é a tradução livre de “Animalia: metafísica del fin de un mundo”, publicado aqui, na revista Mercurio.

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