Alfabeto das colisões, de Vladimir Safatle

Por Herasmo Braga


Vladimir Safatle Foto: Ana Paula Paiva


 
Observa-se hoje, sem grande esforço, o quanto diversas relações e instrumentos sociais têm ficado cada vez mais precarizados. Essa visão não é escatológica, e sim, pequena descrição de como as informações, ideias e manifestações opinativas têm resultado em sentidos distintos do que a trajetória da humanidade desenvolveu ao longo da sua história. Se antes a frase de Marx, contida na obra O 18 de Brumário, “Tudo que é sólido desmancha-se no ar”, hoje, a maior parte das informações e das opiniões não se sustentam à mínima observação crítica, ou mesmo possuem em seu interior alguma base constitutiva de argumentos. Na contramão dessa precarização hegemônica, há livros com ideias fundamentadas que fazem despertar a atenção não pelo apelo, e sim, pela proposição que faz mover os sentimentos críticos que outros materiais buscam aniquilar. Um desses grandes exemplos é a obra do filósofo Vladimir Safatle, lançada recentemente e intitulada Alfabeto das colisões.
 
Algo presente e que torna a produção significativa encontra-se na possibilidade reflexiva por meio de problematizações. Os temas abordados são direcionados para incomodar o coro dos contentes. O desenvolvimento das ideias não ocorre pela formulação de conceitos e, consequentemente, a compreensão do mundo, com os seus problemas objetivos e de ordem íntima apenas de maneira tangencial ou no nível de possíveis abstrações. As formulações estão diretamente guiadas pelas relações estabelecidas entre tudo que é humano e o cerca. A interatividade é uma das marcas para elucidar, por meio de inquietações, os pontos discutidos. O sentido de uma filosofia prática apresentada no subtítulo é o esperado após o término da leitura reflexiva.
 
Outros dois pontos regentes a comporem os textos são os da resistência e da experiência. Em um mundo, como enunciou Walter Benjamin no conhecido texto sobre O narrador, com escassez de grandes contadores de história na atualidade, fica entendido que o motivo para isso é a carência de experiências. Pois, se ao homem do século XX, que não estava tão vinculado ao mundo virtual como hoje, imagine-se agora. Isso fica refletido, por exemplo, nas excessivas opiniões sobre tudo que são não só manifestadas como defendidas de maneira extremista, principalmente, daquilo que nunca se vivenciou na prática ou na teoria.
 
Não há nada de saudosismo entre as ideias apresentadas, nem mesmo incompatibilidade imaginária com o mundo presente, pelo contrário, há segura clareza, devidamente exposta nas análises, como se percebe: “As quebras são nosso destino porque somos seres em relação. Não há como evitar quebras porque procuramos colocar em relação corpos com tempos distintos, ritmos distintos, desenvolvimentos idem. Corpos que nos atravessam”. Destarte, apesar de seres dependentes uns dos outros, o sujeito moderno ou hoje proclamado pós-moderno, insiste na ilusória autossuficiência que, além de não ter a mínima racionalidade na concepção, também parece inferir-se incorporalidade. Assim, na análise de Safatle, mesmo que pensemos estar em torres de marfim, separados, isolados, somos constantemente atravessados, invadidos, tocados, afetados, por corpos materiais, por corpos substâncias, por corpos imaginativos. Não há como se desprover da presença do outro, como também, não há lógica de tomar-se como unidade, já que tanto os sujeitos, como o mundo, como o tempo, como os espaços são fragmentados e muitas vezes simultâneos. Adverte-se aqui, para não se confundir, fragmentação com relativação, principalmente, da maneira estéril e ignóbil que se entende e se expressa constantemente no presente.
 
No campo das abordagens, desmitifica-se a fuga política que muitos parecem ou desejam. O tempo é um dos elementos apresentados a desfazer a ideia pueril da crença do apolítico ou da neutralidade, expressa-se Vladimir Safatle: “Um tempo estranho, esse, no qual uma dimensão fundamental da política consiste em salvar o passado do seu próprio exílio, recuperar o que foi destroçado pelo curso hegemônico da história”. Salvar o tempo é não se perder as referencialidades trazidas por ele ao longo dos diversos eventos históricos em que cada um teve marcada a sua dimensionalidade política que, independentemente dos resultados, produziu efeitos e ressonâncias construtivas para a própria expansão e desenvolvimento do homem em sociedade.
 
Dialogar com o passado, com o presente, é manter-se em sintonia com as possibilidades do aprimoramento, da diminuição de injustiças e desigualdades de condições e de valorização das diferenças. Perceber que cada ideia ou formulação dela em prol da homogeneidade é fazer os indivíduos perderem algumas das suas principais virtudes, que é a singularidade. Assim, ao perceber-se sendo guiado por algoritmos que trazem apenas a mesmice, querer que todos pensem de maneira igual a si, querer ouvir apenas os gritos da sua torcida e anular qualquer coisa distinta das concepções é empobrecer-se e tornar o mundo e as relações insustentáveis.



Para Safatle, a tomada do passado como referência não se restringe apenas aos aspectos históricos e políticos, também, aos diversos pensadores que contribuíram significativamente para melhor entendimento do homem e do mundo, como os filósofos Aristóteles, Kant, Hegel, mencionados; as pessoas, textos, ideias, debates formativos e ater-se, como ele menciona: “Há de ser grato a quem nos dá as questões que ressoam a vida inteira”. Conscientizar-se, portanto, que não se chega a lugar algum de modo sozinho e independente. A necessidade do outro para, até mesmo reconhecimento de si enquanto existência, é algo imprescindível que a modernidade busca em alguns dos seus mantras discursivos desconsiderar e estabelecer algo totalmente incompatível com qualquer nível de entendimento: a autossuficiência. Tudo se encontra interligado. Não há como se ter a posse de nada de maneira exclusiva ou mesmo considerar fruto apenas do esforço individual. As contribuições diretas e indiretas de todos com todos é uma das ideias mais claras existentes e, de maneira ingênua, procura-se não evidenciar.
 
Interessante o capítulo X /(INCÓGNITA)/, em que, ao se pensar acerca da vida e da linguagem de si nos percursos da existência, há a seguinte reflexão: “a perspectiva do si mesmo é apenas a marca de um descaminho”, e esse descaminho aproxima-se muito do aspecto proporcionado pelas produções ficcionais tidas como desvios. Esse ponto proporciona um diálogo possível com Goethe no romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, quando em um momento da narrativa ocorre o diálogo entre o personagem até então conhecido como eclesiástico com Wilhelm sobre as produções ficcionais em que anuncia: “É o melhor meio de arrancar os homens de si mesmos e trazê-los de volta por um desvio”.
 
De fato, essa possibilidade desviante e transformadora que tem as produções ficcionais como ponto de partida é resultante não de discursos abstratos ou mesmo fantasiosos, mas de uma linha de racionalidade explorada desde Aristóteles, como evidencia Safatle: “Aristóteles costumava dizer que o que separa a ficção da vida ordinária é a existência de um começo, de um meio e de um fim. A ficção daria ordem à vida, fornecendo-lhe uma racionalidade na medida em que define formas de ligação, de sucessão, de coexistência, de hierarquia entre acontecimentos”. Destarte, o caráter da racionalidade que incide sobre os textos ficcionais, infelizmente, não se costuma de fato pensar dessa maneira. Isso não causa certo empobrecimento à literatura, por exemplo, e sim, a precarização da realidade, devido à indigente ação interpretativa do mundo e, consequentemente, da compreensão dele e dos sujeitos.
 
Essa ideia da racionalidade ficcional evidenciada por Aristóteles desde sua obra A poética, em seus estudos sobre a tragédia, também é compartilhada por outros filósofos contemporâneos como Jacques Rancière, no livro João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada, onde enuncia: “A ficção não é, a meu ver, o ato de inventar mundos que não existem. Ela faz parte integrante de nosso mundo e, mais, de nossa maneira de fazer o mundo. Ela é uma estrutura de racionalidade”. Esse compartilhamento de ideias entre os filósofos da antiguidade com os contemporâneos evidencia a qualidade estabelecida de diálogos de Vladimir Safatle com os pensamentos da tradição, da contemporaneidade, na busca da compreensão do mundo em suas dimensionalidades e acepções hodiernas.
 
Ao longo de todo o livro, os textos vão tecendo abordagens fecundas sobre os dilemas da sociedade atual nos mais diferentes campos, como no das ideias, dos aspectos cotidianos da vida, das artes em meio a reflexões e diálogos com outros intérpretes nas mais diferentes áreas, como em Adorno, Andreas Gursky, David Graeber, David Wengrow, Condorcet, Györg Ligeti, Locke, Antonioni, Marx e tantos outros. Todas as interações possuem como finalidade problematizar questões para que possam gerar reflexões significativas aos leitores. Nesse sentido, a obra Alfabeto das colisões constitui leitura reflexiva diante de tantas virtualidades e pararrealidades reinantes de hoje que distanciam o homem do mundo e da sua capacidade crítica perceptiva.


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Alfabeto de colisões: filosofia prática em modo crônico
Vladimir Safatle
Ubu Editora, 2024
160 p.

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